música brasileira é aquela coisa bonita, cada vez mais diversa e territorialmente vasta. e todo ano aparece gente nova, tem povo amadurecendo e veteranos inquietos. mas foi em 2023 que teve Barbara Eugênia cantando Wando, Céu cantando Pitty, DJ Múlu remixando Tetê Espíndola, Martinho da Vila e Chico César cantando Zé Ketti, Valério tocando Luiz Gonzaga e Xande de Pilares cantando Caetano.
também foi em 2023 que finalmente gostei de Ava Rocha e fui surpreendido pelo improvável (a ex-atriz Cleo e Johnny Hooker, a ex-skatista Karen Jonz e o Cansei de Ser Sexy). falando em primeiras vezes, surgiram por aqui a potiguar Sarah Oliver, a mineira Sara Não Tem Nome, os gaúchos Ian Ramil e Duda Brack, o paraibano VictoRAMA, o cearense Mateus Fazeno Rock, o pernambucano Luiz Lins, o carioca Jonathan Ferr e o paulista MC Pedrinho.
também foi em 2023 que precisei quebrar mais uma vez a regra de não colocar mais de uma música por artista. Aleatoriamente de Rodrigo Ogi é tão porrada pulsante de um rapper cronista cada vez mais afiado que foi difícil fechar em apenas uma música (teria colocado mais que duas, aliás), e assim entraram “Chegou sua vez” e “Valha-me” (uma com Juçara Marçal, a outra com Siba, ambas produzidas por Kiko Dinucci). também não fui capaz de escolher entre “Madrugada maldita” e “Estante de livros” (essa com participação certeira de Don L), os dois pontos altos do excelente disco O Amor, o Perdão e a Tecnologia Irão Nos Levar Para Outro Planeta do FBC.
dessas 70 músicas vieram, obviamente, trampos novos & massa de gente já querida pela casa. gente que já sai com uns corpos de vantagem. é o caso de Aíla, Alice Caymmi, Jaloo, Ju Dorotea, Lurdez da Luz, Lucas Santtana, MC Tha, Síntese, Vitor Ramil, Baiana System, Duda Beat, Marcelo D2, Tatá Aeroplano, Xis e sempre sempre a filha Iara Rennó e a mãe Alzira E. mas já tá bom de blábli né. segue a playlist com 70 músicas brasileiras de 2023 segundo os ouvidos da casa.
70 MÚSICAS BRASILEIRAS DE 2023
A Espetacular Charanga do França - “Chevette azul” Academia da Berlinda - “Bandoleiro” Afrocidade - “Tá fod*” Aíla & Jáder - “Me beija” Alaíde Costa - “Ata-me” Aldo Sena - “Meu vovô” [part. Saulo Duarte] Alice Caymmi - “Las brujas” Alzira E - “Filha da mãe” [part. Ney Matogrosso] Ana Frango Elétrico - “Insista em mim” Arquétipo Rafa - “Feito ladeira” [part. Alessandra Leão] ÀTTØØXXÁ - “Dejavú” [part. Liniker] Ava Rocha - “Longe longe de mim” BaianaSystem & Duda Beat - “Borogodó” BaianaSystem, Gilsons & Tropkillaz - “Presente” Bárbara Eugênia - “Gosto de maçã” Bixiga 70 - “Na quarta-feira” Céu - “Emboscada” Clarice Falcão - “Chorar na boate” Cleo - “Seu fim” [part. Johnny Hooker] Coruja BC1, MC Luanna & Febem - “Versão brasileira” Djonga - “Coração gelado” [part. Tz da Coronel] Domenico Lancellotti - “Quem samba” [part. Ricardo Dias Gomes e
Marcia] Don L - “Tudo é pra sempre agora” [part. Luiza de Alexandre] Duda Brack - “Víbora ligeira” Eddie - “Máscara negra” [part. Karina Buhr e Isaar] FBC - “Estante de livros” [part. Don L] FBC - “Madrugada maldita” Felipe Cordeiro, Illy & Barro - “Todo céu azul” Giovani Cidreira - “Dois lados” [part. Russo Passapusso e Melly] Ian Ramil - “Macho-Rey” Iara Rennó - “Orí axé” Iza & MC Carol - “Fé nas maluca” Jaloo - “Tudo passa” Jards Macalé - “A foto do amor” Jonathan Ferr - “Correnteza” Ju Dorotea - “Raven” Juliano Gauche - “Nos cânticos de lá” Karen Jonz - “Coocoocrazy” [part. CSS] Karol Conká, Tasha & Tracie - “Negona” Letrux & Lulu Santos - “Zebra” Lucas Santtana - “What's Life” Luiz Lins - “Midas” Luisa e os Alquimistas & Getulio Abelha - “Caninga” Luiza Lian - “Homenagem” Lurdez da Luz - “Devastada” Marcelo D2 - “Povo de fé” Marina Sena - “Me ganhar” Martinho da Vila & Chico César - “Acender as velas” Mateus Fazeno Rock - “Melô de Aparecida” MC Pedrinho - “Gol bolinha, Gol quadrado 2” MC Tha & MahalPita - “Coisas bonitas” Moreno Veloso - “Mundo paralelo” Mulú - “Escrito nas estrelas” [remix] niLL - “3.0” [part. Amiri] Paulo Ohana & Bruna Alimonda - “Um pedido de desculpas” Rico Dalasam - “Tarde d+” Rodrigo Campos - “Japonego” [part. Juçara Marçal] Rodrigo Ogi - “Chegou sua vez” [part. Juçara Marçal] Rodrigo Ogi - “Valha-me” [part. Siba] Sara Não Tem Nome - “Nós” Sarah Oliver - “Redinha” Síntese - “Éter, dom & maldição” Tatá Aeroplano - “Canto mistério” Valério - “Asa Branca” VictoRAMA - “AfroRobot” Vitor Ramil - “Acordei sonhando” [part. Alunas e Alunos da Escola
Projeto] Xande de Pilares - “Muito romântico” Xis - “Cutuco di bituca” [part. Elena Diz, Kami Cruz e Chico
Chagas] YMA & Jadsa - “Meredith Monk”/ “Mete Dance” Zudizilla - “Groove ou caos” [part. Tuyo]
João Gilberto por Speto (próximo ao Mercadão de São Paulo)
55 DISCOS BRASILEIROS DE 2023
como já disse lá em cima, Aleatoriamente do Rodrigo Ogi e O Amor, o Perdão e a Tecnologia Irão Nos Levar Para Outro Planeta do FBC são dos maiores frutos do ano. discos que são tanto 2023 quanto o futuro. tem balanço e sujeira, esperança e desigualdade, cidade e amor.
outros grandes discos deste ano são o Coração Bifurcado de Jards Macalé, Iboru de Marcelo D2, a Negra Ópera de Martinho da Vila, O Paraíso de Lucas Santtana, a volta de Xis em Invisível Azul, a revelação de Mateus Fazeno Rock em Jesus Ñ Voltará, a delicadeza de Xande de Pilares ao cantar Caetano Veloso e a dobradinha de Rodrigo Campos (com o próprio Pagode Novo e a parceria com Romulo Fróes em Elefante), além do absurdo talento de mãe (a Mata Grossa de Alzira E) e filha (o Orí Okán de Iara Rennó).
seguem os 55 discos brasileiros do ano com link pra ouvir os respectivos na íntegra.
a tradição do esforçado de listas dos melhores sons do ano segue
firme e forte e variada. mais uma vez as dividi em nacionais e gringos, com
músicas e discos pra cada segmento. dessa vez começo com os gringos e me
surpreendi com o crescente número de africanos, afinal quase ¼ das 100 músicas vieram
de todos os lados do grande continente, desde o Egito (Nadah El Shazly) a África
do Sul (Muzi, Petite Noir e Kamo Mphela), do Mali (Los Chicharrons e os tuaregs
Bombino e Tinariwen) a Cabo Verde (Mayra Andrade, Dino D’Santiago e a saudosa
Sara Tavares), do Marrocos (ElGrandeToto) a Gana (Amaarae e Alogte
Oho), da Nigéria (Bloody Civilian, Nneka, Aunty Rayzor e Olamide) ao Congo (Baloji,
DJ Finale e Chrisman), do Quênia (Kabeaushé e MC Yallah) ao Burundi (Theecember).
um pouco mais de uma dezena dos sons da lista é hispanohablante
tipo grandão como Rosalía, Bad Bunny e Kali Uchis (em dose dupla) ou indies do
coração como La Yegros, Xenia Rubinos e Chancha Via Circuito, mas a maioria é
gente nova no pedaço tais quais La Dame Blanche, Karen y Los Remedios, C.
Tangana, Juliana, Mito y Comadre, Montoya e Trueno.
como sempre, a grande maioria da lista vem da dobradinha EUA-UK,
ela também cada vez mais diversa (mas invariavelmente negra né). cabô papo
furado. importante aqui é ouvir e reouvir essa centena de músicas que resumem
um pouco, pra mim, da música de 2023. tome playlist e, na sequência, a lista completa
por ordem alfabética.
100 MÚSICAS GRINGAS DE 2023
Aesop Rock - “Mindful Solutionism”
Aja Monet - “Why My Love”
Al Green - “Perfect Day”
Alogte Oho & His Sounds of Joy - “La Ka Ba'a”
Amaarae - “Counterfeit”
Andrew Bird - “Never Fall Apart”
Animal Collective - “Soul Capturer”
Armani White - “Goated” [ft. Denzel Curry]
Atmosphere - “Talk Talk” [ft. Bat Flower]
Aunty Rayzor - “Nina”
Bacao Rhythm & Steel Band - “How We Do”
Bad Bunny - “Un Preview”
Baloji & Mayra Andrade - “Matrone”
Beck - “Thinking About You”
Beyoncé - “My House”
Björk - “Oral” [ft. Rosalía]
Black Pumas - “More Than a Love Song”
Bloody Civilian - “Come From”
Blur - “The Narcissist”
Bombino - “Ayes Sachen”
Busta Rhymes - “Luxury Life” [ft. Coi Leray]
C. Tangana - “Estrecho/Alvarado”
Chancha Via Circuito - “Amor en Silencio” [ft. Lido Pimienta]
Chlothegod - “UGOMDN”
Chrisman - “Unforgettable” [ft. Tracy The Rapper]
Cotonete - “Day In Day Out” [ft. Leron Thomas]
Daniel Haaksman - “Supervivencia” [ft. Çantamarta]
Dave Okumu & The 7 Generations - “Chapter 4: Cave of Origins”
David Walters - “Soul Tropical”
Dengue Fever - “Silverfish”
Dino D'Santiago & Os Tubarões - “Djonsinho Cabral”
DJ Finale - “Pitschu Debou” [ft. DeBoul & Le Meilleur]
ElGrandeToto - “Weld Laadoul”
El Michels Affair & Black Thought - “Grateful”
Eva B - “Kuch Nahi Hua”
Gorillaz - “Controllah” [ft. MC Bin Laden]
Holy Hive - “The Shame” [ft. El Michels Affair & Fleet Foxes]
também como sempre, boa parte das melhores músicas do ano vem dos
melhores discos do ano. não tem como fugir, mas acho que vale destacar que 15
desses 60 talvez tenham sido os meus preferidos, pois foram os que tiveram
tantas músicas que chegou a ser difícil escolher apenas uma. Damon Albarn, por
exemplo, assinou mais uma porrada do Gorillaz (Cracker Island) e ainda
voltou com o Blur (The Ballad of Darren). dois instrumentais pegaram
meus ouvidos de jeito, o carimbenho-germânico BRSB da Bacao Rhythm and
Steel Band e o groovadíssimo Puzzled do multinstrumentista JJ
Whitefield. sem falar nas minas super poderosas Amaarae, Bloody Civilian, Janelle
Monae, Jorja Smith e Kali Uchis, e no poder do rap de Black Thought (em
parceria com a banda-que-só-faz-som-foda El Michels Affair), Killer Mike e Mick
Jenkins. já Bad Bunny tá naquela fase que não erra uma e com Nadie Sabe Lo
Que Va a Pasar Mañana não foi diferente. e por último, a grande surpresa do
ano, o maravilhoso Volcano dos ingleses Jungle (que ainda se torna
melhor com a série de clipes para cada uma das músicas e que viram um filme
lindamente coreografado, dançado e filmado).
putz, preciso muito falar rapidamente de alguns discos que não
emplacaram nenhuma faixa na lista de músicas. discos invariavelmente lindos por
si e não necessariamente por uma canção ou outra. são viagens que valem muito,
como as de André 3000 (New Blue Sun), Blu (Afrika), Captain
Planet (Sounds Like Home), Goran Bregovic (The Belly Button of the
World), Luzmila Carpio (Inti Watana: El Retorno del Sol), PJ Harvey (I
Inside the Old Year Dying) e Surprise Chef (Friendship). mas sem
mais delongas, os 60 discos gringos de 2023 à moda da casa (com os devidos
links para os discos na íntegra).
novo frila pra Revista Monet e dessa vez sobre um dos mestres mais mestres de todos os mestres, o grande Martin Scorsese, e sua obra prima mais recente, o dolorido e grandioso Assassinos da Lua das Flores. é uma história de amor, fraqueza, ambição, capitalismo, racismo e muito mais. impressiona, acima de tudo, o vigor com que Scorsese segue dirigindo e pensando do alto de seus pouco mais de 80 anos.
poster alternativo de Assassinos da Lua das Flores
UM ESPETÁCULO ÍNTIMO Martin Scorsese reuniu em Assassinos da Lua
das Flores seus dois atores preferidos para recriar um capítulo sangrento e
pouco conhecido da história americana Aos 81 anos de idade, Martin Scorsese acumula mais de 5 décadas de
carreira, quase 30 longas, e ainda documentários, séries de TV/streaming,
curtas, comerciais e até clipes. Mas em nenhum momento de sua longa carreira
ele se mostrou tão disposto e empenhado em divulgar um filme quanto o seu
trabalho mais recente, o épico Assassinos da Lua das Flores. Programas
matinais, podcasts, talk shows, quem lhe chamar pode ter certeza que lá ele
estará, animado e falando sem parar. Seu ânimo não é gratuito, afinal o longa é um projeto caro ao seu
coração desde que o abraçou em 2017, mesmo ano do lançamento do livro de não
ficção que o originou: Killers of the Flower Moon: The Osage Murders and the
Birth of the FBI, de David Grann. O filme começou de um jeito, mas não
fluía, não ia para frente, e enquanto Scorsese não desenrolava o novelo, ainda
dirigiu O Irlandês. Tudo estava pronto para as filmagens de Lua das
Flores começarem finalmente em março de 2020, mas a pandemia derrubou tudo
e acabou, por mais irônico que possa parecer, salvando o filme. “O livro é maravilhoso, mas no começo eu, enquanto cineasta, senti
que estava fazendo algo que já tinha visto antes. E então, quando já tínhamos
quase dois anos de trabalho, Leonardo (DiCaprio) uma hora me perguntou - onde
está o coração do filme? Foi aí que vi que a história da criação do FBI, a
partir dos assassinatos de membros da tribo Osage, definitivamente não era e que
o coração do filme estava na história de amor, confiança e traição entre Mollie
e Ernest Burkhast”, disse Scorsese após a primeira apresentação pública do
filme, em maio, no Festival de Cannes. Ao seu lado, sua Mollie (Lily Gladstone)
e seu Ernest (Leonardo DiCaprio).
A pandemia serviu, nesse caso específico, para que Scorsese
tivesse tempo para maturar, ao lado do roteirista Eric Roth, a total mudança de
foco do filme. “Esse tempo serviu para pensar o que é importante na vida, então esse filme
nasceu disso, mudou e cresceu por causa disso”, completou. As filmagens
começaram pra valer em abril de 2021 e terminaram em outubro, e antes, durante
e depois, Scorsese mergulhou profundamente na história trágica dos Osage. Ficou sabendo que após forçados deslocamentos impostos pelo
governo americano no século 19, os Osage foram parar naquela região esquecida e
pouco fértil das pradarias de Oklahoma (Scorsese filmou Lua das Flores
nas locações reais da história). Contavam que ali não seria perturbados pela invasão
branca ao meio oeste do país. Só que, no início do século 20, petróleo foi
encontrado na região e os Osage ficaram ricos, muito ricos. No entanto, os nativos
eram considerados “incompetentes” judicialmente, um ótimo pretexto para que tutores
brancos administrassem seu dinheiro e suas posses. Não demorou muito para
surgirem casamentos interraciais, todos de olho na herança da terra e da sua
crescente produção de petróleo. Entram em cena, Mollie, uma nativa Osage, e seu marido branco
Ernest. O casal é o centro da história sobre uma série de assassinatos de
homens, mulheres e crianças Osage – alguns parentes de Mollie, tais como irmãs
e mãe – em poucos meses do ano de 1921. Execuções, “acidentes”, envenenamento,
explosões, um pouco de tudo aconteceu aos Osage e a alguns apoiadores brancos
da tribo. Numa tentativa desesperada, e já com saúde debilitada, Mollie
consegue ir a Washington D.C. e chama atenção do governo federal para essas
mortes. Ela havia herdado os direitos de suas parentes e, consequentemente, se
via como a próxima vítima. Um jovem J. Edgar Hoover, chefe do Bureau of Investigation (futuro
FBI), decidiu com alguma relutância pegar o caso, afinal de contas os
territórios dos povos originários são de competência federal e as autoridades locais
não faziam ou não queria fazer nada a respeito. Em investigação capitaneada por
Thomas White (Jesse Plemons) não se demora muito para encontrar alguns
responsáveis por alguns dos crimes e, para a surpresa dos próprios Osage, o
principal se dizia grande amigo, defensor da tribo e influente cidadão de bem.
Seu nome, William King Hale (Robert De Niro), tio de Ernest, marido de Mollie.
Ernest, aliás, também foi condenado, e Mollie sobreviveu ao envenenamento de
que estava sendo vítima. Nada disso é spoiler, pois tudo que acontece em Assassinos da
Lua das Flores é de saber público. O que importa a Scorsese não é quem
matou, pois quase todos os brancos envolvidos com os Osage à época tiveram
alguma responsabilidade direta ou indireta sobre os crimes. E ainda hoje não se
sabe sobre a autoria da maiores dos crimes daquela época. O que importa é como
manipulações, traições, racismo e violência estão no cerne da construção da
América moderna. “Eu queria fazer justiça aos Osage para que o espectador pudesse
sentir a imensidão da tragédia. E também quis fazer um espetáculo, mas um
espetáculo interno, quis essa combinação”, explica Scorsese sobre a combinação
de grandes planos de paisagens e ação, com planos fechados de amor e abandono. Na coletiva do filme em Cannes, também estava presente o atual
líder dos Osage, Chief Standing Bear, que deu uma emocionada declaração. “Bem
no início da produção do filme perguntei ao Sr. Scorsese qual era a visão dele
sobre a história. Ele disse - vou contar uma história sobre confiança,
confiança entre Mollie e Ernest, confiança entre o mundo exterior e os Osage, e
a profunda traição dessa confiança. Meu povo sofreu muito e sofre até hoje as
consequências desses acontecimentos. Mas hoje posso falar em nome dos Osage que
Martin Scorsese e sua equipe restauram essa confiança e sabem que ela nunca
será traída”.
SCORSESE E SEUS DUPLOS Lily Gladstone, a Mollie de Assassinos da Lua das Flores, é
a grande força silenciosa e moral do filme, então Scorsese confiou a dois de
seus colaboradores mais habituais, Robert De Niro e Leonardo DiCaprio, o
contraponto. Não é a primeira vez que Scorsese reuniu De Niro (protagonista de
10 de seus filmes) e DiCaprio (presente em 6), mas é o primeiro longa com os
três juntos. Antes, em 2015, Scorsese fez um curta em ritmo de comédia, e
também uma espécie de comercial do gigantesco cassino Studio City em Macau,
intitulado The Audition. Nele, De Niro e DiCaprio interpretam a si
próprios e passam o tempo todo brigando, discutindo e ironizando um ao outro
enquanto buscam impressionar Scorsese na disputa pelo papel principal em seu
novo filme. Nada mais distante da realidade. Foi De Niro que falou de DiCaprio para Scorsese pela primeira vez.
Eles tinham acabado de trabalhar juntos em O Despertar de um Homem
(1993) e De Niro, sempre muito lacônico até com amigos de longa data, falou
maravilhas do garoto que tinha 18/19 anos à época. Oito anos depois, Scorsese
chamou DiCaprio, já famoso pós-Titanic, para fazer trio com Daniel
Day-Lewis e Cameron Diaz em Gangues de Nova York (2002). De Niro era e sempre será o alter ego mais perfeito de Scorsese.
São da mesma vizinhança, tem quase a mesma idade (o diretor é 9 meses mais
velho que o ator) e estão envelhecendo juntos. Foram intensos e iconoclastas em
sua primeira década de colaborações, desde Caminhos Perigosos (1973) a Rei
da Comédia (1982), passando por Taxi Driver (1976), New York, New
York (1977) e Touro Indomável (1980). Amadureceram com sangue nos
olhos em Os Bons Companheiros (1990), Cabo do Medo (1991) e Cassino
(1995). Após uma longa pausa, e agora ainda mais maduros, voltaram a
trabalhar juntos em O Irlandês (2019) e Assassinos da Lua das Flores (2023).
Se conhecem tanto que se entendem no olhar, em pequenos gestos e poucas
palavras. Já DiCaprio virou a nova cara etária – variando de 20 a 40 anos –
dos protagonistas das últimas duas décadas na filmografia de Scorsese. Foi o
jovem com sede de vingança em Gangues de Nova York (2002), o milionário
torturado em O Aviador (2004), o policial na corda bamba em Os
Infiltrados (2006), o delirante em Ilha do Medo (2010), o corrupto megalomaníaco
em O Lobo de Wall Street (2013) e o marido manipulador, apaixonado e
fraco em Assassinos da Lua das Flores (2023). A relação com Scorsese é
um misto de figura paterna e mestre, e DiCaprio é mais de conversar, entender
as motivações do personagem, mergulhar. De Niro e DiCaprio são as maiores personificações dos mundos
criados por Martin Scorsese. Um trio que produziu, sem forçar, uns 10 grandes
filmes – contando com Assassinos da Lua das Flores, obviamente – e que
brilham muito no alto da maravilha que é o cinema.