o bicho ainda tá pegando, o couro ainda tá comendo, muita coisa ainda está para ser entendida, mas acho que consegui nesse texto, publicado originalmente em 19 de junho, reunir algumas ideias sobre esse tumultuado e revelador mês de 2013. agora é esperar o tempo...
foto Everton Nunes
O QUE JUNHO DE 2013
PODE NOS ENSINAR
Histórico. Lindo. Memorável. Fantástico. Pacífico. Foram
muitos e positivos os adjetivos usados para definir o que ocorreu em São Paulo na
segunda-feira, 17 de junho, quando mais de 100 mil pessoas tomaram as ruas da maior
cidade do país no “Quinto Grande Ato Contra o Aumento das Passagens”. Altamente
recomendáveis as reportagens dos colegas Pedro Alexandre Sanches (“São
Paulo, 17 de junho de 2013: a farsa e o pacto”) e Ana Aranha (“Protestos
de junho, um retrato impossível”) e o relato da urbanista Raquel Rolnik (“São
Paulo: a voz das ruas e a oportunidade de mudanças”).
Ontem, 18 de junho, durante o “Sexto Grande Ato”, parece que
parte do sonho acabou, afinal o ato que começou na Praça da Sé acabou se
dividindo esquizofrenicamente. Enquanto na Avenida Paulista reinava o mesmo
clima paz & amor da segunda, com ênfase na questão do transporte e da
cidade, no Centro um grupo sem conexão com o Movimento Passe Livre tentou
invadir a Prefeitura. Manifestantes contrários à violência conseguiram conter
os mais exaltados, houve discussão e suspeitas que os vândalos seriam policiais
disfarçados ou militantes de extrema-direita. Um carro da TV Record foi
queimado, bancos foram depredados, lojas saqueadas e duas horas depois chegou o
Choque da PM varrendo tudo com bombas e tiros até alcançar a Paulista. O
jornalista Pedro Alexandre Sanches ficou no lado alegre do ato e escreveu “São
Paulo, 18 de junho de 2013: pororoca”.
Mesmo que certas coisas a gente só entenda com o passar do
tempo e o desenrolar dos acontecimentos, já é possível tirar alguns
ensinamentos desta impressionante série de manifestações que se espalharam por
todo o país. Vamos lá...
A rua é o palco. Isso
não é novidade nem aqui, nem na China, mas gerações mais novas ainda não tinham
vivenciado o poder catártico de tomar a rua para se fazer ouvir. Porque é na
rua que a sociedade se encontra e se confronta, e é na rua que a vida (social)
acontece. Portanto, estar na rua é tomá-la para si e assumir responsabilidades
individuais e coletivas, além de ser um chamado por uma cidade para todos (e
não só para os carros).
Redes sociais fazem a
diferença. Os mais céticos sempre criticaram o “ativismo de sofá” e as
petições online, mas foram os movimentos nas redes sociais que deram início a
esta série histórica de manifestações no Brasil. Nesse novo estado das coisas,
o Facebook tem o papel de organizar os eventos e reunir as pessoas em torno de
uma causa (ou de várias causas), enquanto o Twitter é uma rápida e poderosa
ferramenta de informações em tempo real. Os dois juntos servem ainda para
descentralizar o noticiário e furar o bloqueio da parcialidade da grande
imprensa.
Não ter líderes é bom.
Essa talvez seja uma das características mais novas e transformadoras das
atuais manifestações. Também é assustadora para quem está acostumado a ser
guiado (ou pautado) por líderes carismáticos e salvadores da pátria. É o tal “existe
um líder dentro de você” cantado por Chico Science ao fim de “Todos Estão Surdos” (Roberto e Erasmo
Carlos) só que numa versão mais complexa com manifestantes-líderes que precisam
ser também gestores da própria ação coletiva. É uma interessante e rica
combinação que já está criando uma nova geração de ativistas de esquerda sem
ligações partidárias (afinal uma luta por transporte gratuito e fora da
iniciativa privada é sim uma bandeira de esquerda).
Política pode ser
diversão. Muita gente tem se mostrado incomodada com o ar festeiro de
grande parte das manifestações. Bobagem. Palavras de ordem podem ter humor,
fantasias são bem vindas e a sisudez é apenas um jeito dos poucos de sempre se
manterem no comando.
Qual o problema de uma bateria segurar uma levada de funk carioca
acompanhada por um trompete que toca o refrão de “Seven Nation Army” (White Stripes)? Não
é o humor, não é a festa que esvaziam um movimento social. Deixem os meninos e
meninas brincarem com a política. Talvez seja esse um dos caminhos para novas
gerações entenderem que política é parte indissociável do cotidiano de todos e
não de alguns “profissionais”.
Polícia Militar não
serve para nada. Quer dizer, serve para bater, humilhar e oprimir como já
foi visto em São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Porto Alegre e tantas
outras cidades. Em reportagem da TV Folha,
o vereador e pessoa violenta Conte Lopes afirma que “a Tropa de Choque [da PM] não
foi feita para dialogar”. Bem, a base do estado democrático é o diálogo,
portanto não é mais possível tolerar a existência de um aparelho repressor
contra o próprio povo (e em relatório
do ano passado, a ONU recomendou ao Brasil a extinção da PM por execuções
sumárias e desrespeito aos diretos humanos). Em São Paulo ficou muito claro que
a ausência da PM não resultou em nada próximo de baderna, tanto que um dos
gritos mais recorrentes na segunda foi: “Que coincidência! Sem polícia não teve
violência”.
Uma causa de cada vez.
O surgimento do bordão “não é só por 0,20” foi uma resposta à violência
policial em São Paulo na quinta, 13 de junho. Foi um jeito de falar que era
também pela liberdade de manifestação. Mas o que pouca gente imaginava era que
isso seria usado por grupos oportunistas e a grande imprensa para tentar tirar
o foco dos atos e, consequentemente, esvaziá-lo. Já na bela manifestação de
segunda foi possível ver inúmeros caroneiros – inclusive com bandeiras
preconceituosas, vejam exemplos no tumblr Orgulho de Ser Coxinha – que
nem se interessavam pela questão levantada pelo Movimento Passe Livre. A
violenta esquizofrenia de ontem, 18 de junho, foi resultado desse início de
descaracterização do movimento. É preciso centrar forças e evitar bandeiras
genéricas.
“O povo acordou” é
uma grande besteira. Não, o “povo” não acordou e um dos melhores cartazes
de segunda deixou isso bem claro (“Só agora você acordou? A periferia nunca
dormiu”). Participar de um ou dois atos na rua é bonito, é legal, mas não
significa tomar consciência.
É preciso tomar
cuidado com autoritarismos. A demonização de partidos políticos nas
manifestações é uma grande violência e uma enorme burrice. Estamos numa
democracia e se um cretino pode levantar um cartaz pedindo a volta da dos
militares, qual é o problema de bandeiras do PSTU, PCO, PSOL, PT ou PSDB? Todos
estão sendo oportunistas, pro mal ou pro bem, e todos precisam ter direito a
voz, mesmo que você (ou eu) não concorde. Também ocorreu violência contra
órgãos da imprensa e aí segue um recado para quem não deixou, por exemplo, o
repórter Caco Barcellos trabalhar: você não é diferente da PM que atirou em
jornalistas na quinta. Isso sem falar no patriotismo de fachada de quem veste a
bandeira do Brasil ou canta o hino, mas só pensa no próprio umbigo. Nessas
horas é sempre bom lembrar a célebre frase do pensador inglês Samuel Johnson
(1709-1784): “O patriotismo é o último refúgio de um canalha”.
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