RETRATO DE UM ARTISTA
COM IDEIAS DE SOBRA
No alto da escada uma vira lata balança o rabo. Seu nome é
Mexerica e ela é a responsável pelas boas vindas ao ateliê que Rafael Coutinho,
33, divide com outros amigos-artistas no bairro da Pompéia, Zona Oeste de São
Paulo. Após receber as devidas carícias, Mexerica retorna à companhia do
igualmente vira lata Pancho numa almofada ao lado da prancheta de Rafael. “Eles
já eram namorados antes d’eu adotá-los”, relembra e logo pede para ninguém
chegar perto da almofada. Pancho é muito protetor de seu território.
Filho de Laerte Coutinho, criador dos Piratas do Tietê e um
dos maiores nomes do quadrinho nacional, Rafael tornou-se, em pouco mais de
três anos, uma das grandes revelações do meio. Alguns já o conheciam de
animações (trabalhou no premiado clipe “Chapa o côco”, do rapper Xis, e assinou
curtas como “Aquele Cara”), outros de seu trabalho no coletivo de arte urbana
Base V, e outros ainda de suas primeiras histórias em quadrinhos em coletâneas
e revistas independentes como a Sociedade Radioativa. Mas a virada na sua
carreira foi mesmo com o elogiado Cachalote
(2010), livro em quadrinhos feito em parceria com o escritor Daniel Galera.
Não foi da noite para o dia que Rafael chegou ao ponto de Cachalote, e nem por um caminho só. “Na
infância usava o desenho como ferramenta para impressionar professoras e
amigos. Não era por timidez, sempre fui extrovertido, era mais porque já tinha
uma facilidade. Era meu cartão de apresentação. Em matéria que não ia bem
desenhava ao redor da prova e a professora achava bonitinho e me dava mais nota
[risos]. Usei bastante esse artifício [risos].”
Na época do vestibular viu que aquela sua facilidade,
estimulada discretamente pelo pai-amigo já conhecido, era a única opção
possível. Optou por Artes Plásticas sem saber direito o que lhe esperava e
muito menos se realmente queria ser artista. “Durante a faculdade entrei em um
estúdio de animação ligado a uma editora e comecei a me acalmar. Foi ali que vi
que algum resultado estava saindo”. Trabalhou em charges, no primeiro
videoclipe (“Chapa o côco”) e em muitas outras animações até montar um estúdio
de design e arte urbana experimental com amigos, o Base V.
“Sempre tive esse interesse em trabalhar em diversas
plataformas. Em algum momento me foi passada a informação de que esse meu desejo
não só não era um problema como poderia ser a minha salvação em momentos de
crise. Mas entendi também que profissionalmente era preciso focar em alguma
dessas mídias pra ser reconhecido. Só que nunca me fechei porque gosto mais das
ideias que das mídias”. E as ideias de Rafael seguiam ganhando formas nas
animações, em pinturas e, cada vez mais, em quadrinhos. “Eu me defino como me
convém. Se estou numa roda com quadrinistas, sou um quadrinista. Se me veem
como um pintor, sou um pintor. Não vejo necessidade em me definir tanto assim.
Acho que a essa altura do campeonato, o trabalho me define. Acho que tem muita
coisa pra ser testada e também me empolgo com facilidade com a ideia dos
outros. É fácil me seduzir [risos]”.
Empolgado sempre, Rafael decidiu em 2008 sair do conforto do
coletivo Base V em busca de sua própria voz autoral. Coincidentemente foi
também quando conheceu Daniel Galera e nasceu o projeto de Cachalote. “É preciso deixar que a vida alimente a produção
continuamente. Acho que existe um problema crônico nessa nova geração que já
chega com muita violência no mercado antes de desenvolver essa relação entre a
vida e o trabalho. O conselho que posso dar é ‘ouça sua voz autoral’ e isso é uma
coisa muito pessoal. Não acho que sou maior ou melhor que ninguém porque
produzo meu próprio trabalho. Sei o preço que pago por essas escolhas. Minha
mulher sabe mais que ninguém [risos]. Mas é preciso escutar essa voz, esse
latido do cachorro... se ele tá dizendo que você tem que matar, você tem que
matar [risos]”.
Atualmente, Rafael Coutinho está ouvindo mais latidos que
nunca. Após lançar o segundo volume de Beijo
Adolescente, uma série de histórias curtas, ele está finalizando para o
final do ano o ousado Mensur, sua
primeira longa história em quadrinhos 100% autoral. Enquanto isso vai tocando a
loja virtual e selo Narval Comix, procura uma nova galeria para lhe representar
e prepara, como curador, três exposições que homenagearão o pai Laerte no segundo
semestre. E pretende retomar Fogo Fácil,
projeto que reúne cinema, fotos e pinturas. “Acho que desde 2008 não fiquei nem
um período sem trabalho, e não é porque sou excepcional, é porque me sobra
ideia mesmo”. Pancho e Mexerica não o deixam mentir.
SAIBA MAIS
No batente:
Rafael Coutinho trabalha desde os 16 anos e antes de se tornar quadrinista,
pintor, etc. assumiu funções como garçom em restaurante, vendedor de CDs em
banquinhas de stand center e atendente de locadora de vídeos.
Ídolos nos quadrinhos:
O norte-americano Jaime Hernandez (Love
& Rockets), o espanhol Miguelanxo Prado (Mundo Cão), o japonês Taiyo Matsumoto (Tekkonkinkreet), o francês Cyril Pedrosa (Três Sombras) e, claro, o pai (“O trabalho dele me estimula e me
deixa pasmo. É um artista impressionante, sensível, generoso”).
Ídolos no cinema:
Os franceses Bruno Dumont (A Humanidade)
e Jacques Audiard (O Profeta), a argentina Lucrecia Martel (O Pântano) e o norte-americano Paul
Thomas Anderson (Sangue Negro).
Ídolos na pintura:
O inglês David Hockney, o alemão naturalizado inglês Lucien Freud, o alemão Neo
Rauch e o brasileiro Wesly Duke Lee.
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