quinta-feira, 12 de junho de 2014

itaquerão, ida e volta

no emaranhado de conexões e escadas rolantes da luz uma série de placas coloridas mostra o caminho para a arena corinthians, palco de brasil x croácia, o primeiro jogo da copa do mundo de 2014. esse é um dos possíveis caminhos para o estádio e, provavelmente, o melhor. nada de ir de carro e se perder ou pagar os olhos da cara em algum estacionamento distante. nada de pegar a linha vermelha do metrô, a leste-oeste, porque são muitas paradas até chegar à estação corinthians-itaquera. o lance é o expresso leste [linha 11/coral da cptm] que, nos seis dias de jogos em são paulo, fará luz-itaquera sem parar e em apenas 20 minutos.


cheguei fácil à plataforma 4 e nem deu tempo de contemplar a centenária estação da luz porque, em poucos minutos, lá veio o trem. fiz esse caminho de ida e volta ao itaquerão um dia antes da bola começar a rolar e, como era uma quarta-feira como outra qualquer, as paradas no brás e no tatuapé estavam mantidas, o que aumentou a duração do trajeto em uns dez minutos.

tempo mais que o suficiente para acompanhar um casal de cantores evangélicos vendendo e cantando suas músicas [eram 11 e meia da manhã e o vagão tinha poucas pessoas]. o homem, cego, andava de um lado para o outro do vagão com uma pequena caixa de som pendurada no pescoço. a mulher, serelepe, mostrava os cds, vendia e de vez em quando se aproximava de seu marido para cantar partes da música, tais como “disseram pra você: não vai dar certo / passam perto de você e falam: é só mais um / mais um sonhador pelo caminho”. dois passageiros compraram discos.

o casal saiu no brás e foi substituído no vagão por um vendedor de chocolates com camiseta do bayern de munique. “é delícia, é qualidade, é o mais puro chocolate ao leite”, dizia pausadamente com voz de locutor de rádio. dois americanos, que estavam indo para o itaquerão e conversavam sobre assuntos familiares, recusaram. uma menina, jogando animadamente no celular, também. e o vendedor desceu no tatuapé com o saldo de quatro chocolates vendidos.


do tatuapé até itaquera é o trecho mais longo e assim é possível acompanhar mais atentamente o entorno das linhas de trem e metrô. do lado direito, a radial leste e outras avenidas grandes numa curiosa e caótica relação com viadutos que serpenteiam sobre tudo. na parte esquerda, áreas mais residenciais, ruazinhas, muitas com bandeiras do brasil e pinturas no asfalto. faz sentido, porque é da mistura esparramada desses dois lados [e de outros feios e bonitos] que são paulo é feita. então passa carrão, penha, vila esperança e por aí vai.

quando o trem se aproxima de arthur alvim a coisa começa a mudar de figura e do lado direito, em cima de um morro, surge uma série de prédios iguaizinhos e bem pintados, alguns com grafites. é um pedaço do gigantesco conjunto habitacional padre manoel da nóbrega. e tome mais avenidas e viadutos, tudo parecendo recente. então, do nada, aparece a arena corinthians. é o fim da linha para quem for ao estádio [a linha 11/coral segue até mogi das cruzes].


um dia antes do primeiro jogo da copa a estação está eufórica e fervilhando. de um lado, os últimos retoques de tinta [amarela] na passarela que vai até o estádio. do outro, o cotidiano no shopping metrô tatuapé e do poupatempo. no centro de tudo, uma bola de futebol gigante como cenário para dezenas de fotos de brasileiros, hondurenhos, japoneses, equatorianos, americanos e bolivianos [com camisetas do brasil].


mas o que interessa mesmo [nessa grande balada futebolística mundial] está no outro lado da passarela e é para lá que segue o fluxo. e então fotos e mais fotos, principalmente quando parte do estádio aparece no canto direito. uma senhora puxa conversa: “eu vim de francisco morato [a 70 km dali] só pra ver o estádio. não podia passar a copa sem vir aqui, ainda mais que um cunhado meu trabalhou aí. que coisa linda, né? quero vir outras vezes, em todo jogo se possível. trabalho ali na penha, mas quero depois dar uma passadinha aqui”.


é isso, a copa tá [literalmente] logo ali. é no brasil, é em itaquera. não custa dar uma passadinha pra curtir, entender, criticar, conhecer pessoas etc. não é todo dia que oportunidades assim acontecem. a festa e a responsabilidade são nossas. se der tudo certo, a taça também. agora é deixar a bola rolar.

terça-feira, 10 de junho de 2014

o rap, o brasil e vice-verso

esse convite foi uma baita surpresa: colunista convidado da revista da [livraria] cultura, uma publicação que ainda não tinha colaborado. tema livre, mas brasileiro. a minha cara, enfim, rsrsrs. e daí escolhi o rap porque é um dos assuntos que mais me interessa e ainda estava sob o efeito/impacto do show do emicida, thiago frança e rodrigo campos na casa de francisca. o texto também está no site da revista da cultura, mas aqui sempre tem um material extra.



O BRASIL É UM RAP

“Já que o povo gosta de rap / Então o rap é mpb também / Música periférica brasileira tornou-se popular / Deixa o som rolar”. Esses versos lançados um ano atrás pelo paulistano Sombra, numa parceria com o curitibano Projetonave, dizem muito sobre o atual momento do ritmo e poesia brasileiro. Não significa que o rap esteja tocando em rádios ou em programas de auditórios – afinal, isso nem tem mais relação com “sucesso” –, e sim que o gênero saiu da periferia e ganhou de vez o asfalto e baladas de todos os estratos sociais. Mas tem algo maior que isso. 



É que o rap é o gênero musical que melhor tem comentado e explicado as grandes transformações sociais das últimas três décadas no país. Nos anos 1980 e 90 serviu como retrato da profunda desigualdade nacional e consequente violência contra a periferia [e, dessa geração, ninguém melhor, mais afiado e atual que o Racionais MCs].

A partir dos anos 2000, com ascensão econômica de classes mais baixas e mais acesso a educação e informação via internet, novas gerações entraram nas rimas – e dá-lhe Emicida, Criolo, Don L, Amiri, Rincon Sapiência, OQuadro, ConeCrew, Flávio Renegado, Síntese e muitos outros – e outros assuntos foram surgindo. Afinal de contas, as periferias podem e tem mais o que falar: tem amor e bom humor, viagens e machismo, espiritualidade e comércio, política e poesia, festa e sexualidade, pais, mães, filhos e orgulho. 

O sotaque, que era e ainda é majoritariamente paulistano, ganhou outras cores em Minas Gerais, Rio de Janeiro, Ceará, Pernambuco, Paraná, Brasília, Bahia, Goiás, Pará, Rio Grande do Norte, Paraíba e, claro, em outras cidades de São Paulo. A voz também é mais masculina, porém mulheres como Lurdez da Luz, Negra Li, Karol Conká, Flora Matos e Lívia Cruz vem abrindo caminhos para novos protagonismos.

É muita novidade, e em alta velocidade, e só o rap tem conseguido acompanhar tudo isso, além de ser o mais aberto a se misturar com outros ritmos, gêneros e sonoridades. Bem fácil encontrar no rap brasileiro sons como jazz, samba, funk, soul, forró, repente, reggae, bossa nova, brega e música eletrônica. 

Talvez umas das explicações para esse dinamismo do rap seja sua raiz democrática, pois para ele acontecer basta apenas um sujeito rimando sobre uma base rítmica. Com a internet e a proliferação de instrumentos eletrônicos e novos programas de edição, tudo isso ficou ainda mais acessível. 

Aliado a isso existe uma vontade intensa por comunicação e interação entre o artista e seu público, coisa que outros gêneros musicais foram perdendo por uma razão ou outra: o rock envelheceu mal e virou um ninho conservador, a mpb se fechou no seu castelo de iluminados e o samba, uma das maiores influências ainda hoje para o rap e tudo o mais que for brasileiro, passou a repercutir preconceitos contra outras músicas periféricas (esquecendo o tanto que foi perseguido em seus anos de formação).

Crônica do seu tempo e lugar, o rap “Já salvou muito mais / que várias ONGs banais / Dialogou muito mais / que professores e pais / Projetos sociais / Não seduz marginais / Mas põe um rap pra ouvir / A diferença que faz / Eu sei que é foda / E que tá na moda / Mas quando é pesado e verdadeiro te incomoda” [versos de “O Hip Hop é Foda”, de Rael]. 

A verdade é que tudo se encaixa na nossa rima, principalmente a realidade.