segunda-feira, 15 de julho de 2019

uma música, muitas línguas

existem muitas músicas que atravessaram tempo, espaço e culturas, mas o caso que quero trazer aqui é de uma maravilhosa canção cubana gravada no México, transportada para Benin, refeita em Londres e traduzida pela Bahia. é o caso de "Yiri Yiri Bon" ou "Yiri Yiri Boum", tanto faz [não consegui achar nenhuma explicação pra esse título].

composta pelo cubano naturalizado mexicano Silvestre Méndez López, "Yiri Yiri Bon" foi gravada pelo também cubano Beny Moré enquanto este passava uma temporada no México. o registro aconteceu em algum momento entre 1949 e 1951 - não consegui uma info mais exata - e Moré foi acompanhado pela Orquestra Rafael de Paz. desde sua gênese, "Yiri Yiri Bon" é uma espécie muito particular da mistura afrocaribenha. saca só.



a música fez um puta sucesso no Caribe e foi cantada por gente como Célia Cruz, Ray Barreto, Antonio Machin, Eliades Ochoa e Tito Puente. fez tanto sucesso que atravessou o Atlântico e chegou ao Benin via Gnonnas Pedro. gravada entre 1965 e 1975, e agora chamada de "Yiri Yiri Boum", a música não mudou muito de sua versão original, mas ganhou algumas delicadas pinceladas de highlife [gênero anterior ao afrobeat e que fez muito sucesso no final dos anos 1960 e início dos anos 1970 em Gana, Benin, Togo e Nigéria].



salto no tempo para 2004 quando músicos cubanos radicados em Londres montaram o grupo Ska Cubano e em seu disco de estreia gravaram uma versão mais rápida e meio dancehall pra "Yiri Yiri Boum".



então chegou o ano da graça de 2012 e os irmãos Gileno e Gilmar Gomes fizeram uma versão em português e o que era "Yiri Yiri Boum" virou "Ziriguidum". então a banda Filhos de Jorge gravou e a música foi um baita sucesso no carnaval de 2013 [tanto que ganhou na votação popular do Bahia Folia 2013 promovido pela Rede Bahia].



o sucesso de "Ziriguidum" foi tão grande que chegou ao funk paulistano sendo sampleada, em 2013, por MC 2K e se transformou em "Ziguiriguidum".



então chegamos ao ano de 2019 e "Yiri Yiri Boum" ganhou mais uma regravação e entrou em trilha de novela global. quem assina essa versão bem fiel à original é a dupla/banda Dois Africanos formada aqui no Brasil, mais precisamente na Paraíba, por Opai Big Big - que é de Benin como Gnonnas Pedro - e Izzi Mistura - que é do Togo.



e isso é apenas um breve apanhado de uma música de aproximadamente 70 anos que segue linda, divertida e atual.

quarta-feira, 10 de abril de 2019

para além das grades

taí outro daqueles frilas que aparecem do nada e se transformam rapidamente numa grata surpresa. Renata Assumpção, a amiga e colega dos tempos da comunicação digital na Prefeitura de São Paulo [gestão Haddad, claro], me chamou lá no Instituto Alana pra falar sobre a ideia de um livro que iria registrar o histórico habeas corpus coletivo para mães e crianças que o Alana e outras instituições emplacaram no STF no início de 2018. entre as muitas partes técnicas que deveriam entrar na publicação gostariam também de uma reportagem mais "humana", com personagem, etc. e foi assim que embarquei na aventura do livro 'Pela Liberdade – A História do Habeas Corpus Coletivo Para Mães e Crianças', e conheci e contei a história de Palloma.

realizado pelo Programa Prioridade Absoluta, do Instituto Alana, e pelo Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos [CADhu], o livro está disponível para download gratuito [basta clicar na imagem abaixo], mas aqui segue meu texto-reportagem.



PARA ALÉM DAS GRADES

“De quem é essa coxinha? De quem é? A mamãe morde”. A mamãe, no caso, é Palloma Carolina Gonçalves Coelho, 34 anos. A coxinha gostosa é de seu segundo filho, Otto, que completou 7 meses em dezembro de 2018. Sua história poderia ser como a de muitas outras mulheres brasileiras se em 28 de dezembro de 2017 não tivesse sido presa. À época, Palloma estava grávida de 3 meses.

Nascida em Guarulhos, mas criada na Zona Leste de São Paulo, Palloma é a caçula de três filhos, perdeu o pai quanto tinha 4 anos e começou a trabalhar aos 13. Foi atendente em papelaria, pelejou em oficina de costura, vendeu imãs de geladeira na Rua 25 de Março, ganhou seu primeiro registro em carteira na C&A, foi bartender e secretária de firma de advocacia no Itaim Bibi. Em meio a isso tudo teve seu primeiro filho, Giulio, aos 21 anos, fruto de uma relação que não durou muito, ou melhor, durou quase nada. E a vida seguia tranquila nas lutas diárias de uma mulher trabalhadora.

Até que, em 2010, quando estava trabalhando como recepcionista em um salão de beleza no Jardim Anália Franco, a vida de Palloma virou de ponta cabeça. É que as funcionárias recebiam o salário em dinheiro vivo num determinado dia do mês, tal informação saiu do estabelecimento, chegou a ouvidos mal intencionados e,no dia 20 de novembro daquele ano, aconteceu um assalto. Por motivos legais e por ter apenas um lado da história, o evento pode ser resumido da seguinte forma: conhecidos/familiares de Palloma planejaram o assalto, ela ficou sabendo, não alertou os patrões, pois estavam sendo ameaçada, e acabou sendo acusada pelo Ministério Público de mandante do crime. O processo todo foi tão mal conduzido e investigado que é difícil imaginar como foi para frente, mas o fato é que Palloma foi sentenciada a 7 anos. “Sempre trabalhei para ter as minhas coisas. Sempre batalhei. Meu único crime foi a omissão”, afirmou, chorando aos soluços, em longa conversa.

Entre o assalto em novembro de 2010 e a prisão em dezembro de 2017, muita coisa aconteceu na vida de Palloma: deixou o filho mais velho para a mãe cuidar, morou um tempo em Ilha Bela, tentou a sorte no Rio de Janeiro, recorreu a diversas instâncias até chegar ao STF e, no dia do seu aniversário, em 2013, sofreu uma parada cardíaca ao saber que em uma das revisões sua sentença foi de 7 para 9 anos (em outra revisão, a pena voltou para 7 anos). “Nesses anos todos perdi trabalhos, perdi documentos, não posso votar, não tenho direito a nada. Anulei minha vida”, disse, ainda soluçando. Mas a pior parte de seu pesadelo ainda estava por vir.

A PRISÃO E O NASCIMENTO

Palloma já sabia que estava grávida de Otto quando voltou a São Paulo para reencontrar o filho mais velho, Giulio. Até hoje ela não sabe como aconteceu e quem foi, mas o fato é que uma denúncia anônima pela internet a fez ser presa no final de dezembro de 2017, poucos dias antes da passagem de ano.

“Pensei que fosse morrer. O policial disse que eu ia ficar aquela noite na 24° DP e que lá me deixariam ir ao banheiro das investigadoras porque estava grávida e não iam me deixar usar o corró. E que fariam de tudo pra me levar para o Morumbi no dia seguinte porque lá dava pra tomar banho, tinha cama, comida. Fui levada sem ver meu marido, meu filho, minha mãe, sem meus remédios. Agora me pergunta se, chegando lá, o carcereiro abriu a porta pr’eu usar o banheiro das investigadoras? Lá dentro tudo sujo, tudo cagado, mijado, com barata subindo do buraco que tem no chão. Eu gritava. E o carcereiro falava: ‘você faz xixi onde quiser ou você acha que vou ficar abrindo e fechando cela pra você, bandida!’ Já começou a falta de respeito aí”.

No dia seguinte, o marido de Palloma levou os remédios para pressão e coração, e ela foi transferida para outra DP, a do Morumbi, onde ficou de 29 de dezembro a 4 de janeiro de 2018. “Então fui transferida pro CDP do Butantã e lá me davam leite azedo. Se não fossem as outras presas me darem leite em pó eu, grávida de 3 pra 4 meses, iria continuar tomando leite azedo. Não sei que história é essa dos presos custarem 3 mil reais pro Estado, porque o leite é azedo, a comida fede, a carne vem estragada, e tem um monte de percevejos, banheiro com bicho saindo dos buracos. E quando você é grávida você não fica presa com outras presas comuns. Você fica num prédio amarelo chamado CR, Centro de Reabilitação. Fiquei presa com mulheres com tuberculose, sífilis, HIV, meninas grávidas que vieram da Cracolândia e gente louca. Antes tivesse ficado presa com as presas normais porque elas pelo menos dão comida, te ajudam”.

Medicações que grávidas costumam tomar, tal como sulfato ferroso, AS e ácido fólico, não eram fornecidas na detenção e a própria família de Palloma se encarregou de levar. Ela também precisava tomar Propanolol, um anti-hipertensivo indicado para o tratamento e prevenção do infarto do miocárdio e arritmias cardíacas, e esse o sistema ofereceu, só que a um preço muito caro. “Eu tinha que tomar 20 miligramas de manhã e 20 à noite. Ao invés de me darem dois comprimidos, de 10 miligramas cada, a enfermeira da unidade me prescreveu dois comprimidos de 40 miligramas pra manhã e outros dois pra noite. 160 miligramas ao total. Meu bebê ficou com taquicardia. Ele já estava com desenvolvimento abaixo da média por ser cardíaca e ter problemas de pressão e na tireoide. Comecei sentir muita dor no tórax”.

Foram cerca de dez dias tomando a dosagem errada, e quando Palloma foi se consultar com sua ginecologista, a médica ficou alarmada e disse que ela precisava ser internada imediatamente (falando nisso, a família precisou lutar judicialmente para que ela fosse atendida fora da detenção e mesmo assim ela era algemada para o transporte e ficava sem alimentação). “Ela até escreveu uma carta para o juiz falando do desenvolvimento, do sofrimento fetal, etc. Minha cardiologista também escreveu. Fui internada numa quarta e uma semana depois, em 13 de abril, recebi o benefício da prisão domiciliar, mas me deram com uma condição: 30 dias após o parto eu teria que me apresentar com o bebê na unidade”. Quando o inferno parecia ter acabado...

Mas pelo menos Palloma agora estava em casa com o marido, a mãe, o filho mais velho, e podendo se cuidar na reta final da gravidez, graças aos diagnósticos das médicas e à ação da Defensoria Pública. “No final de abril, começo de maio, comecei a sentir que minha barriga estava murchando e no ultrassom foi constatado que o líquido amniótico estava baixando. Se eu tivesse ficado presa meu filho teria morrido na minha barriga porque minha bolsa secou. Minha ginecologista até disse que, segundo a experiência dela, isso aconteceu por causa do erro do Propanolol”. Palloma estava de 35 semanas, mas sua barriga parecia de 27 semanas, então decidiram por adiantar o nascimento de Otto em quase um mês.

“Otto estava previsto pra nascer 20 de junho, não 15 de maio, e por ser prematuro ainda ficou internado 17 dias numa UTI Neonatal, entubado. E eu pensando o tempo todo que deveria voltar à prisão com aquele bebê tão frágil. Imagine o pesadelo que enfrentei”. Com ajuda da família e da Defensoria Pública, Palloma conseguiu protelar o retorno à prisão – afinal, sua sentença já era em regime semi-aberto – para cuidar de Otto.

“Cadeia não é pra ser boa, concordo. Mas precisa reeducar e não castigar mais. No caso de grávidas, por exemplo. Tinha uma no meu quarto que enquanto ela não desmaiou, eles não a levaram pra ganhar bebê. Teve outra, moradora de rua, que foi levada para um hospital em Osasco, mas não tinham vaga e a mandaram de volta praticamente com o bebê saindo. Ele nasceu depois com sífilis porque não teve tratamento. Fora que não mandam as roupas que são doadas pra Casa Mãe, e não repassam os leites que são doados. Tudo isso que estou falando eu vi, não me contaram. É tudo muito desumano”.

HABEAS CORPUS COLETIVO

No início de fevereiro de 2018, enquanto Palloma estava em meio ao seu inferno, Jéssica Monteiro entrou no seu. Moradora de uma ocupação no Centro de São Paulo, a jovem de 24 anos estava grávida de quase 9 meses, além de ter um filho de 3 anos, quando policiais a prenderam em flagrante sob acusação de tráfico de drogas, pois encontraram 90g de maconha na ocupação. Logo que chegou ao Distrito Policial começou a sentir contrações e no dia seguinte, 11 de fevereiro, foi levada ao hospital e assim nasceu Enrico. Dois dias depois, a Justiça de São Paulo a manteve presa com seu filho recém-nascido por considerá-la de “alta periculosidade”.

Imagens de Jéssica sentada, atrás das grades, em um colchão no chão com o pequeno Enrico no colo foram parar nos jornais e TVs. A repercussão mobilizou a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil que conseguiu um habeas corpus garantindo prisão domiciliar a Jéssica enquanto espera o julgamento.


Toda essa tragédia durou longos seis dias, e pode ter ajudado a sensibilizar o Supremo Tribunal Federal. Afinal, em 20 de fevereiro, poucos dias depois da soltura de Jéssica, a 2ª Turma do STF julgou habeas corpus coletivo impetrado pelo Coletivo de Advogados em Direitos Humanos (CADHu) para que mulheres presas provisoriamente  e adolescentes internadas que estejam grávidas ou tenham filhos de até 12 anos tenham direito a prisão domiciliar (como, inclusive, já estabelece o Marco Legal da Primeira Infância).

Então, pela primeira vez em sua história, o STF reconheceu um habeas corpus coletivo. E ainda por cima atendeu o pedido quase integralmente (colocaram restrições em relação à natureza do crime). No voto de 34 páginas, o ministro e relator do processo Ricardo Lewandowski se mostrou sensível “a duríssima - e fragorosamente inconstitucional - realidade em que vivem as mulheres presas, a qual já comportou partos em solitárias sem nenhuma assistência médica ou com a parturiente algemada ou, ainda, sem a comunicação e presença de familiares”. E o ministro segue em choque com todas as informações, relatos e números que lhe foram entregues, afinal “a isso soma-se a completa ausência de cuidado pré-natal (acarretando a transmissão evitável de doenças graves aos filhos, como sífilis, por exemplo), a falta de escolta para levar as gestantes a consultas médicas, não sendo raros partos em celas, corredores ou nos pátios das prisões, sem contar os abusos no ambiente hospitalar, o isolamento, a ociosidade, o afastamento abrupto de mães e filhos, a manutenção das crianças em celas, dentre outras atrocidades. Tudo isso de forma absolutamente incompatível com os avanços civilizatórios que se espera tenham se concretizado neste século XXI”.

Em seu voto, Lewandowski afirma que tal decisão reforça “a importância de, num crescente cenário de uma maior igualdade de gênero, se conferir atenção especial à saúde reprodutiva das mulheres”. A estimativa é que a decisão possa beneficiar cerca de 4500 mulheres (sendo que 622 grávidas/lactantes), aproximadamente 10% do total de presas do Brasil, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).

São Jéssicas, Valérias, Desirées, Jaquelinas, Cláudias, Beneditas, Marias, muitas Marias, que não sentirão na pele o que é ter sua pena transferida, pelo Estado, para o filho; que poderão cumprir sua pena de forma um pouco mais digna. Quer dizer, seria assim se na teoria a prática não fosse outra; afinal, inúmeros Tribunais de Justiça espalhados pelo Brasil continuam se recusando a seguir o Marco Legal da Primeira Infância e a decisão do STF.

“Diversos juízes têm reiteradamente negado a substituição da prisão preventiva para prisão domiciliar alegando: a) ter sido o crime praticado com grave ameaça ou violência; b) ser o tráfico um crime grave; c) ordem pública; etc. Tendo em vista essas negativas genéricas reiteradas, o Ministro Lewandowski proferiu nova decisão informando que o fato de haver sentença condenatória não impedia a substituição [da prisão preventiva para prisão domiciliar], bem como o fato de a infração ser caracterizada como tráfico de drogas, não impedia por si só a liberdade entre outras ponderações”, explicou Leonardo Biagioni de Lima, da Defensoria Pública de São Paulo.

Otto e Palloma, livres

AGUARDANDO A JUSTIÇA

O habeas corpus coletivo não se aplica ao caso de Palloma, pois a sentença que recebeu é definitiva. O pesadelo ainda não acabou, mas pelo menos ela está aguardando seu desfecho em liberdade e com forças para retomar a vida própria. E, melhor de tudo, com Otto nos braços. Só vai realmente acordar quando souber se precisará cumprir o restante da pena – algo em torno de 60 dias – encarcerada ou não. Deseja apenas estar quites com o sistema e pronto, ponto final. É nisso que pensa.

“Por ter nascido prematuro, Otto tem o pulmão meio fragilizado, perde fôlego quando chora. Fora isso está bem de saúde, é esperto, safadinho e come de tudo. Deus permitiu que entrasse num vale de sombras com um anjo dentro da minha barriga. Se não fosse meu filho estaria naquele inferno até hoje. Otto é minha vitória e não existe vitória sem luta né. Só que quero voltar a sonhar grande”. Palloma não quer mais viver de migalhas, tal qual Jéssica e tantas outras mães que lutam pelo melhor para si e para os filhos, independente de erros ou injustiças, livres de grades.

p.s.: esse texto foi entregue em janeiro e de lá pra cá, Palloma está definitivamente livre.

domingo, 17 de março de 2019

os sons da monga

Tem documentarista que sente calafrios com a possibilidade de trilha sonora em seus filmes. Jean Rouch e Eduardo Coutinho que o digam. Pra essa turma, o lance é o som direto, o que importa é o que a câmera registra e apenas o que a câmera registra. Nada de comentar, ilustrar ou acompanhar musicalmente as imagens. Tem também documentarista que não vê problema algum em promover diálogos-choque entre música e imagem, são novas e outras camadas de significados possíveis. Exemplos não faltam, mas Errol Morris e Godfrey Reggio fizeram história em suas colaborações com o compositor Philip Glass.

Cris Siqueira está com esta segunda turma. Seu filme de estreia, Monga [ver datas, horários e locais de exibição ao fim do texto], tem uma instigante trilha sonora praticamente toda original alternando faixas instrumentais e canções do punk rock ao funk. São 11 músicas que fazem cama, mesa e banho para as memórias e histórias de uma lendária atração circense que nasceu no Brasil e foi parar nos Estados Unidos. Em Monga, imagem e música andam juntas, conversam, brigam, dão um tempo, enfim, se entrelaçam de muitas formas.

E não poderia ser diferente, afinal Cris se formou dirigindo programas na MTV Brasil enquanto tinha uma banda pra chamar de sua em São Paulo, a barulhenta e divertida Go Hopey [montou outras bandas também em Milwaukee, EUA, onde mora desde 2004].

Lançamento doc MONGA em SP from Cris Siqueira on Vimeo.

Tal qual a trajetória transcontinental da Monga circense, Cris Siqueira fez da trilha de seu filme uma ponte entre Brasil e Estados Unidos, São Paulo e Milwaukee/Chicago. E, por ser uma produção radicalmente independente bancada às próprias custas S/A, as músicas são também uma carinhosa ação entre amigas(os). Então, vamos a elas.

arte de Silvana Mello e Mica O'Herlihy para o cartaz do filme

AS INSTRUMENTAIS

Coincidência ou não, quatro faixas instrumentais da trilha de Monga foram compostas por bateristas. Mauricio Takara, integrante do Hurtmold e do São Paulo Underground [além de trabalhos solo], assina “Monga”, uma intrigante música tribal levada em programações de cuíca e tamborim. John Herndon, do Tortoise, é autor da espacial e climática "Ape Girl Instrumental"



Brock Gourlie, marido de Cris e baterista da Scrimshaw [entre outros projetos], compôs a curta e intensa “Capy Theme”, faixa que dá um pouco do clima, humor e velocidade de todo o filme, e a experimental e envolvente "Springtube and Casio" [em parceria com Anton Sieger, outro integrante da Scrimshaw].



A quinta música instrumental da trilha é anterior ao filme. "Jane Birkin", uma surf music distorcida, é de um dos muitos projetos musicais de Helena Fagundes, o Ex Naive. Helena é amiga de longa data de Cris Siqueira e também assina a edição de som de Monga.


OS ROCKS

Voltando à Helena Fagundes, ela é metade do projeto Clementine [a outra é a portuguesa Shelley Barradas]. As duas enquanto Clementine assinam a veloz "Ape Girl", pós punk à la Sonic Youth que serve de aviso para os perigos da Monga, afinal de contas ela definitivamente não é uma garota como outra qualquer.


"Go Monga" tem a mesma sonoridade de “Ape Girl”, mas sua letra é delirante e trash como um filme de terror B dos anos 1950. Fruto de encontro de amigos em um estúdio em Mogi das Cruzes, “Go Monga” é Eliane Testone [Repentina], Helena Duarte e Danilo Sevali [Hierofante Púrpura} e a própria Cris Siqueira expandindo musicalmente a mitologia da Monga.


Enquanto isso, "Lowland Gorila", de Jordan Davis [Space Raft/Mystery Girls], é a que dá o tom predominante dessas histórias de muitas Mongas. Tem algo de romântico, um tanto de nostálgico, pitadas de lamento, mas principalmente delicadeza nas quatro diferentes versões de "Lowland" presentes no filme.


Outras duas músicas não inéditas estão entre os rocks: "Walt Disney Jr", da Scrimshaw, parece que veio de uma animação underground e casa perfeitamente com o clima da Monga; já "Just What You Need", do Resist Her Transistor [uma das bandas que Cris fez parte nos EUA], é outro punk rock como manda o figurino, rápido e cru.



E O FUNK

Por ultimo, o inusitado hit da trilha: "Calma Monga", ou o encontro de uma das rappers brasileiras, a paulistana Lurdez da Luz, com um veterano produtor do funk carioca, o DJ Zé Colméia. Sob a batida de um pancadão clássico, Lurdez encarna duplo papel, tanto de funkeira bilíngue quanto de mestre de cerimônias do espetáculo.


EXIBIÇÕES DE MONGA

CineSesc [Rua Augusta, 2075]
dia 18, 21h - Exibição do filme + bate papo de Cris Siqueira com a jornalista Renata Simões

Matilha Cultural [Rua Rêgo Freitas, 542]
dia 20, 19h - Festa de lançamento
dia 21, 20h
dia 22, 19h
dia 23, 19h

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

a maturidade delirante de miguel falabella

em um dos poucos frilas que peguei em 2018 tive a oportunidade de entrevistar Miguel Falabella. o chamado veio da amiga Tatiana Engelbrecht que estava editando a revista anual do Banco Daycoval, um dos patrocinadores do segundo longa de Falabella, 'Veneza'. em quase uma hora de boa e franca conversa, o ator, diretor, roteirista e produtor falou sobre os delírios maduros de sua nova empreitada no cinema, as lembranças da série 'Pé na Cova' e suas escolhas teatrais.


SOBRE HUMOR, DELÍRIOS E TOLERÂNCIA

Entre musicais nos palcos e séries malucas na TV, Miguel Falabella tirou um tempinho para dirigir seu segundo filme, o doce e melancólico ‘Veneza’

Miguel Falabella é do tipo de artista que não para, mas isso todo mundo está careca de saber. Inclusive ele, que raspou a cabeleira para interpretar o milionário Oliver Warbucks em ‘Annie’, musical da Broadway em cartaz até o fim do ano em São Paulo que marca a primeira vez que trabalha com a atriz e amiga Ingrid Guimarães. Mas algo mais profundo acontece no coração de Falabella entre as muitas aulas de canto e dança necessárias para enfrentar tal maratona musical. É que o ator, diretor, dramaturgo e produtor finalizou seu segundo longa, o querido e pessoal ‘Veneza’.

Pouco mais de dez anos após sua estreia nos cinemas na comédia ‘Polaroides Urbanas’, o carioca mudou de registro e abraçou o fantástico para contar a história de Gringa – interpretada pela espanhola Carmen Maura, dos filmes de Pedro Almodóvar -, uma cafetina que, velha, doente e cega, decide acertar as contas com seu grande e único amor que, em um distante passado, foi roubado e enganado por ela. Aí que entram suas “meninas” (Dira Paes, Daniele Winits e Carol Castro) e um fiel cliente (Du Moscovis), todos dispostos a ajudá-la. Mas logo descobrem que não conseguirão dinheiro para a viagem e, com ajuda de um circo, recriam a Veneza dos sonhos de Gringa.

parte do elenco de 'Veneza' com Carmen Maura, Dira Paes, 
Du Moscovis, Carol Castro, Danielle Winits, André Mattos, etc

“‘Veneza’ é um filme que eu queria muito fazer. É um filme que fala ao mundo e, ao mesmo, é extremamente latino. Porque sempre fui fascinado pelo realismo mágico, que é uma tradição muito forte na América Latina. Acho que como todos nós somos irmanados por tragédias políticas, sangue, injustiça e crueldade, a fuga pro mágico, pro delírio, é um traço muito forte que nos une. Acho encantador esse poder do ser humano de transformar o seu mundo através do sonho”, explicou Falabella em seu apartamento no Jardins, São Paulo, pouco antes de encarar outra aula de canto. “Fiz questão de criar uma espécie de limbo no filme. Na minha cabeça todas aquelas pessoas estão mortas, estão todos vagando. Não se sabe que época aquilo se passa. É uma coisa indefinida, um delírio mesmo. É, literalmente, uma viagem fantástica. E muito tocante. As pessoas que já assistiram ficam muito tocadas”.

Todo filmado em apenas 28 dias, sendo que 25 em Montevidéu e 3 em Veneza, o longa é baseado em uma peça curta do argentino Jorge Accame que já tinha sido expandida por Falabella no teatro em 2003 com Laura Cardoso como protagonista. “Desde a montagem teatral pensei na possibilidade de transformar ‘Veneza’ em filme. Achava que a peça não chegava onde podia chegar. Mas precisei um filme antes pra ver se sabia fazer cinema. Achei que saiu direito e que poderia fazer voos maiores. Mas a minha vida é difícil, muita coisa, muita TV, muito teatro. E é difícil e caro fazer cinema no Brasil”.

Du Moscovis, Carmen Maura, Dira Paes e André Mattos

Ele não está brincando quando diz “muita TV, muito teatro”. Entre os dez anos que separam ‘Polaroides Urbanas’ e ‘Veneza’, Falabella dirigiu, escreveu e/ou produziu cerca de dezesseis peças (sucessos como ‘Cabaret’, ‘O Homem de La Mancha’, ‘A Gaiola das Loucas’, ‘Alô, Dolly’ e ‘Hebe, o Musical’), e na TV escreveu duas novelas (‘Negócio da China’ e ‘Aquele Beijo’) e cinco séries (‘Toma Lá, Dá Cá’, ‘A Vida Alheia’, ‘Sexo e as Negas’, ‘Brasil à Bordo’ e ‘Pé na Cova’).

A série ‘Pé na Cova’, aliás, pode ser considerada um prenúncio de ‘Veneza’ com sua mistura de humor, afeto, surrealismo e melancolia. “O ‘Pé na Cova’ sou eu, então um homem de 50 anos, que olha pra finitude. É uma coisa da maturidade. Acho que o Ruço, o protagonista que interpretei na série, é quem eu gostaria de ser. Um homem careta do subúrbio que aceitava aquele bando de loucos porque costurava tudo com amor. O Ruço é o meu objetivo de vida como ser humano”.

Falabella faz então uma pausa reflexiva e relembra da amiga, parceira e ídola Marília Pera (1943-2015), que interpretou Darlene, a ex-mulher alcóolatra de Ruço, em seu último trabalho na TV. “Marília tão maravilhosa, que categoria”. E a pausa vira silêncio, enquanto Falabella passa a mão na cabeça careca e olha para o infinito da janela de sua sala. Mas o silêncio não dura muito, afinal o show tem que continuar.

Miguel Falabella e Marília Pera em cena de 'Pé na Cova'

“Do mesmo jeito que tratei aquela gente perdida de ‘Pé na Cova’, olho pras prostitutas de ‘Veneza’ de uma forma muito especial. Poderia olhá-las de uma maneira crua, mas prefiro investi-las de grandeza. Isso é uma escolha minha, é como olho pros personagens. Sempre quis fazer uma Comédia da Tolerância onde todos são bem vindos. Uma vez um porteiro da Globo me falou uma coisa que tomei como grande elogio: “Seu Falabella, sempre que aparece alguém muito esquisito eu sei que é pra programa seu”. Fiquei muito orgulhoso com esse comentário porque quando você tem efetivamente afeto pelas pessoas, o público reconhece”.

E esse reconhecimento do público é um dos maiores estimulantes de Falabella que, desde que se entende como artista, sempre quis ser popular. “Fui criado numa família meio careta de intelectuais, uma gente bem elitista. Minha mãe era discípula de Sartre e minha casa era frequentada por intelectuais, então desde muito novo percebia esse abismo entre a minha casa e o resto do mundo. Então decidi que seria um artista popular. Só que comecei a dirigir teatro com ‘Emily’ (sobre a poeta Emily Dickinson, em 1984), ganhei prêmios e prestígio, e o pessoal não me perdoou porque depois fui fazer besteirol. ‘Como ele larga a grande arte do teatro pra fazer isso?’. Ficaram mordidos”. 

Ainda hoje, Falabella diz sentir preconceito por fazer sucesso, por ser popular, mas faz tempo que deixou de se importar. “Tô numa fase bacana. Menos angústia, menos insônia. O que virá, virá. Eu vou semeando, algumas germinam, outras não, e tudo bem”. Certo mesmo é que ele estará em cartaz com o musical ‘Annie’, enquanto desenvolve para TV uma série chamada ‘Eu, Minha Avó e a Boi’, baseada numa história que correu pela internet sobre a rivalidade entre duas senhoras, e sonha com seu terceiro longa (uma adaptação da peça ‘O Som e a Sílaba’ que montou em 2017 com Alessandra Maestrini). Tem também o breve retorno de seu lendário Caco Antibes em Sai de baixo, o Filme, mas sobre isso prefere manter segredo.

Acima de tudo, Falabella reservou 2019 para levar ‘Veneza’ por festivais de cinema mundo afora, afinal a Veneza dos sonhos da Gringa é também de Falabella e de quem mais embarcar nessa viagem fantástica.