INFÂNCIA, PRIMEIROS DESENHOS
A primeira lembrança... tenho fragmentos de quando era bem
jovem desenhando coisas na escola... eu usava o desenho como ferramenta pra
impressionar as professoras e os amigos... e já tinha uma facilidade... minhas
memórias mais antigas já me trazem isso, que eu tinha uma facilidade pra
desenhar, com o assunto... e desenhando com o meu pai, pedindo pra ele desenhar
coisas pra mim... super heróis, personagens de séries japonesas dos anos 1980,
personagens de vídeo games, Bart Simpson, Snoopy, robôs, umas caricaturas,
personagens mais cômicos...
Sempre fui extrovertido, desenhar era mais uma facilidade
mesmo, não era por timidez... mas a gente se mudou muito de cidade quando eu
era criança... agora em retrospecto vejo que usei muito o desenho para fazer
amigos e conquistar pessoas com mais facilidade, era o meu cartão de
apresentação... sempre desenhei muito na escola. Em matéria que eu não ia bem
eu desenhava ao redor da prova e a professora achava bonitinho e me dava mais
nota [risos]... usei bastante esse
artifício [risos]...
Eu acho que ele [Laerte]
se divertia com a gente, com o assunto... nunca direcionou, pressionou ou
incentivou pra que eu seguisse esse caminho... ele gostava de ver as coisas que
eu fazia e sempre participou dessa forma... queria que a gente mostrasse as
coisas que a gente tava fazendo, e não era só desenho... sempre foi um pai
estimulante, criativamente... na verdade sou muito grato por ele não ter
direcionado nada e nem que eu seguisse por um caminho que ele já tinha
previamente feito... e ia nos jogos de basquete, nos ensaios de dança... dancei
durante muitos anos, até a fase adulta, b-boy, e também fiz um pouco de dança
contemporânea, street dance, dancei mesmo... enfim, ele participou das coisas
que eu fiz... no teatro... então nunca foi uma coisa direcionada pro desenho...
e minha mãe também me estimulou muito, do jeito dela... sempre teve muita arte
em casa, quadros... era um casal comunista nos anos 80, né? Então tinham
máscaras sul-americanas, reproduções de Picasso...
ESCOLHAS, TRABALHO
Foi na época do vestibular, nessa época de escolher a
carreira, naquela confusão angustiante que o jovem tem na hora de escolher do
alto dos seus 17 anos... me pareceu ali que era a única opção possível... mas
não era uma coisa voltada para os quadrinhos... era Arte. Achei que tinha que
fazer algo com Artes Gráficas e acabei fazendo Artes Plásticas... prestei pra
Arquitetura e não passei, Desenho Industrial também não, e acabei fazendo
Artes. Demorei muitos anos pra entender o que era arte... entrei muito cru, não
sabia de nada, e acho que até metade da faculdade eu ainda tinha muita dúvida
se de fato queria ser artista... lutei contra isso.
Comecei a trabalhar muito cedo. Aos 16 eu já trabalhava...
fui garçom em restaurante, vendi CD em banquinha de standcenter, locadora... e
aí, em um segundo momento, entrei em um estúdio de animação ligado a uma
editora e comecei a me acalmar. Foi ali que vi que algum resultado estava
saindo... fazia charges animadas e foi lá que fiz meu primeiro videoclipe [“Chapa o côco”, Xis]... a gente ganhou prêmio na MTV [melhor clipe de rap no VMB 2002, indicado em outras duas categorias]...
fiquei muito excitado ali... acho que também descobri cedo que trabalhos longos
rendiam louros mais significativos na minha vida... acho que foi daí que nasceu
o prazer de fazer histórias longas, projetos mais extensos...
Trabalhei com animação durante muitos anos e montei um
estúdio próprio de design com alguns amigos de faculdade... durou três anos...
chamava Base V... aí experimentei street
art, murais, silk, serigrafia, era um tipo de arte experimental que a gente
acreditava que podia existir entre a rua e as galerias, que a gente tinha muito
preconceito... o grupo continua até hoje e eu me afastei em 2008... foi nesse
período que comecei a publicar minhas primeiras histórias em quadrinhos numa
publicação chamada Sociedade Radioativa, participei também de algumas
coletâneas e já me sentia com mais autonomia, mais certeza e que tinha material
para apresentar...
MULTIPLATAFORMAS
Sempre tive esse interesse em trabalhar em diversas
plataformas. Em algum momento me foi passada a informação de que esse meu
desejo de trabalhar em inúmeras mídias não só não era um problema como poderia
ser a minha salvação em momentos de crise ou dificuldade, e que eu não precisava
me preocupar tanto em me fechar em uma só mídia... entendi em minha fase adulta
que profissionalmente era preciso também focar em alguma dessas mídias pra que
eu também pudesse ser reconhecido. Vi que esse espírito bon vivant poderia
prejudicar, mas nunca me fechei porque gosto mais das ideias do que das mídias.
Então se a ideia me excita vamos fazer um filme... acabei me envolvendo
recentemente com cinema, gostei muito, aprendi muito com amigos do cinema e
quero continuar fazendo... fiz agora como ator uma peça com meu pai [“As Jóias”], achei que não fosse mais
acontecer e aconteceu... tô aberto...
Eu me defino como me convém. Se tô numa roda com
quadrinistas eu sou um quadrinista. Se me veem como um pintor eu sou um pintor.
Não vejo necessidade em me definir tanto assim. Acho que a essa altura do
campeonato, aos 33, o trabalho me define. É um trabalho que aparece e que estou
desenvolvendo... acho que desde 2008 não fiquei nem um período sem trabalho.
Não é porque sou excepcional... é porque me sobra ideia mesmo. Então, quando
não tem trabalho encomendado eu tô tocando as coisas que eu quero fazer e
realizar. É isso, acho que tem muita coisa pra ser testada e eu também me
empolgo com facilidade com a ideia dos outros. É fácil me seduzir [risos].
Gosto de trocar informações com as pessoas. Acho que um tanto do Rafael da
escola persiste até hoje, esse sujeito que quer impressionar, conseguir amigos,
entrar nas turmas pra ajudar na forma que puder. E, claro, conquistei um tanto
de maturidade artística nessa minha curta jornada que me dá algumas certezas
que preciso pra continuar.
Tenho projetos longos, médios e curtos. Claro que entram
umas coisas no meio, mas basicamente o ano já se desenha logo de cara. Aprendi
a me organizar, a me disciplinar, porque é uma profissão que exige muita
disciplina... gosto de realizar coisas então não fico vacilando não...
VIRADAS PESSOAIS,
ORGANIZAÇÃO
2008, saída da Base V... amigos muito queridos... mas quando
saí vi que tinha que decidir as coisas por conta própria... comecei a trabalhar
em parceria com a galeria Choque Cultural, fazendo meus próprios quadros e
exposições... então essa minha autoralidade foi infligida também... você tem
que ser você... coincidentemente foi também quando surgiu a parceria com o
Daniel Galera, que foi uma parceria muito diferente das minhas anteriores,
porque me obrigou a ser autêntico e a escolher entre as várias gamas de
possibilidades qual era o meu traço, qual era o meu ritmo de trabalho, quais
eram as minhas soluções de roteiro, o que eu queria... tive muita sorte de
encontrar um cara que estava no mesmo momento autoral, o Galera, que já tinha
alguns livros publicados e tinha uma voz autoral já muito forte... foi um
momento de virada pra mim.
Em 2004 foi a primeira vez que vi meu traço mudar... fazia
um curso com desenhos de modelos vivos e fiquei muito feliz, empolgado... em
2008 com a Cachalote também ... agora eu tô vendo alguma coisa acontecer
também e acho que é o volume de trabalho... nunca fui um sujeito de qualidade
sobre quantidade, sempre fui de quantidade sobre qualidade... a quantidade de
trabalho geralmente me jogou em um lugar no qual o resultado saiu diferente...
que eu obrigatoriamente tive que aprender e solucionar coisas em função de
projetos extensos ou entregas contínuas... nada melhor pra quem tá no meio que
o trabalho contínuo... porque é um troço de repetição... é uma musculatura
cerebral e espiritual que precisa ser exercida diariamente, tanto é que
artistas gráficos que ficam muito tempo sem desenhar enferrujam... isso não é
um mito, acontece mesmo. No fim do dia seu desenho tá melhor... se você
desenhou o dia inteiro os últimos 10 minutos são excelentes... se for a semana
inteira, o último dia da semana é excepcional... e é cruel porque é exatamente
quando você precisa parar, que seu corpo tá doendo, sua cabeça tá exausta...
então tem muito isso... somos alimentados pelo correr dos dias, pela demanda,
pelo exercício diário... é maçante, mas também muito recompensador... se você
aguenta e se organiza pra que os resultados saiam eles podem te surpreender.
É preciso deixar que a vida alimente a produção
continuamente. Acho que existe um problema crônico nessa nova geração de
artistas gráficos e plásticos que já chegam com muita violência e ambição no
mercado antes de desenvolver essa relação entre a vida e o trabalho. Não existe
uma retroalimentação aí, ela é só fruto de uma ambição, um desejo que é
exterior a tua vida, exterior a tudo. Gosto muito dessa angústia de trabalhar
lentamente, disciplinadamente, rotineiramente sobre algo que só vai acontecer
daqui há dois anos (histórias longas em quadrinhos, pinturas, exposições – Fogo Fácil, filme que alimenta foto
que alimenta pintura).
FOGO FÁCIL from Peppe Siffredi on Vimeo
FOGO FÁCIL from Peppe Siffredi on Vimeo
Conversei uma vez com o Zélio [Alves Pinto], irmão do
Ziraldo. Tava super angustiado e fui conversar com ele. Depois descobri que ele
teve a mesma conversa com meu pai quando meu pai era jovem. Ele é mais velho
que nós dois [tem 75 anos] e ele falou a mesma coisa pra mim que falou pro meu
pai: organize seu cronograma porque você é artista e também um empreendedor da
marca de si mesmo e tem que organizar seu tempo para produzir algo curto, algo
médio e algo longo. Aquilo me deu uma calma muito grande porque não dizia
respeito às minhas angústias mais subjetivas, mas resolvia matematicamente algo
que eu, nos meus 24 anos, precisava. Ali entendi como deveria organizar a minha
vida e que cabia a mim decidir quais projetos curtos, médios e longos eles seriam.
O AUTOR, O AUTOR
Nesse jogo todo tem essa história da autoralidade que a
gente discute muito nos mundos dos quadrinhos e das artes plásticas. A voz
autoral... em que momento ela aparece? Quais são as demandas que ela te pede?
Quase como uma voz de fora que chega te exigindo coisas, te tirando o sono...
não tenho a sabedoria do Zélio, mas o conselho que posso dar é “ouça a sua voz
autoral” e isso é uma coisa muito pessoal, muito de cada um, e não acho que sou
maior ou melhor que ninguém porque produzo meu próprio trabalho. Eu sei o preço
que pago por essas escolhas. Minha mulher sabe mais que ninguém [risos]. Tem
que escutar essa voz, esse latido do cachorro [referência ao filme Verão de Sam]... se ele tá dizendo que
você tem que matar, você tem que matar [risos]...
O quanto de espaço eu tenho... o quanto posso ser autoral
pra aquela demanda... me procuram mais pra ser autoral, já me dando bastante
espaço... e sei que não funciono tão bem quando me dão muitas diretrizes, sei
que vou brochar... Falavam que meu trabalho já era muito autoral, não adiantava
fazer outra coisa, não ia dar certo me pedir um infográfico ou algo assim...
mas isso, durante um período, foi muito frustrante, achei que não fosse me
encaixar... a duras penas vi que isso era uma coisa boa e que me salvou. Mas
também me salva porque faço várias coisas ao mesmo tempo. Se tivesse ficado só
em pintura estaria em apuros ou se fosse só quadrinista... essa coisa que me
disseram lá atrás... se não me engano foi uma terapeuta... a questão dessa
minha autoralidade vem dessa inquietação de fazer várias coisas ao mesmo tempo,
trabalhar com mídias diferentes... se fosse uma só talvez não fosse tão autoral
assim porque teria que abrir mão disso pra sobreviver... os latidos seriam mais
baixos... seriam latidos de poodle [risos]...
Canal IdeaFixa - Laerte e Rafa Coutinho - FiznaMTV #PAI from IdeaFixa on Vimeo
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E O PAI DO RAFAEL?
Nunca perdi o foco do trabalho dele, sempre acompanhei, e só
aceitei essas curadorias [FIQ em
novembro, Balada Literária em dezembro e uma outra num espaço cultural na Vila
Leopoldina] porque não teria que fazer um trabalho angustiante de leitura
das coisas antigas pra pensar numa exposição... até porque ele mesmo não queria
uma coisa de retrospectiva... então a gente tá criando um jogo do zero, um
gráfico, uma coisa que envolva as pessoas... não é nada do tipo “veja esse
quadro”... então a gente tá bolando outra coisa... mas nunca deixei de
acompanhar o trabalho dele... me estimula, me instiga, me deixa pasmo... e ele
tá agora tentando se reciclar, se reentender como artista... é um cara que
admiro muito, somos muito amigos, nos falamos continuamente, trocamos
informações e acompanhamos o trabalho um do outro... a opinião dele é muito
importante pra mim em tudo que faço. Tenho muita sorte de ter um pai assim, na
real, independente de ser o Laerte que as pessoas idolatram e admiram, o meu
pai é um sujeito muito parceiro e um grande amigo. Tenho sorte. É um artista
ducaralho, impressionante, sensível, generoso, tenho sorte.
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