quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

oh no, not me

na edição de fevereiro da Revista Monet contribui com dois textos (coisa rara). um foi sobre Babygirl, o filme mais recente da Nicole Kidman, e outro sobre David Bowie, por causa da estreia no canal Curta! de um bom documentário sobre sua música, vida e carreira. consegui nesse do Bowie algo que já tinha feito no do Hermeto Pascoal: entrevistas próprias. e aí a matéria sempre fica com um gosto melhor, mais pessoal. segue então a dita... 

O HOMEM QUE CAIU NA TERRA

David Robert Jones nasceu em 8 de janeiro de 1947 e tornou-se David Bowie em 16 de setembro de 1965 para não ser confundido com Davy Jones (The Monkees). Quando Bowie morreu em 10 de janeiro de 2016, aos 69 anos, ninguém confundiria um dos maiores artistas da cultura mundial com ninguém. Todo esse arco de vida, música e arte é contado com minúcias, entrevistas e muitas imagens de arquivo no documentário Bowie: O Homem Que Mudou o Mundo, uma das principais estreias do mês no Curta! 

“O Bowie mudou o jogo. Ele é Artista com A maiúsculo, um artista completo, que experimentou, viveu, nunca se acomodou e se expressou muito além da música”, explica Liv Brandão, jornalista e editora com passagens pelo jornal O Globo, UOL e Billboard Brasil. “Lembro que não comecei pelos clássicos do Bowie. O primeiro disco que ouvi dele, ainda na adolescência, foi o Earthling [1997], que meu irmão, 9 anos mais velho, tinha em CD. Achei a capa com aquele casacão do Alexander McQueen maneira e coloquei pra tocar. Não liguei muito, confesso. Aos 14 anos ainda não tinha a bagagem necessária pra isso”. 

“Meu amor por ele foi nascer já maior de idade, em festas indies que tocavam ‘Modern Love’ [1983] e ‘Sound and Vision’ [1977], que acabou virando minha preferida dele. Depois disso mergulhei pra saber mais sobre aquele homem fascinante e sua obra maravilhosa”, e Liv Brandão diz tudo quando usa o termo ‘mergulhar’. A obra musical de David Bowie é um recife de corais, diverso e em constante movimento. 

O começo, na adolescência, tocando sax em muitas bandas com repertórios variados. O primeiro disco, artístico e barroco, que saiu em 1967 e pouca gente ouviu. O primeiro sucesso, “Space Oddity”, em 1969, com sua psicodelia contemplativa e inspiração confessa em 2001: Uma Odisséia no Espaço. O hard rock guitarrístico de The Man Who Sold the World em 1970. A levada pop mais quente e pianística de Hunky Dory, lançado no final de 1971, com mais dois hits (“Changes” e “Life on Mars?”). O primeiro personagem, um alienígena andrógino que vira um glam rock star, que virou o mundo de cabeça para baixo em The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, de 1972. 

Bowie seguiu pela década de 1970 firme e inquieto, mas também com problemas no primeiro casamento, com o empresário e muita cocaína. E mesmo assim criou um novo personagem (Thin White Duke) e lançou discos clássicos como Aladdin Sane (1973), Diamond Dogs (1974) e Young Americans (1975), além da trilogia de Berlim composta por Low (1977), “Heroes” (1977) e Lodger (1979). 

“Considero oficialmente que o primeiro disco do David Bowie que escutei foi o Aladdin Sane. Tenho uma vaga lembrança de ouvir antes umas duas músicas dele na Rádio Continental de Porto Alegre em 1973, eu tinha 12 anos, mas só lembro do locutor dizendo o nome. O Aladdin Sane eu escutei mesmo e fiquei fascinado”, relembra Emílio Pacheco, jornalista gaúcho e um dos poucos privilegiados que estiveram presente nas duas únicas passagens de David Bowie pelo Brasil (1990 e 1997). 

Pacheco ouviu todas as mudanças de Bowie nos anos 1970 e também viu sua definitiva ascensão ao estrelato nos anos 1980 a partir do disco Let’s Dance (1983) e de seus cada vez mais frequentes trabalhos como ator (para ficar nos mais conhecidos, Fome de Viver, Furyo – Em Nome da Honra, Absolute Beginners e, acima de tudo, Labirinto). Mas nem tudo foi recebido com a mesma empolgação por fãs como Pacheco. 

“Quando me tornei fã do Bowie esperava que ele nunca mudasse de estilo, que ele continuasse sempre fazendo aquele tipo de rock da fase Ziggy Stardust. E o Bowie mudava radicalmente. E no primeiro momento não vi isso com bons olhos. Hoje, em retrospectiva, acho que uma das importâncias do Bowie foi ter se tornado um artista que nunca se prendeu a nenhum estilo e se recusou a se tornar nostalgia”, diz Pacheco que também confessa que a princípio não gostou de discos como Young Americans e Station to Station, e que atualmente estão entre os preferidos, mas que até hoje não entende Heroes

“Fui me acostumando com a ideia que o Bowie era um cara mutante, um camaleão como chamam, né? E fui acompanhando as mudanças dele, com interesse, gostando mais de uns discos que de outros, já sabendo que podia esperar qualquer coisa, porque a marca registrada dele era a imprevisibilidade. Bowie estava sempre surpreendendo”, e assim Pacheco fez as pazes com seu ídolo. Quando anunciaram Bowie no Brasil, em 1990, Pacheco estava preparado. Ou achava que estava. 

“Em 1990 vi um dos shows que ele fez no Brasil, que foi o do saudoso Olympia, em São Paulo, ingressos custando uma fortuna, mas realizei meu sonho de ver o Bowie. Fiquei uma parte do show pensando sem parar que ‘tava mesmo vendo o Bowie em terceira dimensão, com profundidade, que era ele mesmo que estava na minha frente. Que não era um filme. Isso me chamou atenção, coisa de fã”, mas se recompôs e pode curtir um show intimista para fãs que conheciam as músicas dos anos 1970 que cobriam boa parte do setlist. “Ouvi falar que o show da Praça da Apoteose no Rio de Janeiro e os do Parque Antártica, em São Paulo, o público só se animou com as músicas dos anos 80, ‘Let's Dance’, ‘Modern Love’, ‘China Girl’ e ‘Blue Jean’”. 

Sete anos depois, Bowie lançou Earthling, seu experimento com música eletrônica e vigésimo primeiro álbum. Foi na turnê desse disco que o inglês voltou ao Brasil com shows em São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba. E lá estava, novamente, Emílio Pacheco: “Assisti os três, foram sensacionais. O repertório era mais do momento, mas com algumas músicas mais antigas. Tinha uma pegada mais pesada, mais drum'n'bass, que era o lance dele na época. E o público geral estava mais bem informado e curtiu mais as músicas como um todo, não só aqueles sucessos mais manjados”. Pacheco já escreveu sobre esses shows diversas vezes em seu blog, mas não cansa de relembrar. Bowie segue mudando sua vida (e de outras e outros), música a música.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

e o albino Hermeto não enxerga mesmo muito bem

Hermeto Pascoal, o homem, a lenda, o bruxo. ele foi o assunto do meu mais recente frila pra Revista Monet. dessa vez conversei com três músicos amigos pra saber mais sobre um dos artistas mais originais da música brasileira. com vcs, Hermeto por Dudu Tsuda, Thiago França e Meno Del Picchia.

Hermeto por Bob Wolfenson

O BRUXO DOS MIL SONS 

Do alto de seus 88 anos, o músico Hermeto Pascoal mostra toda sua energia e originalidade em documentário inédito no canal Curta!

Hermeto Pascoal é um mistério em muitos sentidos. Não se sabe de onde vem tanta energia e muito menos tanta originalidade e inquietação musical. Não se sabe nem em qual localidade de Alagoas nasceu há 88 anos: algumas fontes dizem Canoa da Lagoa (é, inclusive, o nome de um seus mais famosos discos, Lagoa da Canoa, Município de Arapiraca, de 1984) e outras afirmam que é Olho d´Água Grande (35 km separam uma da outra). Os cineastas Lírio Ferreira e Carolina Sá optaram pela segunda e assim nasceu O Menino d'Olho d'Água, premiado e inédito documentário sobre o músico que estreia este mês no canal Curta! 

O longa traça um perfil de Hermeto a partir de três frentes: uma performance recente; suas lembranças de infância no sertão de Alagoas; e uma conversa sobre música e processo criativo. E a vida e obra do alagoano é um mar sem fim de histórias. Tem o encontro aos 7 anos com o acordeão do pai e os muitos forrós e festas de casamento que tocou ao lado do irmão José Neto. Tem os sons da natureza, os bichos, os instrumentos feitos com plantas e objetos. Tem a mudança para Recife aos 14 anos, o encontro com o igualmente albino e acordeonista Sivuca e as muitas rádios que tocou. Logo após completar 18 anos casou-se com Ilza, a origem de um casamento de 46 anos e 6 filhos, e descobriu o piano. 

Sempre a procura de trabalho, Hermeto foi com a família para João Pessoa atrás da Orquestra Tabajara e depois, em 1958, para o Rio de Janeiro para tocar na Rádio Mauá e também em boates e hotéis refinados. Então, no início da década de 1960, Hermeto se mudou para São Paulo e a flauta foi tomando o lugar do acordeão e do piano. Aos 25 anos, músico e pai de família, seguia tocando de tudo, mas começou a compor mais e sempre injetando Nordeste no samba jazz que fazia sucesso na época. Esteve no Som Quatro, no Sambrasa Trio e nos especialmente cultuados Quarteto Novo (o grupo que acompanhou Edu Lobo em “Ponteio”, a grande vencedora do Terceiro Festival de Música Popular Brasileira, produzido pela TV Record em 1967) e Brazilian Octopus. 

Então o percussionista Airto Moreira, seu companheiro no Quarteto Novo, o chamou para gravar nos Estados Unidos no final da década de 1960 e por lá Hermeto ficou cerca de quatro anos. Nesse período gravou dois discos com Airto e sua esposa, a cantora Flora Purim, atuando como compositor, arranjador e instrumentista. Também conheceu Miles Davis e chegou a trocar sopapos com o trompetista numa brincadeira de boxe (diz a lenda que Hermeto acertou um cruzado no rosto de Miles). O brasileiro albino e estrábico impressionou tanto o norte-americano que gravou duas de suas composições, “Nem um talvez” e “Igrejinha”, em seu disco Live-Evil (1971) com direito a participação de Hermeto tocando vários instrumentos. De volta ao Brasil em 1973, gravou seu primeiro disco solo (A Música Livre de Hermeto Pascoal) e deu início a uma das jornadas mais originais da música instrumental brasileira. 

TUDO É COISA MUSICAL

“Me lembro de escutar Hermeto pela primeira vez quando eu tinha uns 16 anos, em meados dos anos 1990. Um amigo baixista que tocava comigo na época me apresentou a música ‘Bebê’. Logo depois ouvi outras músicas dele e, claro, o seu famoso solo de chaleira que mudaria minha vida pra sempre. Parei e pensei: opa, que troço é esse? Mal sabia que alguns anos mais tarde, em 2002, seguiria nesse caminho que ele abriu e começaria minhas pesquisas em música experimental”, afirmou Dudu Tsuda, músico paulistano que participou de bandas como Cérebro Eletrônico, Jumbo Elektro e Trash Pour 4 e mais recentemente tem se dedicado a trilhas de espetáculos de dança e performances. 

O músico, professor e antropólogo Meno Del Picchia ouviu Hermeto pela primeira vez mais ou menos com a mesma idade que Tsuda. “Devia ter uns 13 ou 14 anos. Foi um disco chamado Hermeto Pascoal & Grupo, que é de 1982. Eu já estava tocando porque comecei a estudar piano ainda pequeno e depois, com 12, fui tocar instrumentos de corda, baixo e violão. E quando ouvi esse disco do Hermeto, eu pirei, achei maravilhoso, e comecei a tentar tirar umas músicas porque mexeu muito comigo. E uma das coisas que mais me impressionou, especificamente nesse primeiro álbum que ouvi, foi a capacidade do Hermeto de transportar a gente pra aquela sonoridade das bandas de coreto e seus instrumentos de sopro e percussão. Mas, ao mesmo tempo que o Hermeto me jogava em pracinhas do interior de Alagoas, ele também compunha músicas que remetiam para um jazz contemporâneo completamente experimental, e sempre com uma brasilidade muito forte”. 

Já Thiago França, criador da Espetacular Charanga do França e integrante do Metá Metá, nunca tinha ouvido nenhum disco de Hermeto até se deparar com o “bruxo” ao vivo no Sesc Campinas no final da década de 1990. “Foi uma loucura o show, porque o Hermeto tocou mais de 3 horas, e o povo do Sesc desesperado pedindo pra ele parar e ele não parava. Até uma hora que tiraram da tomada o teclado que ele estava tocando e ele catou um instrumento de percussão. O povo do Sesc subindo em cima do palco pedindo pra ele parar, pelo amor de Deus, e ele não parava. Então, essa é uma coisa que me identifico e pratico numa seara diferente, que é essa paixão, essa necessidade de tocar, essa coisa de começar a tocar e não querer parar nunca mais. É uma coisa que nunca vi em nenhuma outra pessoa, essa coisa da dedicação absoluta à música”. 

Esses três músicos, com suas sólidas carreiras próprias, não foram influenciados diretamente pela música de Hermeto, mas sim pelo jeito de fazer música de Hermeto e isso é coisa que não se esquece. “Ele é um farol para muitos jovens, pois vê-lo tocando, mesmo sabendo que são peças dificílimas, parece fácil e divertido. Ele aproxima as pessoas da música, as convida a querer também experimentar, a querer também inventar seu próprio modo de tocar. Seu ímpeto em experimentar novas linguagens e sons, por exemplo, formou meu espírito curioso e em constante interesse pela associação ainda não realizada, pelo novo formado a partir do encontro de diferentes. Ao mesmo tempo em que sua jovialidade me traz muita esperança no nosso fazer, não na esperança de ficar rico ou essas coisas banais, mas de que tudo vale à pena, mesmo que, por vezes, tenhamos a sensação que é o caminho mais difícil”, explicou Tsuda. 

Do seu jeitinho, Hermeto foi se espalhando e ganhando o mundo, principalmente Europa e Japão, lugares que nunca deixou de tocar desde os anos 1970. Montou também bandas que revelaram instrumentistas do naipe de Jovino Santos Neto, Carlos Malta, Itiberê Zwarg, Márcio Bahia, Nivaldo Ornelas, Nenê e Vinicius Dorin, que tocaram ao seu lado por anos a fio (uns ainda tocam). “Ele é um dos poucos artistas que consegue manter a mesma banda ao longo dos anos e isso faz toda diferença numa performance ao vivo, porque eles se conhecem muito, um já sabe o que o outro vai fazer e, sendo assim, o som tem uma força ainda maior”, disse Del Picchia. 

Thiago França concorda em gênero, número e degrau. “Ele é um cara que sabe valorizar as pessoas com quem ele toca, e tem essa magia de fazer todo mundo florescer junto. Mas o melhor de tudo é que na música de Hermeto tem frevo, choro, baião, samba, e tem coisas que a gente não consegue identificar direito o que são. Tem coisas super melódicas, outras super complexas, tem coisa muito suingada e tem tempos compostos dificílimos de tocar. Acho que ele foi em todos os lugares, e mapeou todas as possibilidades da música instrumental, e isso dele ter reunido dentro de um trabalho é o que o torna tão relevante. Ele é o cara que nos diz, e não só diz, mas mostra, que todos os caminhos são possíveis na música instrumental”.