quarta-feira, 10 de abril de 2019

para além das grades

taí outro daqueles frilas que aparecem do nada e se transformam rapidamente numa grata surpresa. Renata Assumpção, a amiga e colega dos tempos da comunicação digital na Prefeitura de São Paulo [gestão Haddad, claro], me chamou lá no Instituto Alana pra falar sobre a ideia de um livro que iria registrar o histórico habeas corpus coletivo para mães e crianças que o Alana e outras instituições emplacaram no STF no início de 2018. entre as muitas partes técnicas que deveriam entrar na publicação gostariam também de uma reportagem mais "humana", com personagem, etc. e foi assim que embarquei na aventura do livro 'Pela Liberdade – A História do Habeas Corpus Coletivo Para Mães e Crianças', e conheci e contei a história de Palloma.

realizado pelo Programa Prioridade Absoluta, do Instituto Alana, e pelo Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos [CADhu], o livro está disponível para download gratuito [basta clicar na imagem abaixo], mas aqui segue meu texto-reportagem.



PARA ALÉM DAS GRADES

“De quem é essa coxinha? De quem é? A mamãe morde”. A mamãe, no caso, é Palloma Carolina Gonçalves Coelho, 34 anos. A coxinha gostosa é de seu segundo filho, Otto, que completou 7 meses em dezembro de 2018. Sua história poderia ser como a de muitas outras mulheres brasileiras se em 28 de dezembro de 2017 não tivesse sido presa. À época, Palloma estava grávida de 3 meses.

Nascida em Guarulhos, mas criada na Zona Leste de São Paulo, Palloma é a caçula de três filhos, perdeu o pai quanto tinha 4 anos e começou a trabalhar aos 13. Foi atendente em papelaria, pelejou em oficina de costura, vendeu imãs de geladeira na Rua 25 de Março, ganhou seu primeiro registro em carteira na C&A, foi bartender e secretária de firma de advocacia no Itaim Bibi. Em meio a isso tudo teve seu primeiro filho, Giulio, aos 21 anos, fruto de uma relação que não durou muito, ou melhor, durou quase nada. E a vida seguia tranquila nas lutas diárias de uma mulher trabalhadora.

Até que, em 2010, quando estava trabalhando como recepcionista em um salão de beleza no Jardim Anália Franco, a vida de Palloma virou de ponta cabeça. É que as funcionárias recebiam o salário em dinheiro vivo num determinado dia do mês, tal informação saiu do estabelecimento, chegou a ouvidos mal intencionados e,no dia 20 de novembro daquele ano, aconteceu um assalto. Por motivos legais e por ter apenas um lado da história, o evento pode ser resumido da seguinte forma: conhecidos/familiares de Palloma planejaram o assalto, ela ficou sabendo, não alertou os patrões, pois estavam sendo ameaçada, e acabou sendo acusada pelo Ministério Público de mandante do crime. O processo todo foi tão mal conduzido e investigado que é difícil imaginar como foi para frente, mas o fato é que Palloma foi sentenciada a 7 anos. “Sempre trabalhei para ter as minhas coisas. Sempre batalhei. Meu único crime foi a omissão”, afirmou, chorando aos soluços, em longa conversa.

Entre o assalto em novembro de 2010 e a prisão em dezembro de 2017, muita coisa aconteceu na vida de Palloma: deixou o filho mais velho para a mãe cuidar, morou um tempo em Ilha Bela, tentou a sorte no Rio de Janeiro, recorreu a diversas instâncias até chegar ao STF e, no dia do seu aniversário, em 2013, sofreu uma parada cardíaca ao saber que em uma das revisões sua sentença foi de 7 para 9 anos (em outra revisão, a pena voltou para 7 anos). “Nesses anos todos perdi trabalhos, perdi documentos, não posso votar, não tenho direito a nada. Anulei minha vida”, disse, ainda soluçando. Mas a pior parte de seu pesadelo ainda estava por vir.

A PRISÃO E O NASCIMENTO

Palloma já sabia que estava grávida de Otto quando voltou a São Paulo para reencontrar o filho mais velho, Giulio. Até hoje ela não sabe como aconteceu e quem foi, mas o fato é que uma denúncia anônima pela internet a fez ser presa no final de dezembro de 2017, poucos dias antes da passagem de ano.

“Pensei que fosse morrer. O policial disse que eu ia ficar aquela noite na 24° DP e que lá me deixariam ir ao banheiro das investigadoras porque estava grávida e não iam me deixar usar o corró. E que fariam de tudo pra me levar para o Morumbi no dia seguinte porque lá dava pra tomar banho, tinha cama, comida. Fui levada sem ver meu marido, meu filho, minha mãe, sem meus remédios. Agora me pergunta se, chegando lá, o carcereiro abriu a porta pr’eu usar o banheiro das investigadoras? Lá dentro tudo sujo, tudo cagado, mijado, com barata subindo do buraco que tem no chão. Eu gritava. E o carcereiro falava: ‘você faz xixi onde quiser ou você acha que vou ficar abrindo e fechando cela pra você, bandida!’ Já começou a falta de respeito aí”.

No dia seguinte, o marido de Palloma levou os remédios para pressão e coração, e ela foi transferida para outra DP, a do Morumbi, onde ficou de 29 de dezembro a 4 de janeiro de 2018. “Então fui transferida pro CDP do Butantã e lá me davam leite azedo. Se não fossem as outras presas me darem leite em pó eu, grávida de 3 pra 4 meses, iria continuar tomando leite azedo. Não sei que história é essa dos presos custarem 3 mil reais pro Estado, porque o leite é azedo, a comida fede, a carne vem estragada, e tem um monte de percevejos, banheiro com bicho saindo dos buracos. E quando você é grávida você não fica presa com outras presas comuns. Você fica num prédio amarelo chamado CR, Centro de Reabilitação. Fiquei presa com mulheres com tuberculose, sífilis, HIV, meninas grávidas que vieram da Cracolândia e gente louca. Antes tivesse ficado presa com as presas normais porque elas pelo menos dão comida, te ajudam”.

Medicações que grávidas costumam tomar, tal como sulfato ferroso, AS e ácido fólico, não eram fornecidas na detenção e a própria família de Palloma se encarregou de levar. Ela também precisava tomar Propanolol, um anti-hipertensivo indicado para o tratamento e prevenção do infarto do miocárdio e arritmias cardíacas, e esse o sistema ofereceu, só que a um preço muito caro. “Eu tinha que tomar 20 miligramas de manhã e 20 à noite. Ao invés de me darem dois comprimidos, de 10 miligramas cada, a enfermeira da unidade me prescreveu dois comprimidos de 40 miligramas pra manhã e outros dois pra noite. 160 miligramas ao total. Meu bebê ficou com taquicardia. Ele já estava com desenvolvimento abaixo da média por ser cardíaca e ter problemas de pressão e na tireoide. Comecei sentir muita dor no tórax”.

Foram cerca de dez dias tomando a dosagem errada, e quando Palloma foi se consultar com sua ginecologista, a médica ficou alarmada e disse que ela precisava ser internada imediatamente (falando nisso, a família precisou lutar judicialmente para que ela fosse atendida fora da detenção e mesmo assim ela era algemada para o transporte e ficava sem alimentação). “Ela até escreveu uma carta para o juiz falando do desenvolvimento, do sofrimento fetal, etc. Minha cardiologista também escreveu. Fui internada numa quarta e uma semana depois, em 13 de abril, recebi o benefício da prisão domiciliar, mas me deram com uma condição: 30 dias após o parto eu teria que me apresentar com o bebê na unidade”. Quando o inferno parecia ter acabado...

Mas pelo menos Palloma agora estava em casa com o marido, a mãe, o filho mais velho, e podendo se cuidar na reta final da gravidez, graças aos diagnósticos das médicas e à ação da Defensoria Pública. “No final de abril, começo de maio, comecei a sentir que minha barriga estava murchando e no ultrassom foi constatado que o líquido amniótico estava baixando. Se eu tivesse ficado presa meu filho teria morrido na minha barriga porque minha bolsa secou. Minha ginecologista até disse que, segundo a experiência dela, isso aconteceu por causa do erro do Propanolol”. Palloma estava de 35 semanas, mas sua barriga parecia de 27 semanas, então decidiram por adiantar o nascimento de Otto em quase um mês.

“Otto estava previsto pra nascer 20 de junho, não 15 de maio, e por ser prematuro ainda ficou internado 17 dias numa UTI Neonatal, entubado. E eu pensando o tempo todo que deveria voltar à prisão com aquele bebê tão frágil. Imagine o pesadelo que enfrentei”. Com ajuda da família e da Defensoria Pública, Palloma conseguiu protelar o retorno à prisão – afinal, sua sentença já era em regime semi-aberto – para cuidar de Otto.

“Cadeia não é pra ser boa, concordo. Mas precisa reeducar e não castigar mais. No caso de grávidas, por exemplo. Tinha uma no meu quarto que enquanto ela não desmaiou, eles não a levaram pra ganhar bebê. Teve outra, moradora de rua, que foi levada para um hospital em Osasco, mas não tinham vaga e a mandaram de volta praticamente com o bebê saindo. Ele nasceu depois com sífilis porque não teve tratamento. Fora que não mandam as roupas que são doadas pra Casa Mãe, e não repassam os leites que são doados. Tudo isso que estou falando eu vi, não me contaram. É tudo muito desumano”.

HABEAS CORPUS COLETIVO

No início de fevereiro de 2018, enquanto Palloma estava em meio ao seu inferno, Jéssica Monteiro entrou no seu. Moradora de uma ocupação no Centro de São Paulo, a jovem de 24 anos estava grávida de quase 9 meses, além de ter um filho de 3 anos, quando policiais a prenderam em flagrante sob acusação de tráfico de drogas, pois encontraram 90g de maconha na ocupação. Logo que chegou ao Distrito Policial começou a sentir contrações e no dia seguinte, 11 de fevereiro, foi levada ao hospital e assim nasceu Enrico. Dois dias depois, a Justiça de São Paulo a manteve presa com seu filho recém-nascido por considerá-la de “alta periculosidade”.

Imagens de Jéssica sentada, atrás das grades, em um colchão no chão com o pequeno Enrico no colo foram parar nos jornais e TVs. A repercussão mobilizou a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil que conseguiu um habeas corpus garantindo prisão domiciliar a Jéssica enquanto espera o julgamento.


Toda essa tragédia durou longos seis dias, e pode ter ajudado a sensibilizar o Supremo Tribunal Federal. Afinal, em 20 de fevereiro, poucos dias depois da soltura de Jéssica, a 2ª Turma do STF julgou habeas corpus coletivo impetrado pelo Coletivo de Advogados em Direitos Humanos (CADHu) para que mulheres presas provisoriamente  e adolescentes internadas que estejam grávidas ou tenham filhos de até 12 anos tenham direito a prisão domiciliar (como, inclusive, já estabelece o Marco Legal da Primeira Infância).

Então, pela primeira vez em sua história, o STF reconheceu um habeas corpus coletivo. E ainda por cima atendeu o pedido quase integralmente (colocaram restrições em relação à natureza do crime). No voto de 34 páginas, o ministro e relator do processo Ricardo Lewandowski se mostrou sensível “a duríssima - e fragorosamente inconstitucional - realidade em que vivem as mulheres presas, a qual já comportou partos em solitárias sem nenhuma assistência médica ou com a parturiente algemada ou, ainda, sem a comunicação e presença de familiares”. E o ministro segue em choque com todas as informações, relatos e números que lhe foram entregues, afinal “a isso soma-se a completa ausência de cuidado pré-natal (acarretando a transmissão evitável de doenças graves aos filhos, como sífilis, por exemplo), a falta de escolta para levar as gestantes a consultas médicas, não sendo raros partos em celas, corredores ou nos pátios das prisões, sem contar os abusos no ambiente hospitalar, o isolamento, a ociosidade, o afastamento abrupto de mães e filhos, a manutenção das crianças em celas, dentre outras atrocidades. Tudo isso de forma absolutamente incompatível com os avanços civilizatórios que se espera tenham se concretizado neste século XXI”.

Em seu voto, Lewandowski afirma que tal decisão reforça “a importância de, num crescente cenário de uma maior igualdade de gênero, se conferir atenção especial à saúde reprodutiva das mulheres”. A estimativa é que a decisão possa beneficiar cerca de 4500 mulheres (sendo que 622 grávidas/lactantes), aproximadamente 10% do total de presas do Brasil, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).

São Jéssicas, Valérias, Desirées, Jaquelinas, Cláudias, Beneditas, Marias, muitas Marias, que não sentirão na pele o que é ter sua pena transferida, pelo Estado, para o filho; que poderão cumprir sua pena de forma um pouco mais digna. Quer dizer, seria assim se na teoria a prática não fosse outra; afinal, inúmeros Tribunais de Justiça espalhados pelo Brasil continuam se recusando a seguir o Marco Legal da Primeira Infância e a decisão do STF.

“Diversos juízes têm reiteradamente negado a substituição da prisão preventiva para prisão domiciliar alegando: a) ter sido o crime praticado com grave ameaça ou violência; b) ser o tráfico um crime grave; c) ordem pública; etc. Tendo em vista essas negativas genéricas reiteradas, o Ministro Lewandowski proferiu nova decisão informando que o fato de haver sentença condenatória não impedia a substituição [da prisão preventiva para prisão domiciliar], bem como o fato de a infração ser caracterizada como tráfico de drogas, não impedia por si só a liberdade entre outras ponderações”, explicou Leonardo Biagioni de Lima, da Defensoria Pública de São Paulo.

Otto e Palloma, livres

AGUARDANDO A JUSTIÇA

O habeas corpus coletivo não se aplica ao caso de Palloma, pois a sentença que recebeu é definitiva. O pesadelo ainda não acabou, mas pelo menos ela está aguardando seu desfecho em liberdade e com forças para retomar a vida própria. E, melhor de tudo, com Otto nos braços. Só vai realmente acordar quando souber se precisará cumprir o restante da pena – algo em torno de 60 dias – encarcerada ou não. Deseja apenas estar quites com o sistema e pronto, ponto final. É nisso que pensa.

“Por ter nascido prematuro, Otto tem o pulmão meio fragilizado, perde fôlego quando chora. Fora isso está bem de saúde, é esperto, safadinho e come de tudo. Deus permitiu que entrasse num vale de sombras com um anjo dentro da minha barriga. Se não fosse meu filho estaria naquele inferno até hoje. Otto é minha vitória e não existe vitória sem luta né. Só que quero voltar a sonhar grande”. Palloma não quer mais viver de migalhas, tal qual Jéssica e tantas outras mães que lutam pelo melhor para si e para os filhos, independente de erros ou injustiças, livres de grades.

p.s.: esse texto foi entregue em janeiro e de lá pra cá, Palloma está definitivamente livre.