terça-feira, 10 de junho de 2014

o rap, o brasil e vice-verso

esse convite foi uma baita surpresa: colunista convidado da revista da [livraria] cultura, uma publicação que ainda não tinha colaborado. tema livre, mas brasileiro. a minha cara, enfim, rsrsrs. e daí escolhi o rap porque é um dos assuntos que mais me interessa e ainda estava sob o efeito/impacto do show do emicida, thiago frança e rodrigo campos na casa de francisca. o texto também está no site da revista da cultura, mas aqui sempre tem um material extra.



O BRASIL É UM RAP

“Já que o povo gosta de rap / Então o rap é mpb também / Música periférica brasileira tornou-se popular / Deixa o som rolar”. Esses versos lançados um ano atrás pelo paulistano Sombra, numa parceria com o curitibano Projetonave, dizem muito sobre o atual momento do ritmo e poesia brasileiro. Não significa que o rap esteja tocando em rádios ou em programas de auditórios – afinal, isso nem tem mais relação com “sucesso” –, e sim que o gênero saiu da periferia e ganhou de vez o asfalto e baladas de todos os estratos sociais. Mas tem algo maior que isso. 



É que o rap é o gênero musical que melhor tem comentado e explicado as grandes transformações sociais das últimas três décadas no país. Nos anos 1980 e 90 serviu como retrato da profunda desigualdade nacional e consequente violência contra a periferia [e, dessa geração, ninguém melhor, mais afiado e atual que o Racionais MCs].

A partir dos anos 2000, com ascensão econômica de classes mais baixas e mais acesso a educação e informação via internet, novas gerações entraram nas rimas – e dá-lhe Emicida, Criolo, Don L, Amiri, Rincon Sapiência, OQuadro, ConeCrew, Flávio Renegado, Síntese e muitos outros – e outros assuntos foram surgindo. Afinal de contas, as periferias podem e tem mais o que falar: tem amor e bom humor, viagens e machismo, espiritualidade e comércio, política e poesia, festa e sexualidade, pais, mães, filhos e orgulho. 

O sotaque, que era e ainda é majoritariamente paulistano, ganhou outras cores em Minas Gerais, Rio de Janeiro, Ceará, Pernambuco, Paraná, Brasília, Bahia, Goiás, Pará, Rio Grande do Norte, Paraíba e, claro, em outras cidades de São Paulo. A voz também é mais masculina, porém mulheres como Lurdez da Luz, Negra Li, Karol Conká, Flora Matos e Lívia Cruz vem abrindo caminhos para novos protagonismos.

É muita novidade, e em alta velocidade, e só o rap tem conseguido acompanhar tudo isso, além de ser o mais aberto a se misturar com outros ritmos, gêneros e sonoridades. Bem fácil encontrar no rap brasileiro sons como jazz, samba, funk, soul, forró, repente, reggae, bossa nova, brega e música eletrônica. 

Talvez umas das explicações para esse dinamismo do rap seja sua raiz democrática, pois para ele acontecer basta apenas um sujeito rimando sobre uma base rítmica. Com a internet e a proliferação de instrumentos eletrônicos e novos programas de edição, tudo isso ficou ainda mais acessível. 

Aliado a isso existe uma vontade intensa por comunicação e interação entre o artista e seu público, coisa que outros gêneros musicais foram perdendo por uma razão ou outra: o rock envelheceu mal e virou um ninho conservador, a mpb se fechou no seu castelo de iluminados e o samba, uma das maiores influências ainda hoje para o rap e tudo o mais que for brasileiro, passou a repercutir preconceitos contra outras músicas periféricas (esquecendo o tanto que foi perseguido em seus anos de formação).

Crônica do seu tempo e lugar, o rap “Já salvou muito mais / que várias ONGs banais / Dialogou muito mais / que professores e pais / Projetos sociais / Não seduz marginais / Mas põe um rap pra ouvir / A diferença que faz / Eu sei que é foda / E que tá na moda / Mas quando é pesado e verdadeiro te incomoda” [versos de “O Hip Hop é Foda”, de Rael]. 

A verdade é que tudo se encaixa na nossa rima, principalmente a realidade.

Nenhum comentário: