aconteceu nesta semana, no salão nobre do largo são francisco em são paulo, o lançamento da plataforma brasileira de política de drogas, mais um importante passo na luta contra o estúpido proibicionismo que vem, entre outros danos, matando e encarcerando a juventude pobre e negra do brasil, dos estados unidos e de tantos outros países. esse é um tema muito caro a mim e fui acompanhar o lançamento por também ter amigos envolvidos - um salve aí pro bróder maurício fiore. foi uma noite com vários discursos fortes, urgentes, necessários, mas o de abertura, proferido pelo advogado cristiano maronna, secretário executivo da plataforma, resume muito bem toda violência ignorante do proibicionismo e a necessidade urgente por mais reflexões, alternativas e liberdades. saca só.
"É com muito orgulho que lançamos nossa Plataforma Brasileira de
Política de Drogas. E não haveria lugar mais apropriado para isso do que a
quase bicentenária Faculdade de Direito do Largo São Francisco, alma mater das liberdades, morada da
amizade e da alegria.
São diversos os caminhos que nos trouxeram a este momento
histórico. Muitos caminhamos juntos há tempos. Com outros, ainda estamos
acertando o passo para seguirmos juntos ao mesmo destino. E ainda queremos
encontrar outros para fortalecer nossa caminhada, porque temos certeza de que
já não é possível ignorar a situação trágica que vivemos. Todos. Os que usam e também
os que não usam drogas.
Somos moradores e moradoras de favelas e das periferias que convivem
com a morte de familiares e amigos em uma guerra cujo sentido não se pode
compreender. Somos médicos e médicas que querem tratar pacientes com o remédio
adequado para suas enfermidades. Somos militantes de movimentos sociais na luta
contra o genocídio da juventude, principalmente da juventude negra, nas cidades
brasileiras. Somos cientistas cujas pesquisas com substâncias ilegais estão
interditadas pela guerra ás drogas e que percebem que os males causados pela
proibição são muito maiores do que aqueles que as drogas podem causar. Somos
usuários e usuárias de drogas ilícitas que não aceitam a tutela autoritária e
hipócrita do estado sobre corpos e mentes, que não aceitam a exposição a um
mercado clandestino de drogas sem nenhum controle sanitário, que não aceitam os
abusos policiais. Somos profissionais de saúde e ativistas antimanicomiais que
percebem que os usuários problemáticos de drogas são alvo de tratamentos
desumanos e cruéis, centrados no encarceramento e no interesse mercantil. Somos
cientistas sociais que identificam na guerra às drogas uma guerra contra os
mais pobres e os grupos historicamente discriminados. Somos os growers que
rompem os vínculos com o crime organizado por intermédio do autocultivo e que
sofrem implacável perseguição por parte dos agentes da repressão estatal. Somos
os negros e negras que moram nas periferias e que ao serem flagrados com drogas
são enquadrados como traficantes, a despeito da pequena quantidade da
substância apreendida. Somos as mulheres que carregam drogas em seus corpos nas
visitas a parentes e amigos presos e que acabam presas também. Somos aqueles
chamados de “zumbis” nos lugares degradados das cidades, cujas vidas de
sofrimento e privação são esquecidas para que simplisticamente nos vejam como
vítimas de uma substância. Enfim, somos todos os cidadãos e cidadãs que sofrem
com o crime e com a corrupção e que vêem policiais matarem e morrerem sem
alterar em nada o mercado de drogas ilícitas.
Queremos conviver pacificamente com substâncias capazes de
alterar a consciência ordinária. Queremos um cenário de regulação responsável
para as substâncias capazes de causar prejuízo à saúde. Queremos informações
verdadeiras e cientificamente embasadas, aptas a educar a população respeito do
consumo de drogas. Queremos que o usuário de drogas seja visto não como um
doente, mas como um sujeito de direitos.
Uma política de drogas deve garantir e promover direitos, não
excluí-los. Por isso combatemos a massificação da internação forçada para
usuários problemáticos e repudiamos o repasse de recursos públicos a
comunidades terapêuticas e religiosas. Basta de uma política de drogas bipolar,
que demoniza uma substância com comprovadas propriedades terapêuticas, como a
cannabis, e negligencia os danos causados pelas bebidas alcoólicas, cuja
propaganda é, ainda hoje e inacreditavelmente, permitida, estimulando o consumo
desta substância extremamente perigosa e que pode inclusive levar à morte por
overdose.
A Plataforma Brasileira de Política de Drogas surge como
construção essencialmente coletiva em função desta realidade que precisa ser
transformada. Temos a missão de fortalecer todos os atores que se percebem
afetados pela política de drogas atual e que lutam por mudanças. Resultado de
uma articulação que vem sendo feita nos últimos anos, reunimos organizações de
todo o país e que atuam em diferentes áreas, saúde, justiça, direitos humanos,
redução de danos, combate ao racismo, ao machismo, à homofobia. Ajudamos a
organizar o Congresso Internacional de Drogas, em 2013 e percebemos a
importância de articular uma ação conjunta
que potencialize a atuação de nossos membros. Percebemos também que o
Brasil precisa ser parte do movimento global de questionamento do paradigma
proibicionista e da insana guerra às drogas e que temos uma chance importante
na reunião exclusiva da Assembleia da ONU sobre o tema que acontecerá no ano
que vem, a UNGASS 2016. Contamos, para isso, com a parceria de membros da
Plataforma, como a Conectas, a Reduc, a ABGLT e o Instituto Igarapé. Também
fazem parte da Plataforma:
Centro de Referência Sobre Drogas e
Vulnerabilidades Associadas (CRR/FCE/UNB); Instituto Terra, Trabalho e
Cidadania (ITTC); Associação Brasileira de Estudos
Sociais do Uso de Psicoativos (ABESUP);
Associação Brasileira de Gays,
Lésbicas, Travestis e Transexuais (ABGLT);
Associação Brasileira
Multidisciplinar de Estudos Sobre Drogas (ABRAMD); Associação Brasileira de
Redução de Danos (ABORDA); Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME); Associação
Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO); Associação Juízes para a Democracia
(AJD); Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
(CEBES); Centro Brasileiro de Informações
Sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID-UNIFESP); Centro
de Estudos de Segurança e Cidadania (CESEC) da Universidade Cândido Mendes; Conectas
Direitos Humanos; Centro de Direitos Humanos e Educação Popular (CDHEP); Growroom;
Grupo de Pesquisas em Política de Drogas e Direitos Humanos da UFRJ; Grupo de
Trabalho do Programa Álcool, Crack e Outras Drogas da Fundação Oswaldo Cruz; Instituto
Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM); Instituto
de Defesa do Direito de Defesa (IDDD); Instituto Igarapé; Instituto Sou da Paz;
Rede Pense Livre; Laboratório de Estudos Interdisciplinares Sobre Psicoativos da
Unicamp (LEIPSI); Núcleo de Estudos Interdisciplinares Sobre Psicoativos (NEIP);
Observatório Baiano Sobre Substâncias Psicoativas (CETAD); Plantando
Consciência; Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Universidade
Federal de São Paulo (PROAD-UNIFESP); Rede Brasileira de Redução de Danos e
Direitos Humanos (REDUC); Rede Cidade Fala; Rede Latinoamericana de Pessoas que
Usam Drogas (LANPUD). Fazem parte do Conselho Consultivo da Plataforma: Antonio
Lancetti; Antonio Nery; Aldo Zaiden; Beatriz Vargas; Bia Labate; Dartiu Xavier
da Silveira; Denis Russo Burgierman; Edward Macrae; Elisaldo Carlini; Henrique Carneiro;
Ilona Szabó; José Henrique Torres; Julita Lemgruber; Luciana Boiteux; Luiz Eduardo
Soares; Maurides Ribeiro; Maria Rita Kehl; Paulo Amarante; Salo de Carvalho; Sidarta
Ribeiro; Sueli Carneiro; Sérgio Salomão Shecaira.
E hoje temos também o lançamento em São Paulo da campanha “Daproibição nasce o tráfico”, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania
(CESeC), da Universidade Cândido Mendes, sob a liderança de Julita Lemgruber. A
campanha, realizada por meio de cartuns dos mais importantes cartunistas
brasileiros, chama à atenção para a irracionalidade da guerra às drogas. No Rio
de Janeiro, os cartuns foram exibidos nos ônibus por aproximadamente um mês. Em
São Paulo, os ônibus começaram a circular com os cartuns no dia de ontem, mas
hoje Julita recebeu uma ligação da empresa que comercializa propaganda em
ônibus intermunicipais, informando
que os cartuns serão retirados dos ônibus porque fazem apologia às drogas.
Parece piada, mas não é. É censura gerada pela ignorância que se alimenta da
intolerância proibicionista. Alguém já disse que no Brasil o realismo
fantástico não pegou porque a realidade faz concorrência desleal.
Outro exemplo clássico: em São Paulo, a Marcha da Maconha,
realizada todos os anos em mais de quinhentas cidades ao redor do globo, foi
sistematicamente proibida, mercê de decisões judiciais proferidas pelo Tribunal
de Justiça, sempre em atendimento a pedidos formulados pelo Ministério Público,
sob o pífio argumento de que postular a reforma da política de drogas se
confunde com a apologia ao crime e o estímulo ao consumo de drogas. Foi
necessário que a Suprema Corte se manifestasse para dizer o óbvio: liberdade de
manifestação inclui o direito de pedir mudanças na lei de drogas.
Por aí se percebe a dificuldade de debater política de drogas em
bases racionais, dada a tradição autoritária da nossa sociedade e o
fundamentalismo que permeia o paradigma proibicionista.
Estamos todas e todos aqui reunidos, membros e parceiros da
Plataforma, porque cada um de nós, em algum momento, individualmente ou em nome
das organizações-membro, decidimos assumir a responsabilidade pelos diversos
problemas que a guerra às drogas causa à nossa sociedade.
É com o peso dessa responsabilidade e com a pressa para salvar
cada uma dessas vidas que iniciamos os trabalhos da Plataforma. E, por isso,
nos dispomos a dialogar com os diversos meios de comunicação para ajudar a qualificar
o debate e a informar sobre os reais danos causados pelas drogas e pela
política de drogas. Vamos impulsionar e articular pesquisadores para que
tenhamos mais conhecimento sobre o tema. Vamos aos gabinetes de parlamentares,
autoridades e suas assessorias apresentar dados e argumentos que embasem
propostas de mudança na política de drogas do Brasil. Vamos dialogar com
diversos movimentos sociais e organizações políticas para fortalecer nossa
capacidade de mudança. Temos um compromisso com o resultado da nossa ação
política, pois ela deve ser capaz de responder aos problemas identificados. Ao
mesmo tempo, temos a responsabilidade de potencializar ações já iniciadas pelas
organizações que compõem a Plataforma, identificando oportunidades de parcerias
e apoios. A dificuldade da tarefa não nos desanima, antes o contrário: estamos
mais motivados do que nunca, porque sabemos que estamos combatendo o bom
combate. O tabu moral que tornou possível o surgimento da proibição tem a ver
com uma mentalidade medievalesca, a qual, em pleno século XXI, não tem mais
lugar. Passou da hora de varrer a proibição para o limbo da história.
Precisamos botar um fim nessa guerra. Há um antigo brocardo
latino que diz: si vis paccem, parabellum, que significa “se queres a paz,
prepara-te para a guerra”. É tempo de subverter essa lógica: não queremos mais
guerra, queremos paz. A paz que existia na relação ancestral entre seres
humanos e substâncias psicoativas e que foi rompida há aproximadamente cem anos
deve ser restaurada. Basta! Não se constrói paz com guerra. A paz armada é
apenas uma contradictio in adjecto.
Paz significa ausência de guerra. Paz significa respeito a estilos de vida
contramajoritários. Paz significa diversidade. Paz significa mais tolerância e
menos ordem. É isso que nós queremos."
p.s. 1: agradeço ao guilherme werneck, coordenador de comunicação da plataforma, por ter me enviado o discurso de maronna.