sexta-feira, 17 de junho de 2011

jovino santos neto, a entrevista

dei uma olhada na transcrição da entrevista com o jovino, que gerou o perfil "alma em movimento" que fiz para a revista brasileiros, e realmente tinha muita coisa que ficou de fora. separei em blocos que seguem abaixo e vou intercalando com videos para o falatório descer mais gostoso.



AUTOEXÍLIO EM SEATTLE

Engraçado que não foi uma decisão consciente. Quer dizer, houve um planejamento, mas a escolha do lugar... foi mais o lugar que escolheu a gente que o contrário. Na época que sai do grupo do Hermeto... aliás, uma das razões que me fez querer sair do grupo do Hermeto... queria fazer um aperfeiçoamento em certas áreas, regência por exemplo. Conhecia alguns conservatórios ligados a universidades, mas que eram de uma praia mais careta que a minha praia musical. Ópera e coisas assim. Fui perguntando a amigos... por coincidência, dois anos antes, em 1990, quando ainda estava com o Hermeto fizemos uma turnê por várias cidades dos Estados Unidos, todas as grandes. Miami, Chicago, Nova York, Los Angeles, San Francisco e passamos por Seattle a caminho do Canadá. Senti uma vibração muito boa naquela cidade. Senti em outras cidades também. Mas antes de pensar em sair do grupo foi em Seattle que pensei, “poxa, gostaria de morar aqui”. O visual, o verde, muita água, montanhas. Gosto disso, sou do Rio de Janeiro e essas coisas sempre me chamaram. Dois anos depois quando pensei em me aperfeiçoar como regente, compositor e criar minhas raízes próprias pensei na cidade. Não conhecia ninguém lá. Por intermédio de amigos cheguei ao Julian Priester, trombonista excelente que já tocou com o Herbie Hancock e mora lá. Mandei um fax pra ele, não tinha email na época, dizendo que estava procurando um lugar para estudar e se ele conhecia. Imediatamente ele me respondeu que tinha uma escola no qual ele também dava aula e que era um lugar aberto, eclético. Era a Cornish College of the Arts e estou lá até hoje, dando aulas. Fui como aluno, fiz dois semestres e já comecei a dar aula. Não estava atrás do diploma, só queria ter aquela instrução básica e quando começaram a aparecer uns trabalhos de regência larguei as aulas. Também montei uma banda. Fora isso toda a parte burocrática de vistos e green card aconteceu de uma forma meio mágica. Talvez hoje em dia não rolasse, mas naquela época aconteceram uma série de coincidências que ajudaram. Menos de um ano após a nossa chegada já estávamos completamente legalizados e radicados. Como já estamos lá há 15 anos já podemos pegar cidadania americana, mas não é uma coisa que eu pense.

AÇÕES MUSICAIS

Fiz de tudo um pouco, mas toquei principalmente. Toquei com o Airto Moreira e a Flora Purim durante três anos. A gente viajou bastante pra Europa e nos Estados Unidos, viemos até para o Brasil... comecei a me envolver com áreas diferentes da música. Arranjos e composições para formações de câmara... possibilidades que surgiram por essa abertura da Cornish. Toquei com gente do jazz, do free jazz, músicos de outros países... e formei uma banda com amigos da faculdade que está junta até hoje... gravamos três discos juntos e vamos gravar mais...

TRABALHANDO COM HERMETO

Aqui eu trabalhava com o Hermeto Pascoal que é a maior referência musical instrumental que alguém pode ter... 15 anos com o Hermeto é uma escola no qual você aprende todas as coisas possíveis sobre a música instrumental brasileira... sou muito grato por isso, por esse aprendizado... e não foram 15 anos tocando uma vez por semana... foram 15 anos com ensaios 5 dias por semana, 6 horas por dias, 30 horas por semana, religiosamente, faça chuva, faça sol. Além das inúmeras turnês que fizemos pelo Brasil, Ásia, Europa, Estados Unidos. Tivemos uma convivência muito próxima. O ensino não era só piano, era música em geral, arranjos, composição, liderança de conjunto, flexibilidade, improviso, tudo isso a gente aprendeu com o Hermeto. Foi uma formação muito boa.

O Hermeto é um daqueles casos raros. O grau de expansão musical que ele tem... porque dom musical não é tão raro quanto as pessoas querem crer. Quase todas as crianças são musicalmente bem dotadas, mas conforme elas vão crescendo surgem os limites, geralmente auto-impostos. Hermeto também tinha esse dom quando era criança, provavelmente um pouco maior, mas o que aconteceu é que desde criança ele sentiu que aquilo era um trabalho, o seu trabalho. Já tocava aos 8, 9 e já era profissional aos 14. Olha, tocar em rádio naquela época era uma das coisas mais difíceis do mundo porque tinha que saber tocar tudo, rápido e ao vivo. Então ele teve que desenvolver antenas pra captar rapidamente essas informações. E Hermeto é muito disciplinado, estuda muito. Se você for na casa dele hoje, agora, ele estará estudando. Ele não pára e tem uma energia incrível. Fizemos há pouco um show em Toronto, no qual regi uma orquestra com 20 músicos e ele deu um banho em todo mundo. Quase quatro horas de show e a gente só correndo atrás, tentando alcançar ele.



ENSINAR MÚSICA BRASILEIRA

Bossa nova, samba e escola de samba. Procuro escapar desses clichês no curso que dou na universidade sobre a história da música brasileira. Falo de música nordestina, da influência dos ritmos africanos e das linguagens africanas na nossa música e as pessoas ficam impressionadas. Claro que não dá nem para arranhar a complexidade da história da nossa música nesse curso. É só uma casquinha. Agora, a razão da nossa música ser tão rica e tão aceita no mundo inteiro é porque ela condensa influência musicais do mundo inteiro, muito mais que qualquer outra cultura que eu conheça. Leste Europeu, Polônia, Hungria, no caso das polkas; as valsas de Viena da união de Dom João VI com os Habsburgos; as inúmeras e diferentes influências africanas porque em nenhum outro lugar vieram tantos escravos de lugares tão diferentes; a música indígena... tudo isso faz parte de um aprendizado que ainda não acabou.

Ao ir para os Estados Unidos tive oportunidade de entrar em uma área mais histórica. Sou fascinado por História e lá comecei a ler sobre aqui, o que acabou influenciando a minha música. A leitura de O Povo Brasileiro do Darcy Ribeiro influenciou muito o meu primeiro disco (Caboclo).

NO PALCO

Quando subo no palco para fazer um show não estou simplesmente tirando uma coisa de uma caixinha, do zero, do nada. Estou na realidade lançando uma linha, uma rede em um mar cheio de peixes, cheio de idéias musicais que estão ali a mais de 500 anos. É um fonte enorme de alimento para o amanhã, para gerações futuras. Uma das coisas que o Hermeto passou pra gente é que a música está em constante movimento.

ALMA DO NORDESTE, O PROJETO, O DISCO

Esse autor [C. Nery Camello] viajou pelo sertão da Bahia e outros lugares do Nordeste, em 1936, mesmo ano em que Hermeto nasceu. Não é um livro organizadinho. Uma hora está em Pernambuco, outra hora na Bahia, e fala de um cantador e depois fala de outra coisa. É um livro de impressões. Ele anotava tudo, poesias inteiras, o linguajar. Tem fotos no livro. Esse livro me impressionou um bocado. Sou do Rio de Janeiro, neto de nordestinos, mas nunca passei um tempo no Nordeste quando estava aqui. Tenho família em Recife e tudo o mais. Então deu um estalo e montamos o projeto. Refazer os passos desse escritor e retratá-los musicalmente. Em meados de 2006 o projeto foi aprovado. Já tinha esquecido. Levamos mais um ano para deixar tudo amarradinho pra viagem que aconteceu em maio de 2007.

Dentro da idéia musical do projeto estava a vontade de criar a música a partir dos sons, cheiros dessa viagem. Já conhecia muito de música nordestina através do trabalho com o Hermeto. Agora eu queria uma coisa diferente. E deu tão certo essa experiência que voltei para Seattle e levei uma semana para compor quase todas as músicas do disco.

Durante a viagem foi só observação. E também não estava buscando música, especificamente. É bom falar isso. Outro ensinamento de Hermeto: o músico não pode se inspirar só em música porque fica naquele círculo de auto-referência. Você se fecha num universo muito limitado. Você tem que se inspirar nas árvores, nas coisas, nas pessoas... uma freada de carro na rua pode ser uma inspiração musical. No Nordeste aconteceu isso. A gente estava em um hotel em Arapiraca, num sábado anterior ao Dia das Mães, ouvindo a gritaria das pessoas vendendo coisas. Caminhões com auto-falantes, a molecada vendendo CD pirata com uns carrinhos que pareciam aqueles de picolé com caixas de som imensas ligadas em bateria de carro, uma igreja evangélica com banda... uma cacofonia... a princípio eu odiei... tinha uma expectativa porque era a terra do Hermeto, e eu já tinha estado em Arapiraca muitos anos antes com ele... ah, vou encontrar uma coisa linda... cheguei e era um caos urbano como outro qualquer... quis sair correndo, mas parei pra pensar e achei que a gente estava ali por algum motivo. Isso acabou entrando no disco porque em vários momentos os músicos improvisam juntos e ao mesmo tempo. Não é aquela coisa de primeiro improvisa o piano, depois o saxofone e por aí. É uma conexão, todo mundo produz som e se ouve, ao mesmo tempo. Também vimos coisas lindas como a Serra da Borborema...

Foi tudo bem. O carro se comportou [risos]... mas realmente não houve nenhum desapontamento. Estava esperando voltar no tempo nessa viagem, atraso, essas coisas... mas todos os hotéis tinham internet sem frio e de graça, achei as estradas ótimas, a infra estrutura rolou tão legal, toda a pré-produção foi muito boa... e fiz um mapa ao acaso pegando coisas do livro e riscando o trajeto pelo Google Earth. Mas eu não sabia o que ia fazer em algumas cidades, quem ia encontrar... em alguns lugares tinha contato e em outros a gente logo ia pra feira ou pro mercado municipal e a história começava. Foi tudo muito bem. Voltamos com a mala cheia de idéias e por isso a música aconteceu muito naturalmente. Sem sofrimentos. Acabei escrevendo mais que devia. Veio muita música.



INTERNET E COMPARTILHAMENTO

O que é bacana na internet é que o meu outdoor é do mesmo tamanho que o de uma grande gravadora. É do tamanho da tela do computador.

A mídia CD realmente está acabando, mas ao mesmo tempo, quando a gente faz um show, o pessoal procura o CD e pede para autografar. Quer dizer, não dá para assinar o MP3! Sempre haverá a necessidade de um suporte físico. Poxa, até o vinil está voltando. Mas quero disponibilizar minhas músicas no formato digital.

Consigo ver os dois lados. Como compositor que paga aluguel, compra o leite das crianças, e vivendo com os direitos que a gente tem vendendo o nosso trabalho, não é legal ver as pessoas consumindo a minha música sem pagar nada. É como andar na rua e todo mundo passar a mão na sua carteira. Isso não é legal. Por outro lado, faço tanta música que não vejo problema nenhum em colocar algumas dessas músicas para as pessoas baixarem. Serve também como estímulo para as pessoas ouvirem mais músicas. Sempre quis que as pessoas levassem as partituras das minhas músicas após meus shows. Música é trabalho, mas também é fonte e fonte que não pode secar. O sujeito pode ir lá e beber um litro, pode ir lá e pegar três garrafas, é fonte de água e continua jorrando. De onde saiu essa tem muito mais.

ESTRANGEIRO BRASILEIRO

Não dá para dizer que morarei em Seattle para sempre. Mas é uma cidade que tem sido muito boa pra mim e pra minha família. E continua sendo. Existem muitos tipos de imigrantes, gente que perde mais a identidade, que perde menos. O Egberto Gismonti me disse uma vez que todas as vezes que morou fora perdeu a conexão com o Brasil. Já o Airto Moreira mora nos Estados Unidos desde 1968 e não existe uma pessoa mais brasileira que ele. Que nem o Sérgio Mendes, que continua sendo um cara de Niterói, apesar de todo sucesso que ele já fez em todo mundo. Acho que sou desse segundo tipo. Morando lá sou mais brasileiro do que morando aqui. Ampliei meu conceito de lar. Mas ainda não equilibrei porque gostaria de vir mais vezes para cá. Por mim viria muito mais... umas três vezes por anos, passar três semanas no máximo... essa é a minha dose, é um prazo legal... na época do meu avô a gente chamava esse período de “estação de águas” [risos]...

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