segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

a maturidade delirante de miguel falabella

em um dos poucos frilas que peguei em 2018 tive a oportunidade de entrevistar Miguel Falabella. o chamado veio da amiga Tatiana Engelbrecht que estava editando a revista anual do Banco Daycoval, um dos patrocinadores do segundo longa de Falabella, 'Veneza'. em quase uma hora de boa e franca conversa, o ator, diretor, roteirista e produtor falou sobre os delírios maduros de sua nova empreitada no cinema, as lembranças da série 'Pé na Cova' e suas escolhas teatrais.


SOBRE HUMOR, DELÍRIOS E TOLERÂNCIA

Entre musicais nos palcos e séries malucas na TV, Miguel Falabella tirou um tempinho para dirigir seu segundo filme, o doce e melancólico ‘Veneza’

Miguel Falabella é do tipo de artista que não para, mas isso todo mundo está careca de saber. Inclusive ele, que raspou a cabeleira para interpretar o milionário Oliver Warbucks em ‘Annie’, musical da Broadway em cartaz até o fim do ano em São Paulo que marca a primeira vez que trabalha com a atriz e amiga Ingrid Guimarães. Mas algo mais profundo acontece no coração de Falabella entre as muitas aulas de canto e dança necessárias para enfrentar tal maratona musical. É que o ator, diretor, dramaturgo e produtor finalizou seu segundo longa, o querido e pessoal ‘Veneza’.

Pouco mais de dez anos após sua estreia nos cinemas na comédia ‘Polaroides Urbanas’, o carioca mudou de registro e abraçou o fantástico para contar a história de Gringa – interpretada pela espanhola Carmen Maura, dos filmes de Pedro Almodóvar -, uma cafetina que, velha, doente e cega, decide acertar as contas com seu grande e único amor que, em um distante passado, foi roubado e enganado por ela. Aí que entram suas “meninas” (Dira Paes, Daniele Winits e Carol Castro) e um fiel cliente (Du Moscovis), todos dispostos a ajudá-la. Mas logo descobrem que não conseguirão dinheiro para a viagem e, com ajuda de um circo, recriam a Veneza dos sonhos de Gringa.

parte do elenco de 'Veneza' com Carmen Maura, Dira Paes, 
Du Moscovis, Carol Castro, Danielle Winits, André Mattos, etc

“‘Veneza’ é um filme que eu queria muito fazer. É um filme que fala ao mundo e, ao mesmo, é extremamente latino. Porque sempre fui fascinado pelo realismo mágico, que é uma tradição muito forte na América Latina. Acho que como todos nós somos irmanados por tragédias políticas, sangue, injustiça e crueldade, a fuga pro mágico, pro delírio, é um traço muito forte que nos une. Acho encantador esse poder do ser humano de transformar o seu mundo através do sonho”, explicou Falabella em seu apartamento no Jardins, São Paulo, pouco antes de encarar outra aula de canto. “Fiz questão de criar uma espécie de limbo no filme. Na minha cabeça todas aquelas pessoas estão mortas, estão todos vagando. Não se sabe que época aquilo se passa. É uma coisa indefinida, um delírio mesmo. É, literalmente, uma viagem fantástica. E muito tocante. As pessoas que já assistiram ficam muito tocadas”.

Todo filmado em apenas 28 dias, sendo que 25 em Montevidéu e 3 em Veneza, o longa é baseado em uma peça curta do argentino Jorge Accame que já tinha sido expandida por Falabella no teatro em 2003 com Laura Cardoso como protagonista. “Desde a montagem teatral pensei na possibilidade de transformar ‘Veneza’ em filme. Achava que a peça não chegava onde podia chegar. Mas precisei um filme antes pra ver se sabia fazer cinema. Achei que saiu direito e que poderia fazer voos maiores. Mas a minha vida é difícil, muita coisa, muita TV, muito teatro. E é difícil e caro fazer cinema no Brasil”.

Du Moscovis, Carmen Maura, Dira Paes e André Mattos

Ele não está brincando quando diz “muita TV, muito teatro”. Entre os dez anos que separam ‘Polaroides Urbanas’ e ‘Veneza’, Falabella dirigiu, escreveu e/ou produziu cerca de dezesseis peças (sucessos como ‘Cabaret’, ‘O Homem de La Mancha’, ‘A Gaiola das Loucas’, ‘Alô, Dolly’ e ‘Hebe, o Musical’), e na TV escreveu duas novelas (‘Negócio da China’ e ‘Aquele Beijo’) e cinco séries (‘Toma Lá, Dá Cá’, ‘A Vida Alheia’, ‘Sexo e as Negas’, ‘Brasil à Bordo’ e ‘Pé na Cova’).

A série ‘Pé na Cova’, aliás, pode ser considerada um prenúncio de ‘Veneza’ com sua mistura de humor, afeto, surrealismo e melancolia. “O ‘Pé na Cova’ sou eu, então um homem de 50 anos, que olha pra finitude. É uma coisa da maturidade. Acho que o Ruço, o protagonista que interpretei na série, é quem eu gostaria de ser. Um homem careta do subúrbio que aceitava aquele bando de loucos porque costurava tudo com amor. O Ruço é o meu objetivo de vida como ser humano”.

Falabella faz então uma pausa reflexiva e relembra da amiga, parceira e ídola Marília Pera (1943-2015), que interpretou Darlene, a ex-mulher alcóolatra de Ruço, em seu último trabalho na TV. “Marília tão maravilhosa, que categoria”. E a pausa vira silêncio, enquanto Falabella passa a mão na cabeça careca e olha para o infinito da janela de sua sala. Mas o silêncio não dura muito, afinal o show tem que continuar.

Miguel Falabella e Marília Pera em cena de 'Pé na Cova'

“Do mesmo jeito que tratei aquela gente perdida de ‘Pé na Cova’, olho pras prostitutas de ‘Veneza’ de uma forma muito especial. Poderia olhá-las de uma maneira crua, mas prefiro investi-las de grandeza. Isso é uma escolha minha, é como olho pros personagens. Sempre quis fazer uma Comédia da Tolerância onde todos são bem vindos. Uma vez um porteiro da Globo me falou uma coisa que tomei como grande elogio: “Seu Falabella, sempre que aparece alguém muito esquisito eu sei que é pra programa seu”. Fiquei muito orgulhoso com esse comentário porque quando você tem efetivamente afeto pelas pessoas, o público reconhece”.

E esse reconhecimento do público é um dos maiores estimulantes de Falabella que, desde que se entende como artista, sempre quis ser popular. “Fui criado numa família meio careta de intelectuais, uma gente bem elitista. Minha mãe era discípula de Sartre e minha casa era frequentada por intelectuais, então desde muito novo percebia esse abismo entre a minha casa e o resto do mundo. Então decidi que seria um artista popular. Só que comecei a dirigir teatro com ‘Emily’ (sobre a poeta Emily Dickinson, em 1984), ganhei prêmios e prestígio, e o pessoal não me perdoou porque depois fui fazer besteirol. ‘Como ele larga a grande arte do teatro pra fazer isso?’. Ficaram mordidos”. 

Ainda hoje, Falabella diz sentir preconceito por fazer sucesso, por ser popular, mas faz tempo que deixou de se importar. “Tô numa fase bacana. Menos angústia, menos insônia. O que virá, virá. Eu vou semeando, algumas germinam, outras não, e tudo bem”. Certo mesmo é que ele estará em cartaz com o musical ‘Annie’, enquanto desenvolve para TV uma série chamada ‘Eu, Minha Avó e a Boi’, baseada numa história que correu pela internet sobre a rivalidade entre duas senhoras, e sonha com seu terceiro longa (uma adaptação da peça ‘O Som e a Sílaba’ que montou em 2017 com Alessandra Maestrini). Tem também o breve retorno de seu lendário Caco Antibes em Sai de baixo, o Filme, mas sobre isso prefere manter segredo.

Acima de tudo, Falabella reservou 2019 para levar ‘Veneza’ por festivais de cinema mundo afora, afinal a Veneza dos sonhos da Gringa é também de Falabella e de quem mais embarcar nessa viagem fantástica.