domingo, 14 de julho de 2013

rafael coutinho, a entrevista

acabei de publicar aqui no esforçado o perfil que fiz de rafael pra azul magazine ("retrato de um artista com ideias de sobra"). o que segue agora é a entrevista, praticamente na íntegra. conversa boa da porra, cheia de informações, bom humor, reflexões, tem de tudo. e coloquei no estilo fernando faro porque quem importa é o entrevistado.



INFÂNCIA, PRIMEIROS DESENHOS

A primeira lembrança... tenho fragmentos de quando era bem jovem desenhando coisas na escola... eu usava o desenho como ferramenta pra impressionar as professoras e os amigos... e já tinha uma facilidade... minhas memórias mais antigas já me trazem isso, que eu tinha uma facilidade pra desenhar, com o assunto... e desenhando com o meu pai, pedindo pra ele desenhar coisas pra mim... super heróis, personagens de séries japonesas dos anos 1980, personagens de vídeo games, Bart Simpson, Snoopy, robôs, umas caricaturas, personagens mais cômicos...

Sempre fui extrovertido, desenhar era mais uma facilidade mesmo, não era por timidez... mas a gente se mudou muito de cidade quando eu era criança... agora em retrospecto vejo que usei muito o desenho para fazer amigos e conquistar pessoas com mais facilidade, era o meu cartão de apresentação... sempre desenhei muito na escola. Em matéria que eu não ia bem eu desenhava ao redor da prova e a professora achava bonitinho e me dava mais nota [risos]... usei bastante esse artifício [risos]...

Eu acho que ele [Laerte] se divertia com a gente, com o assunto... nunca direcionou, pressionou ou incentivou pra que eu seguisse esse caminho... ele gostava de ver as coisas que eu fazia e sempre participou dessa forma... queria que a gente mostrasse as coisas que a gente tava fazendo, e não era só desenho... sempre foi um pai estimulante, criativamente... na verdade sou muito grato por ele não ter direcionado nada e nem que eu seguisse por um caminho que ele já tinha previamente feito... e ia nos jogos de basquete, nos ensaios de dança... dancei durante muitos anos, até a fase adulta, b-boy, e também fiz um pouco de dança contemporânea, street dance, dancei mesmo... enfim, ele participou das coisas que eu fiz... no teatro... então nunca foi uma coisa direcionada pro desenho... e minha mãe também me estimulou muito, do jeito dela... sempre teve muita arte em casa, quadros... era um casal comunista nos anos 80, né? Então tinham máscaras sul-americanas, reproduções de Picasso...

ESCOLHAS, TRABALHO

Foi na época do vestibular, nessa época de escolher a carreira, naquela confusão angustiante que o jovem tem na hora de escolher do alto dos seus 17 anos... me pareceu ali que era a única opção possível... mas não era uma coisa voltada para os quadrinhos... era Arte. Achei que tinha que fazer algo com Artes Gráficas e acabei fazendo Artes Plásticas... prestei pra Arquitetura e não passei, Desenho Industrial também não, e acabei fazendo Artes. Demorei muitos anos pra entender o que era arte... entrei muito cru, não sabia de nada, e acho que até metade da faculdade eu ainda tinha muita dúvida se de fato queria ser artista... lutei contra isso.

Comecei a trabalhar muito cedo. Aos 16 eu já trabalhava... fui garçom em restaurante, vendi CD em banquinha de standcenter, locadora... e aí, em um segundo momento, entrei em um estúdio de animação ligado a uma editora e comecei a me acalmar. Foi ali que vi que algum resultado estava saindo... fazia charges animadas e foi lá que fiz meu primeiro videoclipe [“Chapa o côco”, Xis]... a gente ganhou prêmio na MTV [melhor clipe de rap no VMB 2002, indicado em outras duas categorias]... fiquei muito excitado ali... acho que também descobri cedo que trabalhos longos rendiam louros mais significativos na minha vida... acho que foi daí que nasceu o prazer de fazer histórias longas, projetos mais extensos...


Trabalhei com animação durante muitos anos e montei um estúdio próprio de design com alguns amigos de faculdade... durou três anos... chamava Base V... aí experimentei street art, murais, silk, serigrafia, era um tipo de arte experimental que a gente acreditava que podia existir entre a rua e as galerias, que a gente tinha muito preconceito... o grupo continua até hoje e eu me afastei em 2008... foi nesse período que comecei a publicar minhas primeiras histórias em quadrinhos numa publicação chamada Sociedade Radioativa, participei também de algumas coletâneas e já me sentia com mais autonomia, mais certeza e que tinha material para apresentar...

MULTIPLATAFORMAS

Sempre tive esse interesse em trabalhar em diversas plataformas. Em algum momento me foi passada a informação de que esse meu desejo de trabalhar em inúmeras mídias não só não era um problema como poderia ser a minha salvação em momentos de crise ou dificuldade, e que eu não precisava me preocupar tanto em me fechar em uma só mídia... entendi em minha fase adulta que profissionalmente era preciso também focar em alguma dessas mídias pra que eu também pudesse ser reconhecido. Vi que esse espírito bon vivant poderia prejudicar, mas nunca me fechei porque gosto mais das ideias do que das mídias. Então se a ideia me excita vamos fazer um filme... acabei me envolvendo recentemente com cinema, gostei muito, aprendi muito com amigos do cinema e quero continuar fazendo... fiz agora como ator uma peça com meu pai [“As Jóias”], achei que não fosse mais acontecer e aconteceu... tô aberto...


Eu me defino como me convém. Se tô numa roda com quadrinistas eu sou um quadrinista. Se me veem como um pintor eu sou um pintor. Não vejo necessidade em me definir tanto assim. Acho que a essa altura do campeonato, aos 33, o trabalho me define. É um trabalho que aparece e que estou desenvolvendo... acho que desde 2008 não fiquei nem um período sem trabalho. Não é porque sou excepcional... é porque me sobra ideia mesmo. Então, quando não tem trabalho encomendado eu tô tocando as coisas que eu quero fazer e realizar. É isso, acho que tem muita coisa pra ser testada e eu também me empolgo com facilidade com a ideia dos outros. É fácil me seduzir [risos]. Gosto de trocar informações com as pessoas. Acho que um tanto do Rafael da escola persiste até hoje, esse sujeito que quer impressionar, conseguir amigos, entrar nas turmas pra ajudar na forma que puder. E, claro, conquistei um tanto de maturidade artística nessa minha curta jornada que me dá algumas certezas que preciso pra continuar.

Tenho projetos longos, médios e curtos. Claro que entram umas coisas no meio, mas basicamente o ano já se desenha logo de cara. Aprendi a me organizar, a me disciplinar, porque é uma profissão que exige muita disciplina... gosto de realizar coisas então não fico vacilando não...

VIRADAS PESSOAIS, ORGANIZAÇÃO

2008, saída da Base V... amigos muito queridos... mas quando saí vi que tinha que decidir as coisas por conta própria... comecei a trabalhar em parceria com a galeria Choque Cultural, fazendo meus próprios quadros e exposições... então essa minha autoralidade foi infligida também... você tem que ser você... coincidentemente foi também quando surgiu a parceria com o Daniel Galera, que foi uma parceria muito diferente das minhas anteriores, porque me obrigou a ser autêntico e a escolher entre as várias gamas de possibilidades qual era o meu traço, qual era o meu ritmo de trabalho, quais eram as minhas soluções de roteiro, o que eu queria... tive muita sorte de encontrar um cara que estava no mesmo momento autoral, o Galera, que já tinha alguns livros publicados e tinha uma voz autoral já muito forte... foi um momento de virada pra mim.

Em 2004 foi a primeira vez que vi meu traço mudar... fazia um curso com desenhos de modelos vivos e fiquei muito feliz, empolgado... em 2008 com a Cachalote também ... agora eu tô vendo alguma coisa acontecer também e acho que é o volume de trabalho... nunca fui um sujeito de qualidade sobre quantidade, sempre fui de quantidade sobre qualidade... a quantidade de trabalho geralmente me jogou em um lugar no qual o resultado saiu diferente... que eu obrigatoriamente tive que aprender e solucionar coisas em função de projetos extensos ou entregas contínuas... nada melhor pra quem tá no meio que o trabalho contínuo... porque é um troço de repetição... é uma musculatura cerebral e espiritual que precisa ser exercida diariamente, tanto é que artistas gráficos que ficam muito tempo sem desenhar enferrujam... isso não é um mito, acontece mesmo. No fim do dia seu desenho tá melhor... se você desenhou o dia inteiro os últimos 10 minutos são excelentes... se for a semana inteira, o último dia da semana é excepcional... e é cruel porque é exatamente quando você precisa parar, que seu corpo tá doendo, sua cabeça tá exausta... então tem muito isso... somos alimentados pelo correr dos dias, pela demanda, pelo exercício diário... é maçante, mas também muito recompensador... se você aguenta e se organiza pra que os resultados saiam eles podem te surpreender.

É preciso deixar que a vida alimente a produção continuamente. Acho que existe um problema crônico nessa nova geração de artistas gráficos e plásticos que já chegam com muita violência e ambição no mercado antes de desenvolver essa relação entre a vida e o trabalho. Não existe uma retroalimentação aí, ela é só fruto de uma ambição, um desejo que é exterior a tua vida, exterior a tudo.  Gosto muito dessa angústia de trabalhar lentamente, disciplinadamente, rotineiramente sobre algo que só vai acontecer daqui há dois anos (histórias longas em quadrinhos, pinturas, exposições – Fogo Fácil, filme que alimenta foto que alimenta pintura).

FOGO FÁCIL from Peppe Siffredi on Vimeo

Conversei uma vez com o Zélio [Alves Pinto], irmão do Ziraldo. Tava super angustiado e fui conversar com ele. Depois descobri que ele teve a mesma conversa com meu pai quando meu pai era jovem. Ele é mais velho que nós dois [tem 75 anos] e ele falou a mesma coisa pra mim que falou pro meu pai: organize seu cronograma porque você é artista e também um empreendedor da marca de si mesmo e tem que organizar seu tempo para produzir algo curto, algo médio e algo longo. Aquilo me deu uma calma muito grande porque não dizia respeito às minhas angústias mais subjetivas, mas resolvia matematicamente algo que eu, nos meus 24 anos, precisava. Ali entendi como deveria organizar a minha vida e que cabia a mim decidir quais projetos curtos, médios e longos eles seriam.

O AUTOR, O AUTOR

Nesse jogo todo tem essa história da autoralidade que a gente discute muito nos mundos dos quadrinhos e das artes plásticas. A voz autoral... em que momento ela aparece? Quais são as demandas que ela te pede? Quase como uma voz de fora que chega te exigindo coisas, te tirando o sono... não tenho a sabedoria do Zélio, mas o conselho que posso dar é “ouça a sua voz autoral” e isso é uma coisa muito pessoal, muito de cada um, e não acho que sou maior ou melhor que ninguém porque produzo meu próprio trabalho. Eu sei o preço que pago por essas escolhas. Minha mulher sabe mais que ninguém [risos]. Tem que escutar essa voz, esse latido do cachorro [referência ao filme Verão de Sam]... se ele tá dizendo que você tem que matar, você tem que matar [risos]...

O quanto de espaço eu tenho... o quanto posso ser autoral pra aquela demanda... me procuram mais pra ser autoral, já me dando bastante espaço... e sei que não funciono tão bem quando me dão muitas diretrizes, sei que vou brochar... Falavam que meu trabalho já era muito autoral, não adiantava fazer outra coisa, não ia dar certo me pedir um infográfico ou algo assim... mas isso, durante um período, foi muito frustrante, achei que não fosse me encaixar... a duras penas vi que isso era uma coisa boa e que me salvou. Mas também me salva porque faço várias coisas ao mesmo tempo. Se tivesse ficado só em pintura estaria em apuros ou se fosse só quadrinista... essa coisa que me disseram lá atrás... se não me engano foi uma terapeuta... a questão dessa minha autoralidade vem dessa inquietação de fazer várias coisas ao mesmo tempo, trabalhar com mídias diferentes... se fosse uma só talvez não fosse tão autoral assim porque teria que abrir mão disso pra sobreviver... os latidos seriam mais baixos... seriam latidos de poodle [risos]...

Canal IdeaFixa - Laerte e Rafa Coutinho - FiznaMTV #PAI from IdeaFixa on Vimeo

E O PAI DO RAFAEL?

Nunca perdi o foco do trabalho dele, sempre acompanhei, e só aceitei essas curadorias [FIQ em novembro, Balada Literária em dezembro e uma outra num espaço cultural na Vila Leopoldina] porque não teria que fazer um trabalho angustiante de leitura das coisas antigas pra pensar numa exposição... até porque ele mesmo não queria uma coisa de retrospectiva... então a gente tá criando um jogo do zero, um gráfico, uma coisa que envolva as pessoas... não é nada do tipo “veja esse quadro”... então a gente tá bolando outra coisa... mas nunca deixei de acompanhar o trabalho dele... me estimula, me instiga, me deixa pasmo... e ele tá agora tentando se reciclar, se reentender como artista... é um cara que admiro muito, somos muito amigos, nos falamos continuamente, trocamos informações e acompanhamos o trabalho um do outro... a opinião dele é muito importante pra mim em tudo que faço. Tenho muita sorte de ter um pai assim, na real, independente de ser o Laerte que as pessoas idolatram e admiram, o meu pai é um sujeito muito parceiro e um grande amigo. Tenho sorte. É um artista ducaralho, impressionante, sensível, generoso, tenho sorte.

sábado, 13 de julho de 2013

é fácil seduzir rafael coutinho

ano de várias matérias cortando os ares do brasil. já rolaram umas cinco pra revista da gol (naldo e marcelo D2, por exemplo), uma pra tam nas nuvens e agora essa pra azul magazine. rafael coutinho foi sugestão minha e a conversa foi muito melhor do que imaginava. como sempre deixei a entrevista para depois das fotos - que ficaram a cargo de victor affaro -, o que deixa tudo mais relaxado, e fiz questão de falar pouco do pai laerte, pois rafael tem voz autoral muito forte para ser um mero "filho de...". agradecimentos a alexandre maron que me indicou e, acima de tudo, a patrick moraes, editor da azul magazine (sempre bom encontrar bons editores). ah, já publiquei aqui no esforçado a íntegra da entrevista.


RETRATO DE UM ARTISTA COM IDEIAS DE SOBRA

No alto da escada uma vira lata balança o rabo. Seu nome é Mexerica e ela é a responsável pelas boas vindas ao ateliê que Rafael Coutinho, 33, divide com outros amigos-artistas no bairro da Pompéia, Zona Oeste de São Paulo. Após receber as devidas carícias, Mexerica retorna à companhia do igualmente vira lata Pancho numa almofada ao lado da prancheta de Rafael. “Eles já eram namorados antes d’eu adotá-los”, relembra e logo pede para ninguém chegar perto da almofada. Pancho é muito protetor de seu território.

Filho de Laerte Coutinho, criador dos Piratas do Tietê e um dos maiores nomes do quadrinho nacional, Rafael tornou-se, em pouco mais de três anos, uma das grandes revelações do meio. Alguns já o conheciam de animações (trabalhou no premiado clipe “Chapa o côco”, do rapper Xis, e assinou curtas como “Aquele Cara”), outros de seu trabalho no coletivo de arte urbana Base V, e outros ainda de suas primeiras histórias em quadrinhos em coletâneas e revistas independentes como a Sociedade Radioativa. Mas a virada na sua carreira foi mesmo com o elogiado Cachalote (2010), livro em quadrinhos feito em parceria com o escritor Daniel Galera.

Não foi da noite para o dia que Rafael chegou ao ponto de Cachalote, e nem por um caminho só. “Na infância usava o desenho como ferramenta para impressionar professoras e amigos. Não era por timidez, sempre fui extrovertido, era mais porque já tinha uma facilidade. Era meu cartão de apresentação. Em matéria que não ia bem desenhava ao redor da prova e a professora achava bonitinho e me dava mais nota [risos]. Usei bastante esse artifício [risos].”

Na época do vestibular viu que aquela sua facilidade, estimulada discretamente pelo pai-amigo já conhecido, era a única opção possível. Optou por Artes Plásticas sem saber direito o que lhe esperava e muito menos se realmente queria ser artista. “Durante a faculdade entrei em um estúdio de animação ligado a uma editora e comecei a me acalmar. Foi ali que vi que algum resultado estava saindo”. Trabalhou em charges, no primeiro videoclipe (“Chapa o côco”) e em muitas outras animações até montar um estúdio de design e arte urbana experimental com amigos, o Base V.

“Sempre tive esse interesse em trabalhar em diversas plataformas. Em algum momento me foi passada a informação de que esse meu desejo não só não era um problema como poderia ser a minha salvação em momentos de crise. Mas entendi também que profissionalmente era preciso focar em alguma dessas mídias pra ser reconhecido. Só que nunca me fechei porque gosto mais das ideias que das mídias”. E as ideias de Rafael seguiam ganhando formas nas animações, em pinturas e, cada vez mais, em quadrinhos. “Eu me defino como me convém. Se estou numa roda com quadrinistas, sou um quadrinista. Se me veem como um pintor, sou um pintor. Não vejo necessidade em me definir tanto assim. Acho que a essa altura do campeonato, o trabalho me define. Acho que tem muita coisa pra ser testada e também me empolgo com facilidade com a ideia dos outros. É fácil me seduzir [risos]”.



Empolgado sempre, Rafael decidiu em 2008 sair do conforto do coletivo Base V em busca de sua própria voz autoral. Coincidentemente foi também quando conheceu Daniel Galera e nasceu o projeto de Cachalote. “É preciso deixar que a vida alimente a produção continuamente. Acho que existe um problema crônico nessa nova geração que já chega com muita violência no mercado antes de desenvolver essa relação entre a vida e o trabalho. O conselho que posso dar é ‘ouça sua voz autoral’ e isso é uma coisa muito pessoal. Não acho que sou maior ou melhor que ninguém porque produzo meu próprio trabalho. Sei o preço que pago por essas escolhas. Minha mulher sabe mais que ninguém [risos]. Mas é preciso escutar essa voz, esse latido do cachorro... se ele tá dizendo que você tem que matar, você tem que matar [risos]”.

Atualmente, Rafael Coutinho está ouvindo mais latidos que nunca. Após lançar o segundo volume de Beijo Adolescente, uma série de histórias curtas, ele está finalizando para o final do ano o ousado Mensur, sua primeira longa história em quadrinhos 100% autoral. Enquanto isso vai tocando a loja virtual e selo Narval Comix, procura uma nova galeria para lhe representar e prepara, como curador, três exposições que homenagearão o pai Laerte no segundo semestre. E pretende retomar Fogo Fácil, projeto que reúne cinema, fotos e pinturas. “Acho que desde 2008 não fiquei nem um período sem trabalho, e não é porque sou excepcional, é porque me sobra ideia mesmo”. Pancho e Mexerica não o deixam mentir.





SAIBA MAIS

No batente: Rafael Coutinho trabalha desde os 16 anos e antes de se tornar quadrinista, pintor, etc. assumiu funções como garçom em restaurante, vendedor de CDs em banquinhas de stand center e atendente de locadora de vídeos.

Ídolos nos quadrinhos: O norte-americano Jaime Hernandez (Love & Rockets), o espanhol Miguelanxo Prado (Mundo Cão), o japonês Taiyo Matsumoto (Tekkonkinkreet), o francês Cyril Pedrosa (Três Sombras) e, claro, o pai (“O trabalho dele me estimula e me deixa pasmo. É um artista impressionante, sensível, generoso”).

Ídolos no cinema: Os franceses Bruno Dumont (A Humanidade) e Jacques Audiard (O Profeta), a argentina Lucrecia Martel (O Pântano) e o norte-americano Paul Thomas Anderson (Sangue Negro).

Ídolos na pintura: O inglês David Hockney, o alemão naturalizado inglês Lucien Freud, o alemão Neo Rauch e o brasileiro Wesly Duke Lee.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

mexidão #23

o bicho ainda tá pegando, o couro ainda tá comendo, muita coisa ainda está para ser entendida, mas acho que consegui nesse texto, publicado originalmente em 19 de junho, reunir algumas ideias sobre esse tumultuado e revelador mês de 2013. agora é esperar o tempo...

foto Everton Nunes

O QUE JUNHO DE 2013 PODE NOS ENSINAR

Histórico. Lindo. Memorável. Fantástico. Pacífico. Foram muitos e positivos os adjetivos usados para definir o que ocorreu em São Paulo na segunda-feira, 17 de junho, quando mais de 100 mil pessoas tomaram as ruas da maior cidade do país no “Quinto Grande Ato Contra o Aumento das Passagens”. Altamente recomendáveis as reportagens dos colegas Pedro Alexandre Sanches (“São Paulo, 17 de junho de 2013: a farsa e o pacto”) e Ana Aranha (“Protestos de junho, um retrato impossível”) e o relato da urbanista Raquel Rolnik (“São Paulo: a voz das ruas e a oportunidade de mudanças”).

Ontem, 18 de junho, durante o “Sexto Grande Ato”, parece que parte do sonho acabou, afinal o ato que começou na Praça da Sé acabou se dividindo esquizofrenicamente. Enquanto na Avenida Paulista reinava o mesmo clima paz & amor da segunda, com ênfase na questão do transporte e da cidade, no Centro um grupo sem conexão com o Movimento Passe Livre tentou invadir a Prefeitura. Manifestantes contrários à violência conseguiram conter os mais exaltados, houve discussão e suspeitas que os vândalos seriam policiais disfarçados ou militantes de extrema-direita. Um carro da TV Record foi queimado, bancos foram depredados, lojas saqueadas e duas horas depois chegou o Choque da PM varrendo tudo com bombas e tiros até alcançar a Paulista. O jornalista Pedro Alexandre Sanches ficou no lado alegre do ato e escreveu “São Paulo, 18 de junho de 2013: pororoca”.

Mesmo que certas coisas a gente só entenda com o passar do tempo e o desenrolar dos acontecimentos, já é possível tirar alguns ensinamentos desta impressionante série de manifestações que se espalharam por todo o país. Vamos lá...


A rua é o palco. Isso não é novidade nem aqui, nem na China, mas gerações mais novas ainda não tinham vivenciado o poder catártico de tomar a rua para se fazer ouvir. Porque é na rua que a sociedade se encontra e se confronta, e é na rua que a vida (social) acontece. Portanto, estar na rua é tomá-la para si e assumir responsabilidades individuais e coletivas, além de ser um chamado por uma cidade para todos (e não só para os carros).

Redes sociais fazem a diferença. Os mais céticos sempre criticaram o “ativismo de sofá” e as petições online, mas foram os movimentos nas redes sociais que deram início a esta série histórica de manifestações no Brasil. Nesse novo estado das coisas, o Facebook tem o papel de organizar os eventos e reunir as pessoas em torno de uma causa (ou de várias causas), enquanto o Twitter é uma rápida e poderosa ferramenta de informações em tempo real. Os dois juntos servem ainda para descentralizar o noticiário e furar o bloqueio da parcialidade da grande imprensa.

Não ter líderes é bom. Essa talvez seja uma das características mais novas e transformadoras das atuais manifestações. Também é assustadora para quem está acostumado a ser guiado (ou pautado) por líderes carismáticos e salvadores da pátria. É o tal “existe um líder dentro de você” cantado por Chico Science ao fim de “Todos Estão Surdos” (Roberto e Erasmo Carlos) só que numa versão mais complexa com manifestantes-líderes que precisam ser também gestores da própria ação coletiva. É uma interessante e rica combinação que já está criando uma nova geração de ativistas de esquerda sem ligações partidárias (afinal uma luta por transporte gratuito e fora da iniciativa privada é sim uma bandeira de esquerda).

Política pode ser diversão. Muita gente tem se mostrado incomodada com o ar festeiro de grande parte das manifestações. Bobagem. Palavras de ordem podem ter humor, fantasias são bem vindas e a sisudez é apenas um jeito dos poucos de sempre se manterem no comando.
Qual o problema de uma bateria segurar uma levada de funk carioca acompanhada por um trompete que toca o refrão de “Seven Nation Army” (White Stripes)? Não é o humor, não é a festa que esvaziam um movimento social. Deixem os meninos e meninas brincarem com a política. Talvez seja esse um dos caminhos para novas gerações entenderem que política é parte indissociável do cotidiano de todos e não de alguns “profissionais”.


Polícia Militar não serve para nada. Quer dizer, serve para bater, humilhar e oprimir como já foi visto em São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Porto Alegre e tantas outras cidades. Em reportagem da TV Folha, o vereador e pessoa violenta Conte Lopes afirma que “a Tropa de Choque [da PM] não foi feita para dialogar”. Bem, a base do estado democrático é o diálogo, portanto não é mais possível tolerar a existência de um aparelho repressor contra o próprio povo (e em relatório do ano passado, a ONU recomendou ao Brasil a extinção da PM por execuções sumárias e desrespeito aos diretos humanos). Em São Paulo ficou muito claro que a ausência da PM não resultou em nada próximo de baderna, tanto que um dos gritos mais recorrentes na segunda foi: “Que coincidência! Sem polícia não teve violência”.

Uma causa de cada vez. O surgimento do bordão “não é só por 0,20” foi uma resposta à violência policial em São Paulo na quinta, 13 de junho. Foi um jeito de falar que era também pela liberdade de manifestação. Mas o que pouca gente imaginava era que isso seria usado por grupos oportunistas e a grande imprensa para tentar tirar o foco dos atos e, consequentemente, esvaziá-lo. Já na bela manifestação de segunda foi possível ver inúmeros caroneiros – inclusive com bandeiras preconceituosas, vejam exemplos no tumblr Orgulho de Ser Coxinha – que nem se interessavam pela questão levantada pelo Movimento Passe Livre. A violenta esquizofrenia de ontem, 18 de junho, foi resultado desse início de descaracterização do movimento. É preciso centrar forças e evitar bandeiras genéricas.

“O povo acordou” é uma grande besteira. Não, o “povo” não acordou e um dos melhores cartazes de segunda deixou isso bem claro (“Só agora você acordou? A periferia nunca dormiu”). Participar de um ou dois atos na rua é bonito, é legal, mas não significa tomar consciência.

É preciso tomar cuidado com autoritarismos. A demonização de partidos políticos nas manifestações é uma grande violência e uma enorme burrice. Estamos numa democracia e se um cretino pode levantar um cartaz pedindo a volta da dos militares, qual é o problema de bandeiras do PSTU, PCO, PSOL, PT ou PSDB? Todos estão sendo oportunistas, pro mal ou pro bem, e todos precisam ter direito a voz, mesmo que você (ou eu) não concorde. Também ocorreu violência contra órgãos da imprensa e aí segue um recado para quem não deixou, por exemplo, o repórter Caco Barcellos trabalhar: você não é diferente da PM que atirou em jornalistas na quinta. Isso sem falar no patriotismo de fachada de quem veste a bandeira do Brasil ou canta o hino, mas só pensa no próprio umbigo. Nessas horas é sempre bom lembrar a célebre frase do pensador inglês Samuel Johnson (1709-1784): “O patriotismo é o último refúgio de um canalha”.