sexta-feira, 9 de junho de 2017

o brasil pega mal

o ano pós-golpe não anda fácil para o brasil, mas para frilas jornalísticos está um pouco pior. sorte que de vez em quando surge alguma coisa bacana, como, por exemplo, essa matéria que fiz para a edição de maio da revista trip [anitta na capa] sobre iniciativas para aumentar a acessibilidade da internet no país. a pauta veio do editor renan fagundes e a reportagem foi ilustrada por beto shibata. delícia falar com várias fontes e costurar os muitos lados de um tema complexo e atual. ah, tem a matéria também no site da trip. detalhe: acabei colocando como título do post o que ficou na revista e deixei aqui meu título original.


LIGANDO OS PONTOS

Metade das casas brasileiras já possui acesso a internet, mas e a outra metade? Saiba mais sobre algumas iniciativas – independentes, privadas e públicas – que pretendem conectar áreas remotas do Brasil

No caminho para a maior cachoeira do Estado do Rio de Janeiro, a 32 quilômetros de Resende, existe um povoado chamado Fumaça. Por lá vivem cerca de 800 pessoas e os mais velhos ainda o tratam como Aldeia por ter sido a última morada dos índios Puris. É difícil a comunicação com o mundo a partir do distrito: os três orelhões estão quebrados e sem previsão de conserto, e um antena instalada anos atrás só pega (mal) na Praça da Matriz. Daí que, em 2015, o coletivo Nuvem - Estação Rural de Arte e Tecnologia recebeu uma bolsa internacional para a criação de uma rede wifi e de uma rede autônoma de celular na vila. A vida dos moradores de Fumaça nunca mais foi a mesma.

“Meu filho está em Portugal e hoje consegui falar com ele devido a internet. Tive notícias, sei o que ele está fazendo, como está, e ele também teve notícias da gente. Isso foi maravilhoso”, declarou Elizabeth Nunes, 63 anos, após a instalação dessa rede livre, gratuita, participativa, que não passa por empresas e é gerida pela própria comunidade. Para a pequenina Fumaça a internet deixou de ser um privilégio, só que para 70 milhões de brasileiros que ainda estão desconectados, segundo dados recentes da ONG Internet.org, essa realidade ainda é distante.  Dentre esses 70 milhões quem é mais atingido por esse isolamento estão, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2014, nas zonas rurais, no Norte e Nordeste, tem mais de 50 anos, são negros, e possuem menores faixa salarial e nível de instrução. 

E o que está sendo feito para mudar essa que é uma das muitas desigualdades brasileiras? Internet é um privilégio ou um direito? “A internet é um direito humano essencial porque é um direito à comunicação. Isso está na Constituição e, mais recentemente, no Marco Civil da Internet”, afirmou Fábio Malini, professor da Universidade Federal do Espírito Santo e Coordenador do Laboratório de Estudos sobre Internet e Cultura.

Sancionado em 23 abril de 2014, o Marco Civil é tido como referência mundial para legislações que tratam da internet.  O texto da lei garante neutralidade da rede, privacidade dos usuários, liberdade de expressão, retenção de dados, e obrigações de responsabilidade civil aos usuários e provedores, entre outros temas. Prioriza e assegura, enfim, o caráter aberto da internet.

Tudo muito bem, tudo muito bom, mas como garantir um maior acesso a internet em um país tão grande quanto o Brasil? “Pois é, um dos grandes problemas do país é que o acesso a internet está muito ligado ao mercado consumidor e sua territorialidade. O acesso a banda larga, por exemplo, está concentrado no litoral brasileiro e nas regiões mais ricas do interior. Então, deixar a regulação ser feita pela iniciativa privada acaba gerando um grande número de pessoas sem acesso porque não é economicamente atrativo para as teles”, diz Malini.

Os ativistas da Nuvem, por exemplo, foram na contramão dessa lógica do mercado com a criação de redes como a de Fumaça. Esse projeto serviu também como um dos embriões da Coolab, iniciativa formada por pessoas que trabalham com tecnologia e redes livres e que está “começando agora este processo de apoiar comunidades a se conectarem com recursos e suporte, inspirados pelos princípios cooperativistas e com base na economia colaborativa”, como explicam coletivamente. “Além da metodologia aberta e colaborativa que capacita a própria comunidade a construir sua rede e fazer a manutenção, o modelo de trabalho da Coolab é também aberto e replicável.”

A Coolab cita que, além da Fumaça, os integrantes do coletivo também criaram redes comunitárias no Quilombo Kalungas (Goiás), uma rede de transmissão de dados digitais por ondas curtas na Amazônia, provedores comunitários em Campos (Rio de Janeiro) e implementaram uma rede autônoma na Casa dos Meninos (São Paulo). Mas essas ações, por mais replicáveis e abertas que sejam, são trabalho de formiguinha perto da (ainda) grande lacuna do país em termos de acessibilidade.  


E a iniciativa privada? Um exemplo no Nordeste diz muito sobre como uma aguçada percepção de potencialidades regionais pode transformar acesso em lucro. Fundada em 1998, a Brisanet é a realização do sonho de um empreendedor local, José Roberto Nogueira, que saiu de sua terra natal (Pereiro, interior do Ceará) para trabalhar instalando painéis de aviões na Embraer. Curioso e inquieto, Nogueira sempre quis voltar para resolver problemas de sua região e gerar negócios, e com o dinheiro de uma loja de informática que montou em São José dos Campos começou a construir antenas de rádio. Salto no tempo para 2010, quando Nogueira, já de volta ao berço, viu sua Brisanet se tornar a maior operadora de internet a rádio do Brasil, com 30 mil clientes em 150 cidades nos estados do Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba.

Nos últimos anos, a transmissão por rádio vem sendo substituída pela fibra ótica, mais segura e rápida, e a Brisanet agora tem planos de, até o fim do ano, chegar a Pernambuco, atingindo assim um total de 230 cidades no semi-árido nordestino. Nogueira, que fez curso de eletrônica por correspondência no início dos anos 1980, sabia desde sempre que sua terra possuía muita gente curiosa e inquieta como ele, mas que sem acesso a conhecimento e a ferramentas não via seu talento florescer. Oferecer todas essas oportunidades, via internet, é estimular negócios, criatividade, produção, sonhos. E isso dá retorno (atualmente, a Brisanet emprega cerca de 1300 pessoas).

Empresas pequenas e médias como a Brisanet são responsáveis por quase 50% dos atendimentos de banda larga no Brasil, de acordo com o Clube de Engenharia. Mas segundo elas próprias, o Governo Federal poderia estimular mais esses negócios e, consequentemente, melhorar a acessibilidade em regiões fora dos eixos. “(Poderia) facilitar e baratear o uso das infraestruturas já existentes, como os postes de utilização da faixa de domínio das rodovias federais e estaduais; criar linhas de financiamento especificas ou incentivos fiscais para pequenas e médias operadoras em regiões mais remotas, pois são elas que estão fazendo esse processo de inclusão digital”, afirma Jordão Estevam, diretor comercial e sócio da Brisanet.

Enquanto isso, no Senado Federal, tramita um projeto de lei (PLS 431/2014), que “permite que Governo Federal assuma a instalação e a operação da banda larga nas regiões mais remotas ou menos desenvolvidas, onde o serviço não é rentável para as empresas privadas”. O dinheiro para custear tamanha empreitada viria do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust), mas não existe nenhuma previsão de quando isso se tornará realidade.

Outra ação federal é o Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicação Estratégicas (SGDC) que deveria ter sido lançado em março para ajudar a expandir o acesso à internet banda larga no país, “especialmente em regiões mais carentes em infraestrutura”. Dividido em duas bandas, uma exclusiva das Forças Armadas e outra para comunicação, o satélite tem sofrido críticas tanto de ativistas digitais quanto de pequenos e médios empresários, pois suas regras de utilização mudaram recentemente quando a banda de comunicação foi dividida em quatro lotes, sendo que três (79%) seriam controlados por grandes da iniciativa privada. Em poucas palavras, sobraria pouco para o serviço público e os pequenos e médios fornecedores não teriam espaço para competir. 

Mas afinal, internet é um privilégio ou um direito? Na teoria, um direito. Na prática, um privilégio para cerca de 70 milhões de brasileiros. No entanto, o caráter aberto da internet , esse “mecanismo de desentermediação do mundo” (nas palavras do professor Fábio Malini), talvez seja justamente o melhor jeito de compartilhar conhecimento, derrubando assim privilégios e garantindo direitos. Os moradores de Fumaça já perceberam isso.