segunda-feira, 27 de junho de 2011

liberalismo ainda que à tardinha

muita coisa aconteceu desde que a marcha da maconha foi brutalmente reprimida pela polícia militar do estado de são paulo, o que acarretou na marcha da liberdade, ocorrida uma semana depois. acho que o assunto e a palavra maconha nunca estiveram tão em uso no país como nessas últimas semanas. isso, em si, foi transformador porque em ambientes repressivos a simples articulação sonora de uma palavra, assim repetidas vezes, pode tirar o medo, o peso, o estigma. mas aconteceram outras coisas.

o stf foi chamado a intervir e disse por acachapante unanimidade o que deveria ser óbvio para qualquer magistrado com dois neurônios e meio: proibir a marcha da maconha é crime contra a liberdade de expressão, um dos bem mais caros de um estado democrático. capisci?

houve outra marcha da liberdade, dessa vez em várias capitais.

estreou nos cinemas o bom documentário quebrando o tabu, de fernando grostein andrade (que antes tinha visto o caetano veloso pelado em coração vagabundo), aquele com fhc ciceroneando uma discussão transglobal sobre alternativas ao proibicionismo, com ênfase na descriminalização e regulação da maconha.



e a revista trip, assumida defensora da causa, fez uma ótima edição temática sobre o “cigarrinho de praia”, com direito a uma longa entrevista com fhc e boas reportagens como a da situação na vizinha argentina (outra vez mais progressista que nosotros). apenas três observações: nada bom usar o título do documentário para chamar para a entrevista do ex-presidente (soou venda casada e a entrevista do bruno torturra é infinitamente melhor que as falas de fhc no filme), deixem de falar com ronaldo laranjeira (aka dr. fruta, que em inúmeras vezes se mostrou uma pessoa preconceituosa e de raciocínio limitado e não há título acadêmico no mundo que me prove o contrário) e muita gente boa ficou de fora das matérias/pautas. no mais, grande trabalho.

quer dizer, momento mais que propício para começar a debater o assunto com o mínimo de maturidade (por parte dos proibicionistas, claro esteja) e acredito que quebrando o tabu tem um papel importante, mesmo com alguns tropeços, na melhora do nível para esse debate. não via cinemas, que pelo jeito sua carreira (ooops) não anda das melhores, mas numa potencial e mais interessante distribuição de seu dvd em escolas da rede pública.

acima de tudo porque é um filme habilmente didático e muito bem ilustrado com dados, além de estar posicionado positivamente sobre a questão das drogas. e o positivo, segundo a linha de pensamento aqui da casa, significa ser favorável a política de redução de danos e descriminalização e regulação, entre outras coisas (o longa trata basicamente da maconha, porque sobre as outras drogas o buraco é mais embaixo). quebrando o tabu e fhc, seu co-autor, desejam sinceramente discutir e entender o assunto, o que é um ganho e tanto para a causa em tempos bicudos de tantas reações neoconservadoras. a presença do tucano, erudito, sério, octogenário, respeitado e paulista fhc também tem um importante valor simbólico, ainda mais quando ele se expõe tão clara e progressistamente sobre um tema “maldito”. mas é isso, se o príncipe fala – “é, gente, esse negócio de combater, essa parada de proibição, deu errado, malzaê
-, porra, você acredita.

e é isso, o proibicionismo deu errado. a violência aumentou, o consumo aumentou, as rotas do tráfico aumentaram e os grandes cartéis caíram para dar lugar a uma gigante e descentralizada (portanto, sem cara) rede de micros e médios cartéis. a maconha, no meio dessa bagunça, é um droga menor e que causa menos danos a saúde que os legais álcool e tabaco. porque então não tirá-la desse circuito ilegal, retirando assim uma grande quantidade de consumidores do contato com outras drogas (mais pesadas)? essa é uma das teses liberais do filme e que ganha uma ajuda importante por meio de uma constatação econômica: tá dando prejuízo para o estado essa história de proibicionismo, afinal os bilhões gastos por tantos países não estão dando resultado nenhum. fora o singelo fato de que drogas são usadas cotidianamente pela humanidade desde o tempo do zás-trás e que a proibição data somente da primeira metade do século 20 (portanto, não tem nem 100 anos). as pessoas continuarão a usar drogas, proibidas ou não. ah, também se fala rapidamente do uso medicinal. e lá se vão fhc e fernando grostein andrade rumo a amsterdã, lisboa, rio de janeiro e outras cidades – e em diálogos com jimmy carter, bill clinton, paulo coelho, dráuzio varela, etc - na procura de soluções, experiências e questionamentos.



difícil mensurar se o filme chegará aos proibicionistas ou se apenas pregará aos já convertidos, mas é sempre melhor fazer algo do que nada, né não? sua existência, seu contexto, seu momento, sua tese, tudo é importante. mas quebrando o tabu é sobretudo um filme de tese que busca números e falas para comprová-la, o que invariavelmente o transforma em propaganda e lhe deixa com poucas facetas. mas diferente de eduardo escorel, que em crítica mal humorada na revista piauí deu uma desancada no documentário, não procuro eduardo coutinho ou frederick wiseman onde não possa achá-los. um filme não pode ser criticado pelo que ele não se propõe ou entramos na egotrip do crítico.

partindo dessa questão complexa da propaganda gostaria de falar de alguns problemas do documentário. quase todos são decorrentes de sua cara liberal elevada, só que não dá para saber quem é o responsável: se o jovem diretor ou o velho intelectual, ou um pouco de ambos. de qualquer forma, esse liberalismo paternalista coloca todos os usuários de drogas como dependentes necessitados de um tratamento de saúde (isso fica bem claro nas falas de fhc, dráuzio varela e paulo coelho). não se menciona o direito individual, a autonomia de cada cidadão no uso de seu próprio corpo e o uso real de drogas com fins recreativos, religiosos e/ou culturais.

por causa dessa postura, o filme perde a oportunidade de entender porque as pessoas fazem uso de drogas. ao falar com um jovem branco de classe média que enfrenta uma série de perigos na biqueira (tanto por parte dos traficantes quanto dos policiais) para comprar sua maconha, o igualmente jovem cineasta não pergunta o que motiva o garoto a fazê-lo. é para dar risada com os amigos? é para assistir algum filme de ação? é para curtir uma larica total? nada, ele não pergunta qual é o barato.

o filme também não questiona a injustiça social que se esconde nas entrelinhas do proibicionismo mundo afora, afinal são os negros e pobres que continuam sendo majoritariamente presos e mortos nessa roda viva. decorrente dessa constatação, outra pergunta é deixada de lado: quem lucra com o proibicionismo, além dos traficantes? o combate ao tráfico, aliás, aumenta o preço das drogas, aumentando assim o lucro e o interesse comercial.

a discussão ainda está no começo nesse brasilzão conservador, mas a descrimizalização e a regulação da maconha (para uma posterior legalização) devem ser encaradas como os principais objetivos – dentro dessa questã das drogas - para uma sociedade mais igualitária e madura. não dá para fazer tudo de uma vez: o assunto é complicado, a ignorância/hipocrisia é muita e as drogas tem os mais variados usos e diferenças entre si. mas é certo que a proibição não ajuda em nada, só atrapalha. as drogas estão com a gente desde sempre, para o bem e para o mal, como tudo que é nosso. não adianta fugir. somos grandinhos, sabemos o que é certo e errado (e quando não sabemos fazemos merda, independente do jeito ou aditivo). simples assim.



p.s.: gostaria de finalizar com a última resposta de fhc na entrevista dada a trip, justamente sobre um dos lados do assunto não tratados em quebrando o tabu:

“eu desconheço qualquer sociedade que não tenha experiências com suas drogas de preferência. isso tem alguma relação com o transcendental. não é uma experiência religiosa, mas tem algum parentesco. é sair do objetivismo, escapar do que você não consegue escapar, que é a sua carne, da mera matéria. então, claro que não espero que um policial vá encarar nesses termos, mas eu não sou um policial. sou um sociólogo e tenho que pensar nisso. tem gente que tem experiências místicas, uma viagem, um barato espiritual. as pessoas buscam essas coisas. eu estudei umbanda. o que é aquilo? também é uma experiência mística, transcendente. e tem ali tabaco, álcool, no meio de uma tentativa de se comunicar com outro mundo. isso é natural, próprio da experiência humana, eu acho que a gente tem que entender isso com uma visão mais ampla. não estou justificando, mas as pessoas precisam ir em busca de si mesmas. às vezes recorrem à droga como desespero. às vezes recorrem sem desespero, conscientemente. eu acho que temos que encarar como parte da vida. não como algo que temos que eliminar. porque isso não se vai conseguir.”

Um comentário:

Alexandre Izo disse...

Cara, muito bom seu texto. Concordo que o assunto está mais latente do que nunca, e acrescento. Assim como os malufistas, esse preconceito começa a morrer aos poucos.



Em alguns anos, faremos passeatas na Paulista, fumando maconha, pedindo pra baixarem o preço dos impostos sobre a erva vendida, embalada, nos bares e cafés. Mas até lá pode haver resquícios de uma ditadura que não morre nunca, com dizeres amsterdianos: “Aqui neste país não se é liberado o uso da maconha, mas sim apenas tolerado o seu consumo de forma consicente. rs...

Valeu, belo texto!

Abs,
Alê.Izo