quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

e o albino Hermeto não enxerga mesmo muito bem

Hermeto Pascoal, o homem, a lenda, o bruxo. ele foi o assunto do meu mais recente frila pra Revista Monet. dessa vez conversei com três músicos amigos pra saber mais sobre um dos artistas mais originais da música brasileira. com vcs, Hermeto por Dudu Tsuda, Thiago França e Meno Del Picchia.

Hermeto por Bob Wolfenson

O BRUXO DOS MIL SONS 

Do alto de seus 88 anos, o músico Hermeto Pascoal mostra toda sua energia e originalidade em documentário inédito no canal Curta!

Hermeto Pascoal é um mistério em muitos sentidos. Não se sabe de onde vem tanta energia e muito menos tanta originalidade e inquietação musical. Não se sabe nem em qual localidade de Alagoas nasceu há 88 anos: algumas fontes dizem Canoa da Lagoa (é, inclusive, o nome de um seus mais famosos discos, Lagoa da Canoa, Município de Arapiraca, de 1984) e outras afirmam que é Olho d´Água Grande (35 km separam uma da outra). Os cineastas Lírio Ferreira e Carolina Sá optaram pela segunda e assim nasceu O Menino d'Olho d'Água, premiado e inédito documentário sobre o músico que estreia este mês no canal Curta! 

O longa traça um perfil de Hermeto a partir de três frentes: uma performance recente; suas lembranças de infância no sertão de Alagoas; e uma conversa sobre música e processo criativo. E a vida e obra do alagoano é um mar sem fim de histórias. Tem o encontro aos 7 anos com o acordeão do pai e os muitos forrós e festas de casamento que tocou ao lado do irmão José Neto. Tem os sons da natureza, os bichos, os instrumentos feitos com plantas e objetos. Tem a mudança para Recife aos 14 anos, o encontro com o igualmente albino e acordeonista Sivuca e as muitas rádios que tocou. Logo após completar 18 anos casou-se com Ilza, a origem de um casamento de 46 anos e 6 filhos, e descobriu o piano. 

Sempre a procura de trabalho, Hermeto foi com a família para João Pessoa atrás da Orquestra Tabajara e depois, em 1958, para o Rio de Janeiro para tocar na Rádio Mauá e também em boates e hotéis refinados. Então, no início da década de 1960, Hermeto se mudou para São Paulo e a flauta foi tomando o lugar do acordeão e do piano. Aos 25 anos, músico e pai de família, seguia tocando de tudo, mas começou a compor mais e sempre injetando Nordeste no samba jazz que fazia sucesso na época. Esteve no Som Quatro, no Sambrasa Trio e nos especialmente cultuados Quarteto Novo (o grupo que acompanhou Edu Lobo em “Ponteio”, a grande vencedora do Terceiro Festival de Música Popular Brasileira, produzido pela TV Record em 1967) e Brazilian Octopus. 

Então o percussionista Airto Moreira, seu companheiro no Quarteto Novo, o chamou para gravar nos Estados Unidos no final da década de 1960 e por lá Hermeto ficou cerca de quatro anos. Nesse período gravou dois discos com Airto e sua esposa, a cantora Flora Purim, atuando como compositor, arranjador e instrumentista. Também conheceu Miles Davis e chegou a trocar sopapos com o trompetista numa brincadeira de boxe (diz a lenda que Hermeto acertou um cruzado no rosto de Miles). O brasileiro albino e estrábico impressionou tanto o norte-americano que gravou duas de suas composições, “Nem um talvez” e “Igrejinha”, em seu disco Live-Evil (1971) com direito a participação de Hermeto tocando vários instrumentos. De volta ao Brasil em 1973, gravou seu primeiro disco solo (A Música Livre de Hermeto Pascoal) e deu início a uma das jornadas mais originais da música instrumental brasileira. 

TUDO É COISA MUSICAL

“Me lembro de escutar Hermeto pela primeira vez quando eu tinha uns 16 anos, em meados dos anos 1990. Um amigo baixista que tocava comigo na época me apresentou a música ‘Bebê’. Logo depois ouvi outras músicas dele e, claro, o seu famoso solo de chaleira que mudaria minha vida pra sempre. Parei e pensei: opa, que troço é esse? Mal sabia que alguns anos mais tarde, em 2002, seguiria nesse caminho que ele abriu e começaria minhas pesquisas em música experimental”, afirmou Dudu Tsuda, músico paulistano que participou de bandas como Cérebro Eletrônico, Jumbo Elektro e Trash Pour 4 e mais recentemente tem se dedicado a trilhas de espetáculos de dança e performances. 

O músico, professor e antropólogo Meno Del Picchia ouviu Hermeto pela primeira vez mais ou menos com a mesma idade que Tsuda. “Devia ter uns 13 ou 14 anos. Foi um disco chamado Hermeto Pascoal & Grupo, que é de 1982. Eu já estava tocando porque comecei a estudar piano ainda pequeno e depois, com 12, fui tocar instrumentos de corda, baixo e violão. E quando ouvi esse disco do Hermeto, eu pirei, achei maravilhoso, e comecei a tentar tirar umas músicas porque mexeu muito comigo. E uma das coisas que mais me impressionou, especificamente nesse primeiro álbum que ouvi, foi a capacidade do Hermeto de transportar a gente pra aquela sonoridade das bandas de coreto e seus instrumentos de sopro e percussão. Mas, ao mesmo tempo que o Hermeto me jogava em pracinhas do interior de Alagoas, ele também compunha músicas que remetiam para um jazz contemporâneo completamente experimental, e sempre com uma brasilidade muito forte”. 

Já Thiago França, criador da Espetacular Charanga do França e integrante do Metá Metá, nunca tinha ouvido nenhum disco de Hermeto até se deparar com o “bruxo” ao vivo no Sesc Campinas no final da década de 1990. “Foi uma loucura o show, porque o Hermeto tocou mais de 3 horas, e o povo do Sesc desesperado pedindo pra ele parar e ele não parava. Até uma hora que tiraram da tomada o teclado que ele estava tocando e ele catou um instrumento de percussão. O povo do Sesc subindo em cima do palco pedindo pra ele parar, pelo amor de Deus, e ele não parava. Então, essa é uma coisa que me identifico e pratico numa seara diferente, que é essa paixão, essa necessidade de tocar, essa coisa de começar a tocar e não querer parar nunca mais. É uma coisa que nunca vi em nenhuma outra pessoa, essa coisa da dedicação absoluta à música”. 

Esses três músicos, com suas sólidas carreiras próprias, não foram influenciados diretamente pela música de Hermeto, mas sim pelo jeito de fazer música de Hermeto e isso é coisa que não se esquece. “Ele é um farol para muitos jovens, pois vê-lo tocando, mesmo sabendo que são peças dificílimas, parece fácil e divertido. Ele aproxima as pessoas da música, as convida a querer também experimentar, a querer também inventar seu próprio modo de tocar. Seu ímpeto em experimentar novas linguagens e sons, por exemplo, formou meu espírito curioso e em constante interesse pela associação ainda não realizada, pelo novo formado a partir do encontro de diferentes. Ao mesmo tempo em que sua jovialidade me traz muita esperança no nosso fazer, não na esperança de ficar rico ou essas coisas banais, mas de que tudo vale à pena, mesmo que, por vezes, tenhamos a sensação que é o caminho mais difícil”, explicou Tsuda. 

Do seu jeitinho, Hermeto foi se espalhando e ganhando o mundo, principalmente Europa e Japão, lugares que nunca deixou de tocar desde os anos 1970. Montou também bandas que revelaram instrumentistas do naipe de Jovino Santos Neto, Carlos Malta, Itiberê Zwarg, Márcio Bahia, Nivaldo Ornelas, Nenê e Vinicius Dorin, que tocaram ao seu lado por anos a fio (uns ainda tocam). “Ele é um dos poucos artistas que consegue manter a mesma banda ao longo dos anos e isso faz toda diferença numa performance ao vivo, porque eles se conhecem muito, um já sabe o que o outro vai fazer e, sendo assim, o som tem uma força ainda maior”, disse Del Picchia. 

Thiago França concorda em gênero, número e degrau. “Ele é um cara que sabe valorizar as pessoas com quem ele toca, e tem essa magia de fazer todo mundo florescer junto. Mas o melhor de tudo é que na música de Hermeto tem frevo, choro, baião, samba, e tem coisas que a gente não consegue identificar direito o que são. Tem coisas super melódicas, outras super complexas, tem coisa muito suingada e tem tempos compostos dificílimos de tocar. Acho que ele foi em todos os lugares, e mapeou todas as possibilidades da música instrumental, e isso dele ter reunido dentro de um trabalho é o que o torna tão relevante. Ele é o cara que nos diz, e não só diz, mas mostra, que todos os caminhos são possíveis na música instrumental”.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

95 músicas e 65 discos gringos de 2024

aqui no esforçado os sons gringos vem de todos os lugares. tem EUA, claro e sempre e muito. mas tem também França, Chile, Argentina, Portugal, Alemanha, Nigéria, tuaregs, Inglaterra, Colômbia, Togo, Geórgia, Egito, Irã, Paquistão, África do Sul, Turquia, Palestina, Dinamarca, Cuba, República Dominicana, Canadá, México, Camarões, Porto Rico, Haiti, Hungria, Montenegro e assim por diante.

importante destacar também que dessas 95 músicas, 4 tem participações fundamentais de brasileiros: o produtor português Branko (ex-Buraka Som Sistema) chamou o Baiana System; a argentina Nathy Peluso trouxe os vocais de Lua de Santana para uma espécie de funk cisplatino; o quarteto canadense BadBadNotGood mergulhou na sonoridade brasileira setentista com vocais de Tim Bernardes e arranjos do mestre Arthur Verocai; enquanto a iraniana Sevdaliza dividiu vocais de um dos hits do ano com a francesa Yseult e a brasileiríssima Pabllo Vittar. é muito som, minha gente.



Al Green – “Everybody Hurts”
Aloe Blacc – “Seven Nation Army”
Amaka – “Oudad” [feat. Ali Ben Naji]
Ana Tijoux & Pablo Chill-E – “Dime Que”
anaiis & Grupo Cosmo – “B.P.E”
Andrew Bird & Madison Cunningham – “Crystal”
Angélica Garcia – “Juanita”
Anthony Joseph – “Black History”
Bacao Rhythm & Steel Band – “Love For The Sake Of Dub”
Bad Bunny – “Una Velita”
BadBadNotGood – “Poeira Cósmica” [feat. Tim Bernardes & Arthur Verocai]
Beth Gibbons – “Reaching Out”
Beyoncé & Dolly Parton – “Tyrant”
Bloody Civilian – “Head Start”
Blundetto & Juliette Magnevasoa – “La Playa”
Blundetto & Liam Bailey – “Heavy Soul”
Bonobo – “Expander”
Branko – “Aroeira” [feat. Baiana System]
Capicua – “Que força é essa amiga”
Celia Wa – “Ola”
Chance the Rapper – “Together”
Childish Gambino – “Little Foot Big Foot” [feat. Young Nudy]
Clairo – “Sexy to Someone”
Cruzloma – “Ofrenda”
DJ Vadim – “Like the Wind pt 2” [feat. Deuce Eclipse & Abstract Rude]
Doechii – “Denial is a River”
Dogo du Togo & The Alagaa Beat Band – “Avoudé”
Erika de Casier – “ice” [feat. They Hate Change]
Ezra Collective – “No One's Watching Me” [feat. Olivia Dean]
Foudeqush – “MMM” [feat. Girl Ultra]
Free Nationals, A$AP Rocky & Anderson .Paak – “Gangsta”
Greentea Peng – “Tardis”
Hope Tala – “Bad Love God”
Ibibio Sound Machine – “Mama Say”
IDK – “Kickin”
Indus – “Corre Cimarron”
Janko Nilovic x Arpad Lavotta – “Conte”
Justin Timberlake – “Selfish”
Kamasi Washington – “Prologue”
Kamauu – “Holy Spirit”
Kamo Mphela, EeQue & TOSS – “Khumule” [feat. Thebuu & Eltee]
Kaytranada – “Feel a Way” [feat. Don Toliver]
Kendrick Lamar – “Not Like Us”
Kham Meslien – “Ta confiance” [Souleance Remix]
Khruangbin – “Hold Me Up (Thank You)”
Kid Cudi & Young Thug – “Rager Boyz”
Kim Deal – “Nobody Loves You More”
Kim Gordon – “Bye Bye”
Kimberose – “Out of Love”
KUKII (fka Lafawndah) – “Rare Baby”
La Yegros – “Bailarin”
Lady Leshurr – “Bite My Style”
Laurent Bardainne & Tigre d'Eau Douce – “Meilleur” [feat. Jeanne Added]
LCD Soundsystem – “x-ray eyes”
Leon Bridges – “Peaceful Place”
Leyla McCalla – “Scaled to Survive”
Liam Bailey – “Dumb”
Lido Pimienta – “He Venido al Mar”
Lismar – “No Drama”
Little Simz – “S.O.S.”
Los Yesterdays – “Love is a Game For Fools”
Marrón – “Suéltalo”
Meridian Brothers – “En el Caribe estoy triste”
Michael Kiwanuka – “Floating Parade”
Moonchild Sanelly – “Do My Dance”
Nathy Paluso – “Menina” [feat. Lua de Santana]
Nilüfer Yanya – “midnight sun”
Norah Jones – “Running”
OG Keemo & Levin Liam – “Bee Gees”
Olympia Vitalis – “The Rush”
Orquesta Akokán – “Con Altura”
Pupajim & Blundetto – “Tancarville”
Rapsody – “Look What You’ve Done”
RDGLDGRN – “Heads Are Gonna Roll” [feat. Madalen Duke]
Residente & Busta Rhymes – “Cerebro”
Sade – “Young Lion”
Sampha & Little Simz – “Satellite Business 2.0”
Sevdaliza – “Alibi” [feat. Pabllo Vittar & Yseult]
Sinkane – “Imposter”
SiR – “No Evil”
Skiifall – “Problems”
St. Vincent – “Broken Man”
Tamada – “Jinit”
The Smile – “Zero Sum”
Theis Thaws & Run Red Rambo – “Good, and I'm Not” [Farma G Remix]
Theodor – “Tropical Bird”
Tierra Whack – “X”
Tinariwen – “Amoss Idjraw”
Toro y Moi – “Tuesday”
Tunde Adebimpe – “Magnetic”
Vampire Weekend – “Mary Boone”
Vince Staples – “Nothing Matters”
Yamê – “Bécane”
Young Paris – “Reparations”
zeyne – “Ma Bansak”


e agora os discos gringos. foram, na verdade, 65 discos de 61 artistas, pois Donald Glover emplacou dois (Atavista e Bando Stone & The New World), BadBadNotGood veio com três EPs (Mid Spiral: Chaos, Mid Spiral: Order e Mid Spiral: Growth) e The Smile com um disco e outro de "sobras" do primeiro (Wall of Eyes e Cutouts). não deu pra separar esses aí...

ouvi bastante esses discos acima, mas gostaria de destacar outros que ouvi ainda mais. começando pelos instrumentais poderosos dos alemães Bacao Rhythm & Steel Band, dos Hermanos Gutierrez, do trio Janko Nilovic, JJ Whitefield & Igor Zhukovsky, do grandão Kamasi Washington, dos franceses Laurent Bardainne & Tigre d'Eau Douce, do mestre Mulatu Astatke, e dos ingleses Nubya Garcia e Shabaka Hutchings. 

tem também os trabalhos de umas minas da pesada transitando entre rock e pop, country e latinidades. o que dizer do lindo trampo solo de Beth Gibbons (Portishead)? e o mergulho country de Beyonce? e a colombiana Kali Uchis produzindo hits sem parar? e a revelação do rap americano, a sensacional Doechii? e as roqueiras fantásticas Kim Deal, Kim Gordon e St. Vincent? só mina foda.

por último entre os destaques tem o excelente disco que o Kendrick Lamar lançou de surpresa agora no fim do ano, o novo do jovem Michael Kiwanuka (que acerta sempre) e a volta adubada de um dos preferidos da casa, o produtor francês Blundetto (dessa vez em parceria com o MC Pupajim).

Arooj Aftab - Night Reign
Bacao Rhythm & Steel Band - BRSB
BadBadNotGood - Mid Spiral: Chaos/Order/Growth
Beth Gibbons - Lives Outgrown
Beyoncé - Cowboy Carter
Childish Gambino - Atavista / Bando Stone & The New World
Common & Pete Rock - The Auditorium Vol. 1
Cruzloma - Mitos & Ritos
DJ Vadim - The Soundcatcher 2.0
Doechii - Alligator Bites Never Heal
Ezra Collective - Dance, No One's Watching
Ghostpoet - Am I The Change I Wish To See?
Hermanos Gutierrez - Sonido Cósmico
Ibibio Sound Machine - Pull the Rope
IDK - Bravado + Intimo
Indus - Negra
Jack White - No Name
Janko Nilovic, JJ Whitefield & Igor Zhukovsky - Cosmo Giants
Justin Timberlake - Everything I Thought It Was
Kali Uchis - Orquideas
Kamasi Washington - Fearless Movement
Kaytranada - Timeless
Kendrick Lamar - GNX
Khruangbin - A La Sala
Kid Cudi - Insano
Kim Deal - Nobody Loves You More
Kim Gordon - The Collective
La Yegros - Haz
Laurent Bardainne & Tigre d'Eau Douce - Eden Beach Club
Leyla McCalla - Sun Without Heat
Liam Bailey - Zero Grace
Lin-Manuel Miranda & Eisa Davis - Warriors
Little Simz - Drop 7
Lupe Fiasco - Samurai
Mdou Moctar - Funeral for Justice
Michael Kiwanuka - Small Changes
Mulatu Astatke & Hoodna Orchestra - Tension
Nathy Peluso - Grasa
Nick Cave and The Bad Seeds - Wild God
Nilüfer Yanya - My Method Actor
Norah Jones - Visions
Nubya Garcia - Odyssey
Pupajim & Blundetto - Tancarville
Rapsody - Please Don't Cry Out Now
Residente - Las Letras Ya No Importan
Schoolboy Q - Blue Lips
Shabaka - Perceive Its Beauty, Acknowledge Its Grace
Shaboozey - Where I’ve Been, Isn’t Where I’m Going
Sinkane - We Belong
SiR - Heavy
St. Vincent - All Born Screaming
The Cure - Songs of a Lost World
The Smile - Wall of Eyes/Cutouts
Tierra Whack - World Wide Whack
Tinariwen - Idrache (Traces Of The Past)
Toro y Moi - Hole Erth
Trueno - El Último Baile
Tyler the Creator - Chromakopia
Vampire Weekend - Only God Was Above Us
Vince Staples - Dark Times
Young Paris - African Hustler

domingo, 15 de dezembro de 2024

56 músicas e 50 discos brasileiros de 2024

neste 2024 que está acabando o esforçado completa 15 anos ininterruptos de retrospectivas musicais (desde a criação do blog, em 2009). acho que no começo tentei manter um número fixo de músicas e discos e depois, com o tempo, fui vendo que muita coisa ia ficando de fora e que era muito mais interessante ter um panorama maior e mais diverso do que ouvi no ano. a partir daí, o número de músicas e discos mudou de ano em ano. muito mais legal.

em alguns anos cheguei a fazer a playlist de músicas também no spotify, mas a preguiça que tenho com a plataforma é tão grande que o bom e velho youtube me basta (tanto para a playlist quanto para os links dos discos na íntegra).

como sempre tem gente nova, novos e velhos veteranos, instrumentais e pop, remixes e tradição, de um tudo. escuta só...


Agnes Nunes – “As ruas não te amaram como eu”
Alessandra Leão & Sapopemba – “Exu Ajuô”
Alice Caymmi – “O amor (El Amor)”
Alvaro Lancellotti – “Maneira de ver”
Arrigo Barnabé & Trisca – “Fico Louco”
ÀTTØØXXÁ & Baco Exu do Blues – “Tranca rua”
Áurea Semiseria – “Big Mama”
Bruna Alimonda – “Estado febril”
Céu – “Raiou” [part. Ladybug Mecca]
Chico Bernardes – “Motivo”
Conjunto Boi de Piranha – “Dançando no escuro” [Ramiro Galas Remix]
Criolo, Dino D'Santiago & Amaro Freitas – “Esperança”
Curumin – “Paixão faixa preta”
Davi Nadier – “MaPeople”
Deize Tigrona – “Prazer sou eu” [feat. Larinhx]
Dom Salvador, Adrian Younge & Ali Shaheed Muhammad – “Os ancestrais”
Don L - Bem alto
Duda Beat – “Desapaixonar”
Duda Brack – “Cumbia Mel” [part. Gaby Amarantos]
FBC, Djonga & Pepito – “Rap bom”
Felipe Cordeiro – “Revolú” [part. Ariel Moura e Victor Xamã]
Giovani Cidreira – “O ouro e a madeira”
Grelo da Seresta – “Vida loka”
Iara Reluxx & Juçara Marçal – “Iroko (Axé que vem do Pé)”
João Gomes & Pabllo Vittar – “Vira lata”
Jup do Bairro, Maria Alcina & Pagode da 27 – “Amor de carnaval”
Karina Buhr – “Poeira da luz”
Liniker – “Ritmada Caju” [Mulú remix]
Lucy Alves & Rachel Reis – “Melaço”
Lurdez da Luz – “Ben Bella”
Maria Beraldo – “Minha missão”
Marina Sena – “Numa ilha”
Marujos Pataxó & Tropkillaz – “A força dos encantados” [Tropkillaz Remix]
MC Reino – “Bom dia princesa/Dono do Porsche”
Melvin Santhana – “Zara” [part. Luedji Luna & Zudizilla]
Meno Del Picchia – “Fogo bom”
Mombojó – “Romance da Bela Inês”
MOMO – “P​á​ra” [part. Jessica Lauren]
Moreno Veloso – “A donzela se casou” [part. Maria Bethânia, Caetano, Tom e Zeca Veloso]
Mulú & Carmen Miranda – “Pra Você Gostar de Mim” [Remix]
Nego Gallo – “Catedrais”
Pabllo Vittar & Duda Beat – “Ai que calor”
Péricles – “Bem que se quis” [Reggae Remix prod. Rincon Sapiência]
Rei Lacoste & Juçara Marçal – “Sem contrato”
Rincon Sapiência – “Jogo de cintura”
Rocha Ishi – “Respira”
Rodrigo Campos & Thiago França – “Gamei”
Russo Passapusso – “Dora” [part. Karina Buhr]
Saulo Duarte – “Canção do Povo”
Thiago França – “Dor elegante” [part. Juçara Marçal]
Verônica Ferriani & Áurea Martins – “Cochicho no silêncio vira barulho, irmã”
Vitor Ramil – “Teu vulto”
Yago Oproprio – “Catedrais”
Zé Manoel – “Malaika” [part. Luedji Luna]
Zeca Baleiro & Wado – “Alma turva”
Zécarlos Ribeiro, Ná Ozzetti & Tulipa Ruiz – “Bem humorado”
  

e agora vamos aos discos... como sempre tem gente que emplacou disco e música, gente que só emplacou música, gente que só emplacou disco e assim que a banda toca por aqui. mas gosto sempre de fazer alguns destaques nessa lista porque dentre esses 50 tem alguns que ouvi muito mais que outros. são aqueles discos que pegaram mais, tais como os poderosamente instrumentais Y'Y do pianista pernambucano Amaro Freitas e Canhoto de pé do saxofonista mineiro/paulistano Thiago França. tem o samba baiano de Ederaldo Gentil na voz do jovem Giovani Cidreira em Carnaval eu chego lá. tem o samba carioca de Zé Keti entortado por Jards Macalé e o Sergio Krakowski Trio em Mascarada. tem toda a beleza do cancioneiro de Milton Nascimento no encontro com a cantora, baixista e fã norte-americana Esperanza Spalding em Milton + esperanza. tem excelentes novos trabalhos de jovens ídolos da casa como Novela da Céu, Pedra de selva do Curumin e Digital Belém de Saulo Duarte. tem o estreante paulistano Yago Oproprio, uma espécie de herdeiro de Criolo (tanto nas rimas quanto no canto), em Oproprio. e, por último, o lindo lindíssimo Coral do cantor, compositor e pianista pernambucano Zé Manoel. mas lista completa tá aqui...
 
Álvaro Lancellotti - Arruda, alfazema e guiné
Amaro Freitas - Y’Y
ÀTTØØXXÁ - Summer Groove
Boogarins - Bacuri
Bruna Alimonda - Estado febril
Céu - Novela
Chico Bernardes - Outros fios
Clube do Balanço - Cadê Tereza
Curumin - Pedra de selva
Davi Nadier - Profundhi
Deize Tigrona - Não tem rolê tranquilo
Duda Beat - Tara e tal
Erasmo Carlos - Erasmo Esteves
FBC - Feito à mão
Felipe Cordeiro - Close, drama, revolução & putaria
Filarmônica de Pasárgada - Música infantil para crianças malcriadas
Giovani Cidreira - Carnaval eu chego lá
Hermeto Pascoal - Pra você, Ilza
Josyara - Mandinga multiplicação
Juçara Marçal - DEB RMX
Jup do Bairro - In.corpo.ração
Kamau - Documentário
Liniker - Caju
Maria Beraldo - Colinho
Mascarada: Zé Keti por Sergio Krakowski Trio & Jards Macalé
Matéria Prima - novidadedasantiga
Meno Del Picchia - Maré cheia
Milton + esperanza       
Mombojó - Carne de caju
Momo - Gira
Moreno Veloso - Mundo paralelo
Ná Ozzetti & Luiz Tatit - De lua
Nabru - Desenredo
Nego Gallo - Yopo
Negro Leo - Rela
Orquestra Frevo do Mundo, Pupillo & Davi Moraes - Moraes é frevo
Rashid - Portal
Rodrigo Campos - Pode ser outra beleza
Saulo Duarte - Digital Belém
Silva - Encantado
Slipmani - Até aqui, Slip nos ajudou
SPVIC & Síntese - Olímpico: Fora do Tempo
Tássia Reis - Topo da minha cabeça
Thiago França - Canhoto de pé
Verônica Ferriani - Cochicho no silêncio vira barulho, irmã
Vitor Ramil - Mantra concreto
Yago Oproprio - Opropio
Zé Manoel - Coral
Zeca Baleiro & Wado - Coração sangrento
Zudizilla - Le FauVe 

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

eterna fernandona

mais um frila pra revista Monet e dessa vez o assunto é o aniversário de 95 anos de uma das maiores atrizes da história da humanidade, a muito nossa Fernanda Montenegro. dessa vez não quis fazer apenas uma biografia recheada e entrevistei duas figuras do teatro para falar de Fernandona: o diretor, ator e dramatugro Ivam Cabral (d'Os Satyros, e que fiz perfil em 2018) e a atriz, diretora e dramaturga Érica Montanheiro. segue o texto com fotos de Bob Wolfenson.

Fernanda por Bob Wolfenson, 2024

A DONA DA PALAVRA

Fernanda Montenegro comemora 95 anos de vida e 80 de uma carreira toda dedicada ao texto

“Meu sonho era nunca estrear. Era ficar ensaiando, ensaiando, e aí a coisa ia acontecendo”, confessou certa vez Fernanda Montenegro à sua filha Fernanda Torres. Do alto de seus 95 anos, a grande dama do teatro, do cinema e da TV brasileira, também está comemorando 80 anos de ensaios e estreias. Impossível saber o que mais surpreenderia à pequena Arlette Pinheiro Esteves da Silva, nascida em 16 de outubro de 1929 em Madureira, no Rio de Janeiro: uma vida tão longa, uma carreira tão rica e premiada ou ser reconhecida como Fernanda Montenegro.

O pseudônimo que virou nome foi criação dela própria quando, logo após começar a trabalhar aos 15 anos como locutora e depois atriz na Rádio Ministério da Educação e Saúde (atual Rádio MEC), viu que Arlette Pinheiro não iria muito longe. Pensou em algo grandioso, um nome que poderia ser de uma escritora (ironicamente, muitos e muitos anos depois ela se tornaria um membro imortal da Academia Brasileira de Letras). Da cabeça de Arlette nasceu Fernanda Montenegro, que do rádio passou a atuar regular e apaixonadamente no teatro, onde conheceu seu marido (o ator e diretor Fernando Torres), e na televisão desde seu início no país em 1950. O cinema só viria mais tarde. 

“Minha mãe é um caso sério. E ela é viciada mesmo em teatro. ‘Os teatros estão cheios, minha filha. Cheios!’”, disse Fernanda Torres nos bastidores da apresentação única e gratuita que a mãe fez em agosto deste ano no anfiteatro do Auditório Ibirapuera, em São Paulo. Numa noite quente de domingo, Fernanda Montenegro apresentou A Cerimônia do Adeus - monólogo baseado em textos de Simone de Beauvoir (1908-1986) sobre os últimos anos de vida de seu marido, Jean Paul Sartre (1905-1980) -, para nada menos que 15 mil pessoas.

“Fernanda Montenegro não é apenas uma mestra do teatro, mas também uma guardiã das múltiplas vozes que compõem o Brasil. Ela, ao longo de décadas, manteve uma companhia de teatro que cruzou as fronteiras do Brasil, levando a arte dramática a lugares onde o teatro era, muitas vezes, um raro visitante. Sua dedicação inabalável a esse trabalho itinerante reflete uma compreensão profunda do teatro como um espaço de encontro, de trocas simbólicas e de construção comunitária. Em um país continental como o nosso, onde as desigualdades culturais se manifestam com tanta força, a prática de Fernanda em levar o teatro aos mais variados rincões é uma forma potente de resistência e de valorização da cultura popular”, afirmou Ivam Cabral, ator, dramaturgo e fundador da companhia teatral Os Satyros.

Cabral nunca trabalhou com Fernanda Montenegro, mas após ser impactado por duas peças que viu com ela nos 1980 (As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant e Fedra), teve a rara oportunidade de ser seu aluno em um curso no Teatro Guaíra, em Curitiba. “Foi assim que, por três dias, tive a chance de conhecê-la em uma sala de aula. Aqueles encontros foram inesquecíveis e marcaram profundamente minha trajetória no teatro”.

Petra Von Kant e Fedra estão entre as Fernandas teatrais preferidas de Ivam Cabral, mas ele recorda também de Dona Doida, uma adaptação da obra de Adélia Prado; Dias Felizes, de Samuel Beckett, dividindo palco com o marido Fernando Torres; e a cultuada The Flash and Crash Days, de Gerald Thomas, apenas ela e a filha Fernanda Torres. “No cinema não tem como não dizer que sua atuação em Central do Brasil, de Walter Salles, é absolutamente magistral; e sua Nossa Senhora em O Auto da Compadecida, de Guel Arraes, Adriana Falcão e João Falcão, baseado na obra de Ariano Suassuna, é inesquecível. Ela não é apenas uma atriz que domina sua técnica com maestria, mas uma intérprete que infunde em cada personagem uma complexidade emocional e uma verdade cênica que transcendem o texto e tocam o espectador de forma visceral”.

Já a atriz, dramaturga e diretora Erica Montanheiro pensa um pouco e um pouco mais até chegar à conclusão que “é muito difícil definir a Fernanda, mas ela é certamente uma das principais referências para as atrizes brasileiras. A Dercy Gonçalves, por exemplo, é quem define o tempo da comédia no Brasil. Já a Marília Pera caminha no fio da navalha entre a comédia e o drama. E a Fernanda é o trabalho com a palavra, o poder da palavra, o domínio da palavra”.

Montanheiro também não teve a sorte de trabalhar com Fernanda Montenegro, mas guarda com carinho um encontro fortuito. “Foi no lançamento de um dos livros do Jô Soares, com quem trabalhei durante 11 anos. Estava lá na fila esperando pelo autógrafo quando percebi que quem estava na minha frente era a Fernanda. Quando a chegou a vez de ela pegar o autógrafo do Jô, os dois ficaram conversando e fui ali plateia desse encontro de dois monstros da cultura brasileira”.

E o que mais ela viu de Fernanda Montenegro que a marcou? Montanheiro lembra da “impressionante e inesquecível” montagem de Dias Felizes e da adaptação que Daniela Thomas fez de A Gaivota, de Anton Tchekhov, que trazia, em certo momento, “Dona Fernanda” como uma gaivota literal, fazendo barulhos e correndo pelo palco. “Muito engraçada, maravilhosa. Era algo que ninguém esperava da Dama do Teatro né, mas ela estava ali brincando como uma criança”. Montanheiro lembra ainda de se divertir horrores com personagem libertária que Fernanda Montenegro interpretou na novela Zazá, mas lembra sobretudo de Dora, a protagonista de Central do Brasil. “É um filme muito bonito e a Fernanda cria essa personagem cheia de contradições e com muitas camadas. E ela, ainda por cima, faz um melodrama com muito requinte”.

Fernanda por Bob Wolfenson, 2000

AZAR DO OSCAR

Fernanda Montenegro já era conhecida no teatro e na televisão, e tinha cerca de 35 anos, quando fez sua primeira protagonista para o cinema em A Falecida, adaptação de Nelson Rodrigues sob direção de Leon Hirszman. Suas prioridades sempre foram outras, e outros filmes notáveis só surgiram na virada da década de 1970 para a de 1980: Tudo Bem de Arnaldo Jabor e Eles Não Usam Black-Tie, novamente com Hirszman. 

Uma participação aqui, outra acolá, o tempo foi passando e outra protagonista apareceu somente no final da década de 1990. Sua Dora de Central do Brasil rapidamente alavancou o filme de Walter Salles a outro patamar de densidade dramática, trazendo consigo elogios derramados da crítica, uma fiel legião de fãs e muitas indicações e premiações por todo o mundo (filme e atriz ganharam os principais prêmios do Festival de Berlim, por exemplo). 

Então, quando vieram as indicações ao Oscar, uma nova esperança acendeu no coração do cinéfilo nacional. Se por um lado a estatueta para Melhor Filme Estrangeiro já estava na mão de Roberto Benigni e seu A Vida é Bela, a de Melhor Atriz, tão inesperada, poderia premiar o azarão e reconhecer Fernanda Montenegro mundialmente.

O momento da indicação ao Oscar foi registrado por uma equipe da TV Globo e quando o nome de Fernanda é anunciado, Walter Salles a abraça e ela diz apenas, meio com orgulho e meio com espanto: “Estou ali entre essas divinas criaturas maravilhosas. Louras”. E dá uma risadinha aérea. Suas “competidoras” eram Meryl Streep, Cate Blanchett, Gwyneth Paltrow e Emily Watson.

Mas em 21 de março de 1999, quando Jack Nicholson subiu ao palco do Dorothy Chandler Pavilion, o envelope que trazia em mãos tinha o nome de Gwyneth Paltrow. Foi uma das joias da coroa que o produtor Harvey Weinstein pagou – em termos de festas e agrados para membros da Academia – pelo sucesso de Shakespeare Apaixonado (que ganhou 7 prêmios naquela noite). Fernanda tanto não ligou que, quando um jornalista do New York Daily News perguntou se ela tinha planos para Hollywood, ela desdenhou elegantemente: “No Brasil, eu tenho uma carreira. Na América, eu tenho sotaque”.

Fernanda Montenegro pode não ter dado muita bola para o Oscar perdido, afinal continuou trabalhando incessantemente, mas a torcida brasileira nunca esquece uma injustiça. E não está só, afinal pouco mais de vinte anos depois, a atriz Glenn Close voltou a abrir a ferida em entrevista para a ABC News: “Honestamente, nunca entendi como é possível comparar atuações. Eu me lembro do ano em que Gwyneth Paltrow ganhou da atriz incrível de Central do Brasil. Eu pensei: ‘O quê? Isso não faz sentido’”, confidenciou. Não faz sentido mesmo, Glenn. Nunca fez.

Fernanda por Bob Wolfenson, 1995

terça-feira, 13 de agosto de 2024

eddie murphy ou axel foley, eis a questão

acabei esquecendo de atualizar aqui, mas rolaram mais uns frilas pra revista Monet. na edição de julho teve Eddie Murphy retornando mais uma vez como o icônico detetive Axel Foley em Um Tira da Pesada 4: Axel F. saca só.

UM COMEDIANTE DA PESADA

Quando Eddie Murphy interpretou pela primeira vez o irreverente Axel Foley em Um Tira da Pesada (1984) ele tinha pouco mais de 20 anos. No entanto, do alto de sua juventude, já possuía quatro anos de estrada no programa Saturday Night Live e dois filmes de sucesso (48 Horas e Trocando as Bolas). Mas nada disso chegaria perto da explosão mundial que foi a chegada daquele detetive negro, anárquico e de sorriso largo na branca, milionária e corrupta Beverly Hills. Agora, exatos 40 anos depois, um mais experiente e ainda anárquico Axel Foley retorna ao sol da Califórnia para solucionar novos crimes em Um Tira da Pesada 4, filme de estreia do australiano Mark Molloy. 

Claro que a vida artística de Edward Regan Murphy é muito mais vasta, intensa, irregular e elétrica que suas quatro encarnações como Axel Foley. Novaiorquino do Brooklyn, Eddie Murphy foi o segundo e último filho de Lilian Murphy e Charles Edward Murphy, casal que se separou quando o pequeno Eddie tinha apenas 3 anos. O pai morreria 5 anos depois ao ser esfaqueado por uma amante e, mais ou menos ao mesmo tempo, a mãe ficou doente e Eddie e o irmão Charles passaram uma temporada em um orfanato. Felizmente, a mãe se recuperou, casou de novo e os irmãos voltaram a ter um lar. 

Aos 15, o totalmente irrequieto Eddie, muito influenciado pelos ídolos Richard Pryor e Peter Sellers, encarou um show de talentos no Roosevelt Youth Center e personificou o cantor Al Green dublando o hit “Let’s Stay Together”. As gargalhadas e aplausos em resposta lhe deram a certeza que aquilo seria sua vida. Quatro anos depois, foi chamado para o elenco fixo do Saturday Night Live e rapidamente tornou-se um dos responsáveis por colocar o programa de novo no radar após algumas temporadas desastrosas no final da década de 1970. Nessa época contracenou com os igualmente jovens James Belushi e Julia Louis-Dreyfus (Eddie e Julia voltariam a se encontrar, em 2023, na comédia Certas Pessoas, disponível na Netflix). 

O sucesso de Eddie no Saturday Night Live foi tão rápido que já em seu segundo ano de programa ganhou a primeira chance no cinema. A comédia policial 48 Horas (1982), de Walter Hill, foi o perfeito carro chefe para o humor e o carisma de Eddie (ainda mais contrastando com o turrão Nick Nolte), e o filme entrou para a lista das dez maiores bilheterias do ano. De 1982 a 1988, Eddie Murphy mandava prender e mandava soltar, não tinha pra ninguém, e assim vieram grandes sucessos como Trocando as Bolas e Um Príncipe em Nova York, ambos dirigidos por John Landis, os dois primeiros Um Tira da Pesada, o especial stand-up Sem Censura, O Rapto do Menino Dourado e até um passo em falso, A Melhor Defesa é o Ataque. Sobre este último disse, em programa do David Letterman em 1984, que só aceitou pelo dinheiro e se arrependeu tanto que afirmou nunca mais faria nada parecido. “Quer dizer, só se for muito, muito, muito, muito dinheiro”, brincou. 

Mas nada que é bom dura para sempre e no final da década de 1980 até meados dos anos 1990, Eddie Murphy passou por sua primeira fase em baixa. Tudo começou com seu primeiro (e único) filme como diretor, Os Donos da Noite, que contou com a presença de dois de seus maiores ídolos, Richard Pryor e Redd Foxx, o amigo Arsenio Hall e o irmão Charlie Murphy. Mesmo sendo uma comédia, o público não comprou a personagem de Eddie sem aquele charme debochado que fez sua fama e o fato de ser ambientado nos distantes anos 1930. O filme foi um fracasso de bilheteria. 

Tentando se recuperar de tamanha frustração optou por projetos certeiros e qual não foi sua surpresa quando 48 Horas - Parte 2, novamente sob direção de Walter Hill, e Um Tira da Pesada 3, agora com John Landis atrás das câmeras, também fracassaram. O mesmo aconteceu com Um Vampiro no Brooklyn, comédia de terror dirigida pelo mestre Wes Craven. 

Já na segunda metade da década de 1990, alguns respiros do bom e velho Eddie, tais como O Professor Aloprado (no qual interpretou vários personagens, uma de suas marcas registradas), o delicioso Os Picaretas (escrito e co-estrelado por Steve Martin e dirigido por Frank Oz), e Mulan (seu primeiro trabalho de voz em animação). Aliás, foi Mushu, o pequeno e divertido demônio chinês de Mulan, que abriu as portas para Eddie interpretar o debochadíssimo Burro em Shrek (2001), animação tão bem sucedida que teve mais três longas e inúmeros especiais. 

Fora Shrek e a atuação coadjuvante indicada ao Oscar em Dreamgirls (2006), os anos 2000 e 2010 foram duros para Eddie. Aconteceu de tudo, desde um dos maiores fracassos de bilheteria da história (a ficção científica Pluto Nash) até comédias familiares risíveis (Imagine Só, A Creche do Papai e Mansão Mal Assombrada), passando por roteiros trash (Norbit e O Grande Dave), escolhas furadas (As Mil Palavras e o drama – um drama!? – Mr. Church) e desperdícios de elenco (com Robert De Niro em É Hora do Show, Owen Wilson em Sou Espião e Ben Stiller e Matthew Broderick em Roubo nas Alturas). A situação ficou tão difícil que o ator assumiu uma semi-aposentadoria em parte dos anos 2010. “Fiquei largado no sofá”, disse em inúmeras entrevistas. 

As coisas mudaram de rumo com Meu Nome é Dolemite (2019), primeira parceria do ator com a Netflix e um projeto muito pessoal. Nesta comédia ambientada nos anos 1970, Eddie interpretou Rudy Ray Moore, ator, cantor e produtor de filmes cult como Dolemite e The Human Tornado. Com o sucesso do filme no streaming, o ator conseguiu produzir Um Príncipe em Nova York 2 e agora, novamente pela Netflix, Um Tira da Pesada 4. “Faço filmes desde 1982 e de lá pra cá tiveram períodos quentes e frios, altos e baixos, mas na minha vida tudo acontece em ciclos. Sempre bom lembrar que muita gente não continua fazendo coisas nesse negócio por tanto tempo quanto eu. Então, sucesso é a exceção, não a regra”, afirmou em entrevista para Al Roker no programa Today em 2019. Eddie Murphy está de volta mais uma vez. 


UM BOX DA PESADA

Um Tira da Pesada (Martin Brest, 1984)

A primeira aventura de Axel Foley em Beverly Hills definiu de vez a persona do ator na telona, com seu jeito charmosamente debochado, e rapidamente tornou-se um ícone pop dos anos 1980. São tantas cenas memoráveis, e algumas totalmente improvisadas, que é até difícil escolher uma (e o então diretor iniciante, Martin Brest, conduz tudo muito bem). Quem poderia imaginar que o filme originalmente seria estrelado por Sylvester Stallone? 

Um Tira da Pesada 2 (Tony Scott, 1987)

Os produtores do segundo filme de Axel Foley decidiram chamar Tony Scott, que acabara de vir do sucesso Top Gun, para injetar ainda mais ação no humor de Eddie. O resultado foi um novo sucesso de bilheteria, mesmo com problemas no roteiro e atrasos frequentes do ator para as filmagens. 

Um Tira da Pesada 3 (John Landis, 1994)

Eddie Murphy não vivia uma fase boa na carreira quando aceitou encarar Axel Foley novamente e parecia uma boa ideia chamar John Landis para dirigí-la. Landis tinha timing de comédia e já havia trabalhado com Eddie em Trocando as Bolas e Um Príncipe em Nova York

segunda-feira, 10 de junho de 2024

muitas novidades no front

a querida revista Monet é certeza de pauta divertida, sem grilos. agora na edição de junho saiu texto meu costurando o ator Wagner Moura, o diretor Alex Garland e o bem sucedido filme Guerra Civil (tanto financeiramente quanto em termos de qualidade). saca só.

UM BRASILEIRO NA LINHA DE FRENTE

Wagner Moura é um dos protagonistas do thriller político Guerra Civil que estreia este mês na Claro TV+ após liderar as bilheterias nos EUA

Com pouco mais de uma década trabalhando em produções hollywoodianas, tanto no cinema quanto na TV, o ator Wagner Moura mantém os mesmos princípios de sua carreira no Brasil: não liga para números, não planeja estrategicamente próximos passos, não vive para as redes socias, não tem medo do risco, e trabalha com quem gosta, ou é amigo ou admira. Seu mais recente filme, Guerra Civil, tem um pouco de tudo isso, mas qual não foi a surpresa para todos os envolvidos quando o longa independente dirigido por Alex Garland se tornou o número 1 das bilheterias americanas por duas semanas seguidas.

Ao custo de US$ 50 milhões, Guerra Civil é (até agora) o filme mais caro produzido pela independente e cultuada A24 – a mesma de Hereditário, Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo e Vidas Passadas –, mas em pouco menos de um mês conseguiu arrecadar mais de US$ 100 milhões globalmente. O termômetro desse sucesso foi que parte do elenco seguiu sendo chamado para programas televisivos, matutinos e talk shows, após a estreia (o costume é um batidão intenso de divulgação na semana que antecede). Daí Wagner Moura aproveitou os bons ventos, deixou a timidez de lado e fez de um tudo, de mostrar no pé como se samba na Bahia até a se rasgar para Whoopi Goldberg enquanto fã (Whoopi é da bancada do programa The View).

“Estou muito orgulhoso deste filme. Eu sabia desde o início – acho que todos nós sabíamos – que não seria um trabalho comum. O que venho tentando fazer como ator é encontrar algo que seja oportuno, mas também interessante para as pessoas interagirem. Nunca gostei da ideia de que para fazer algo popular é preciso fazer algo bobo. Acho que Alex [Garland] acertou esse equilíbrio com Guerra Civil. Ele fez um filme que é politicamente relevante, que captura o espírito do tempo e também é interessante para quem quer apenas se divertir”, disse Moura em entrevista para Esquire.

O ator baiano é um dos quatro jornalistas – os outros são Kirsten Dunst, Cailee Spaeny e Stephen McKinley Henderson – que atravessam os Estados Unidos rumo a Washington em meio a uma literal guerra civil. O diretor e roteirista Alex Garland não explica e nem quer explicar como o país chegou a esse destino, quem são as forças oponentes, suas ideologias. Seu interesse parece estar em como um evento extremo assim afeta pessoas comuns (tanto os jornalistas quanto os retratados, civis ou militares).

“Pra mim o filme funciona também como uma reportagem que mostra uma série de eventos buscando tirar qualquer viés ideológico, objetivamente. Do jeito que um jornalista ‘das antigas’ faria. Mas pra ajudar nisso busquei nos personagens retratar diferentes fases da vida de um jornalista, desde o veterano, sábio e cansado [Henderson] até a intensa e frágil freelancer [Spaeny], passando pelos maduros e calejados [Dunst e Moura]”, afirmou Garland em entrevista para o programa de rádio/internet Q with Tom Power.

Fã de filmes politicamente combativos como A Batalha de Argel de Gillo Pontecorvo e Z de Costa-Gavras, Moura foi pelo mesmo caminho quando decidiu estrear como diretor em Marighella. Mas a abordagem neutra escolhida por Alex Garland acabou o interessando, pois acreditou que deixava espaço para outras reflexões. Os dois iriam trabalhar juntos na minissérie Devs, que Garland fez logo após Ex Machina e Aniquilação, mas a agenda do ator não permitiu. Ficou no ar um ‘até logo’.

Garland e Moura voltaram a se encontrar para a formação do elenco de Guerra Civil e o encontro deu tão certo que o ator está na cena preferida do diretor no filme: uma do personagem gritando de dor e frustração após a morte de um colega, com tanques e soldados passando logo atrás. Segundo afirmou ao canal CineFix, a cena não estava no roteiro e surgiu em meio à confusão de extras e maquinário militar. “Tinha alguma coisa ali. Aí falei pro Wagner, vai lá, vai lá e grita! Ele se preparou e gritou com força. Quando vi a câmera nele, os tanques passando, a poeira subindo, a dor no rosto dele. Quando vi tudo isso, pensei que não só aquela cena tinha que estar no filme como ela é uma espécie de resumo de tudo que aconteceu até ali”, relembrou Garland.

a produtora Emile Lesclaux, o diretor Kléber Mendonça Filho e o ator Wagner Moura

E AGORA, WAGNER?

Após toda a intensa tour de divulgação de Guerra Civil – que trouxe o ator de volta ao Brasil acompanhado da jovem colega Cailee Spaeny –, Moura já sabe o que fará em seguida. Nos Estados Unidos estará ao lado de Adria Arjona no romance dramático Say Her Name, dirigido pelo mexicano Geraldo Naranjo (Miss Bala). E de volta ao Brasil, onde não filma desde Praia do Futuro de Karim Ainouz, pouco mais de dez anos atrás, trabalhará pela primeira vez com Kléber Mendonça Filho em mais um thriller político, O Agente Secreto. Também no elenco, Maria Fernanda Cândido. 

Ainda não sabe se estará na segunda temporada da série Sr. e Sra. Smith, com Donald Glover e Maya Esrkine, pois seu personagem foi, aparentemente, assassinado. Mas sabe muito bem que já tem o projeto para o seu segundo filme como diretor. Baseado em livro de Stewart O’Nan, Last Night at the Lobster acompanha o gerente de um restaurante de shopping no último turno antes do estabelecimento fechar de vez. Segundo Moura é uma espécie de “filme de Natal anti-capitalista” que o colocará diante de dois desafios: dirigir a si próprio e dirigir em inglês. 

“Estou aqui porque Narcos mudou minha vida de maneiras muito diferentes. As pessoas sabiam quem eu era. Tornou-se um sucesso nos EUA, o Pablo Escobar triste virou meme. Abriu oportunidades de trabalho às quais eu não tinha prestado atenção antes. E agora eu moro aqui. Meus filhos moram aqui. O Brasil está em melhor situação e sempre nos perguntamos se deveríamos voltar. Mas as crianças não querem”, afirmou Moura na mesma entrevista para a Esquire.

Wagner dando uma checada na careca de Matt Damon em Elysium

INVASÃO COM ARROZ E FEIJÃO

Wagner Moura não é um novato nas bilheterias americanas. Seu primeiro filme hollywoodiano, a ficção científica Elysium de Neill Blomkamp, arrecadou U$29,8 milhões em seu final de semana de estreia em 2013. Mas era um papel pequeno e essa segunda parte da carreira do ator estava apenas começando. Quem o ajudou muito nesse início foi a colega e atriz Alice Braga, que também estava no elenco de Elysium (os dois contracenaram juntos em Cidade Baixa, em meados dos anos 2000).

Alice Braga, aliás, é a atriz brasileira mais presente em grandes bilheterias americanas nas últimas décadas. Tudo começou com Eu Sou a Lenda, depois Elysium, Esquadrão Suicida e Predadores. Antes dela, só mesmo Rodrigo Santoro que surgiu em um papel pequeno em As Panteras, e então cresceu (literalmente) em 300 e na sequência 300 – A Ascensão do Império, para então contracenar com Will Smith e Margot Robbie em Golpe Duplo.

Só com Braga e Santoro já são oito filmes, então Moura se reuniu definitivamente ao time com Guerra Civil, pouco depois de outra novata, Bruna Marquezine, chegar em ritmo de ação e super herói com Besouro Azul. A invasão brasileira a Hollywood está, definitivamente, ganhando corpo.