não sei porque diabos deixei de colocar aqui um frila legal que fiz em 2014 - convite do michel blanco, amigo desde os tempos da coluna do yahoo. o lance era escrever um texto grande sobre a história da barra funda, bairro tradicional da região central de são paulo. lá fui andar a pé pelo bairro e pesquisar. de algumas coisas já sabia, poucas, e as que conhecia era de modo superficial [sabia que é considerado o berço do samba paulistano, mas não de que modo aconteceu ali]. trabalho massa que resultou numa das partes do livro barra funda em três tempos [paralaxe editora, 2014], organizado por marcelo aflalo, editado pelo michel e com fotos de lalo de almeida [desculpa lalo, vou colocar umas fotos minhas, umas que tirei nessas andanças pelo bairro e em outros momentos].
BARRA
FUNDA, OUTROS TEMPOS
Até hoje não se sabe ao certo de onde veio o
nome Barra Funda. Uns dizem que dos italianos, seus primeiros habitantes, que
carinhosamente falavam que o lugar era uma ‘barafonda’, uma confusão, e muito
provavelmente por sua própria presença. Outros dizem que veiodas curvas do Rio
Tietê e dos portos de areia da região, pois uma barra funda facilitava a
aproximação de barcos maiores. De uma forma ou de outra, Barra Funda nasceu e
Barra Funda ficou.
Na segunda metade do século 19, a região era apenas
um pedacinho das posses do Barão de Iguape (1778-1875) e lá se encontrava, por
exemplo, a bucólica Chácara do Carvalho. Mas as construções das estações de
trem da Estrada de Ferro Sorocabana (1875) e da São Paulo Railway (1892) mudaram
toda a dinâmica da região. A Barra Funda virou então um movimentado entreposto,
um importante meio do caminho entre o Porto de Santos e o interior do Estado, e
era preciso muita mão de obra para movimentar essas novas engrenagens. Vieram
então os italianos e, após a Abolição, os negros.
Em um tempo no qual as periferias eram
próximas ao Centro, a Barra Funda rapidamente se transformou em um amontoado de
vilas e cortiços que forneciam importante força de trabalho tanto para as
ferrovias e indústrias quanto para as casas ricas no vizinho bairro dos Campos
Elíseos. Não foi à toa que o primeiro bonde elétrico de São Paulo foi
inaugurado em 7 de maio de 1900 ligando a Barra Funda, onde morava o então primeiro
prefeito da cidade e neto do Barão de Iguape (Antônio da Silva Prado, 1840-1929),
ao Largo São Bento.
Chaminé de fumaças passadas,
escutam de perto
os sons do Espaço das Américas
Com toda essa malha de transportes e
distribuição, o desenvolvimento industrial do bairro ocorreu a passos largos a
partir de 1900. Indústrias têxteis, químicas e metalúrgicas de pequeno, médio e
grande porte, além de olarias e curtumes, começaram a se instalar na Várzea da
Barra Funda, a parte do bairro entre as linhas de trem e o Rio Tietê. São dessa
época no bairro a Cristaleria Paulista, a Fábrica de Vapor de Tecido e Fiação
de Corda e de Barbante, a fábrica de papel Divani, a L. Queiróz (do
lança-perfumes Pierrot) e a Bebidas Palhinha. Já na parte de cima da Barra
Funda, entre o trem e os Campos Elíseos, concentrou-se a área residencial
operária, além de pequenas oficinas (mecânicas, marcenarias, etc).
Boa parte das residências desse início da
Barra Funda, bem como de outros bairros da cidade com predominância italiana, tinham
como característica a “ponta de chuva”. Era um desenho básico para os
pedreiros, dando ênfase à fachada, feito pelos capomastri (mestres de obras)
com a ponta de seus guarda-chuvas na terra da construção. O restante das casas
era ainda mais simples: entrada lateral, quarto enfileirados como um vagão de
trem, porão e muita área de fundo, onde ficavam a cozinha e o banheiro.
A linha de trem atrás do muro,
o pé do Viaduto Pacaembu,
nenhum sinal do Largo do Banana
Barra Funda é que mora o samba
Um dos pontos mais importantes do bairro na
primeira metade do século 20 foi o Largo da Banana, onde atualmente é o Viaduto
Pacaembu e parte do Memorial da América Latina. O largo desapareceu sem deixar
vestígio físico, mas o que aconteceu ali se ouve até hoje, pois é unanimidade
entre historiadores que o Largo da Banana foi o berço do samba paulista. Em um
triângulo de poucos metros quadrados, no qual milhares de cachos de banana e
outras frutas eram vendidas e compradas diariamente, a comunidade negra do
bairro se encontrava para batuques e improvisos em seus momentos de lazer, já
que regularmente eram impedidos de participarem dos ranchos carnavalescos no
Centro da cidade.
Foi então na Barra Funda que aconteceu a mistura
urbana do samba rural vindo do interior do Estado de São Paulo (Pirapora do Bom
Jesus) com o samba carioca que chegava via Porto de Santos. Tudo trazido e
levado por trens e confluindo numa cidade que crescia rapidamente com a força
econômica do café e da indústria.
Geraldo Filme (1928-1995) cantou essa história
em diversas composições, como em “Samba da Barra Funda” - “Alô alô, gente
bamba. Na Barra Funda é que mora o samba” -, lembrando de quando, ainda menino,
acompanhava as rodas de samba e tiririca (capoeira) que os engraxates e
carregadores improvisavam no Largo da Banana. Em “O Último Sambista”, Geraldo
voltou a cantar o bairro, dessa vez com certo travo amargo de nostalgia: “Levo
saudade lá do Largo da Banana / Onde nóis fazia samba / Todas noites da semana
/ Deixo esse samba / Que eu fiz com muito carinho / Levo no peito a saudade nas
mãos o meu cavaquinho / Adeus Barra Funda”.
Esses agrupamentos festivos que aconteciam no
Largo deram origem, em 1914, ao Grupo Carnavalesco Barra Funda. Seus
integrantes saíam pelas ruas do bairro vestidos de camisas verdes e calças
brancas e, como é de costume em manifestações realmente populares na rua, eram
perseguidos pela polícia. Quando ocorriam essas repressões as festas eram
transferidas para os quintais ou porões de teto baixo que, a princípio, foram
feitos para guardar mantimentos, mas com o adensamento da população ganharam
função domiciliar.
Na década de 1930, durante o ditatorial Estado
Novo de Getúlio Vargas, os foliões foram sistematicamente “confundidos” com
simpatizantes da Ação Integralista Brasileira, partido político do líder
fascista Plínio Salgado, que usavam verde. A repressão foi tão dura que o grupo
deixou de desfilar em 1936 e só voltou, com nome novo (Escola de Samba Camisa
Verde e Branco), na década de 1950.
Em meados da década de 1950, com a cidade em
franca expansão, surgiu a necessidade de ligar o bairro com a Zona Norte. Como
existiam poucas passagens sobre a linha de trem foi construído o Viaduto
Pacaembu, que acabou passando por cima (literalmente) do Largo da Banana. Desde
então não existem mais vestígios do ainda pouco conhecido berço do samba
paulista. Geraldo Filme também cantou esse triste e silencioso fim do Largo em
“Vou Sambar Noutro Lugar”: “Fiquei sem o terreiro da escola / Já não posso mais
sambar / Sambista sem o Largo da Banana / A Barra Funda vai parar / Surgiu um
viaduto, é progresso / Eu não posso protestar / Adeus, berço do samba / Eu
vou-me embora, vou sambar noutro lugar”.
Favela do Moinho
Felizmente algumas edificações históricas
sobreviveram à sanha do progresso. Uma delas é o Theatro São Pedro, na esquina
da Rua Barra Funda com a Rua Dr. Albuquerque Lins. Sua construção aconteceu por
obra e graça do português Manuel Fernandes Lopes, homem de negócios que fez
vida em São Paulo e decidiu retribuir com nada menos que um teatro (que hoje é
o segundo mais velho da cidade ainda na ativa, perdendo apenas para o Theatro
Municipal de 1911). O nome São Pedro veio do local de nascimento de seu
benfeitor, Sarzedas de São Pedro, vilarejo próximo a Coimbra.
De estilo eclético, meio neoclássico e meio
art nouveau, o teatro foi inaugurado em 20 de janeiro de 1917, e manteve durante
muito tempo uma programação que ia desde sessões de cinema até operetas,
passando por concertos, espetáculos de variedades e dança. A partir do final da
década de 1960 passou por diversas fases de abandono e efervescência. No final
da década de 1960, por exemplo, as atrizes Lélia Abramo e Beatriz Segall
comandaram uma guinada para as artes cênicas e foram montadas peças de autores
como Bertolt Brecht, Ariano Suassuna e Chico Buarque.
O tombamento pelo Patrimônio Histórico aconteceu
em 1984, mas o Theatro São Pedro só voltou a abrir ao público definitivamente a
partir de uma grande reforma em 1998 e desde então segue firme como uma das
poucas edificações que lembra a fase áurea do bairro.
Outras edificações sobreviventes são o
palacete da Chácara do Carvalho, situado na Alameda Barão de Limeira, e a Casa
Mário de Andrade, na esquina da Rua Lopes Chaves com a Rua Margarida.
O palacete é um dos marcos iniciais do bairro,
foi construído no final do século 19 e pertenceu a família do Barão de Iguape.
A princípio era um lugar de criação de cavalos puro sangue, mas com a
instalação das ferrovias o terreno valorizou e Antônio da Silva Prado, que foi
o primeiro prefeito da cidade (1899-1911) e neto do Barão de Iguape, decidiu
construir um palacete projetado pelo italiano Luigi Pucci.
Durante a década de 1920, o palacete foi palco
de inúmeros convescotes da elite paulistana e chegou até a hospedar Alberto I,
o então Rei da Bélgica, e sua corte em visita a cidade. Hoje a Chácara do
Carvalho abriga o Instituto de Educação Boni Consilii.
Já a casa de Mário de Andrade não tem
particularmente nada de especial (arquitetonicamente falando). É um sobrado
geminado típico da classe média paulistana do início do século 20, mas desde
que a família do escritor modernista se mudou para lá em 1918, apenas um ano
depois de sua construção, a casa ganhou importância histórica.
Lá ficava sua gigantesca e diversa biblioteca,
e móveis desenhados por ele. Era lá também que Mário de Andrade dava aulas de
composição e, às quartas, recebia importantes intelectuais da época, incluindo
amigos que participaram da Semana de Arte de Moderna de 1922.
Durante a década de 1930, quando foi diretor
do Departamento Municipal de Cultura, idealizou neste sobrado uma série de
atividades culturais acessíveis para a população, tais como bibliotecas
circulantes, concertos e espetáculos a preços módicos. Em 1937, pouco antes de
sair para um breve autoexílio no Rio de Janeiro, viajou até Pirapora do Bom
Jesus. De volta à Rua Lopes Chaves escreveu “O Samba Rural Paulista”, texto
seminal sobre as origens do gênero em terras bandeirantes.
Foi no sobrado, em 25 de fevereiro de 1945,
que Mário de Andrade sofreu um ataque cardíaco fulminante. Em seu testamento
dava dois fins possíveis para a casa: ou ficava com a família ou deveria ser
transformada em centro cultural. A casa foi tombada em 1975 e abriga desde 1990
a Oficina da Palavra, uma instituição estadual dedicada a literatura.
Casa das Caldeiras, março de 2013
Outra edificação sobrevivente do glorioso
passado industrial da Barra Funda fica no extremo oeste do bairro, quase
Pompéia. A Casa das Caldeiras, que desde sua reforma no final da década de 1990
é um local para eventos e shows mantido pelo Estado, era parte das Indústrias
Reunidas Francisco Matarazzo, que foi a seu tempo o maior complexo industrial
da América Latina.
Tombado pelo Patrimônio Histórico em 1986, a
Casa das Caldeiras é um espaço impressionante de alvenaria, pé direito
altíssimo e três chaminés monumentais que levam às caldeiras que dão nome ao
espaço. Sua construção começou na década de 1920 e o espaço foi ampliado em
outros dois momentos (1936 e 1953) em um vasto terreno de mais de 100 mil m2.
No complexo fabril do Conde Francesco Matarazzo (1854-1937) eram produzidos sabonetes,
álcool, óleo vegetal, vela, sacarias, etc. Tudo devidamente escoado por uma
linha de trem própria ligada à Estrada de Ferro Sorocabana.
Mas nem só de passado remoto vive o patrimônio
histórico e cultural da Barra Funda, pois em 1989 o bairro ganhou o Memorial da
América Latina. Idealizado pelo antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997) e
projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012), o Memorial foi construído
em um grande terreno entre o Viaduto Pacaembu e o Terminal Intermodal da Barra
Funda. Em um terreno de 84.482 m2, o complexo arquitetônico é
formado pela Praça Cívica, o Parlamento Latino-Americano, a Galeria Marta
Traba, a Sala de Atos, o Queijinho (Centro de Recepção de Turistas), o Pavilhão
da Criatividade e o Auditório Simon Bolivar.
Até hoje, mais de duas décadas após sua
inauguração, o Memorial da América Latina ainda sofre críticas. De um lado, pela
completa aridez do espaço. Nada de árvores ou jardins, apenas o concreto, a ideia
fixa de Niemeyer. Do outro, pela falta de diálogo com o entorno. Segundo os
críticos é como se tivessem sido jogadas aleatoriamente umas construções naquele
espaço e o entorno, e a cidade, que se vire para correr atrás.
Fugindo parada
bem na ruazinha
Chácara do Carvalho
Transformações barafondas
A partir do processo de desindustrialização
que a cidade de São Paulo viveu a partir da década de 1960 – com a criação de
parques industriais na região do ABC, por exemplo –, bairros como a Barra Funda
sofreram sucessivas quedas demográficas. Grandes áreas, outrora fábricas e
oficinas, permaneceram abandonadas durante muitos anos assombrando velhos
moradores, assustando possíveis novos moradores. E o bairro foi se degradando,
junto com outras partes próximas ao Centro de São Paulo, sem ninguém se dar
conta de sua posição estratégica na cidade, de sua boa malha de transporte
público e variedade de serviços. Nem mesmo as estações de metrô, construídas no
final da década de 1970, e nem o Memorial da América Latina, do final da década
de 1980, reverteram o processo. Afinal, o mais comum em São Paulo é o
surgimento de iniciativas urbanas isoladas sem nenhuma preocupação com o entorno.
Segundo levantamento divulgado pelo IBGE, o
distrito tinha em 2011 uma população de 14.481 pessoas moradoras, sendo que
quase metade na faixa entre 30 e 59 anos. Em 1980, o número era 17.894. Por
outro lado, esse mesmo censo de 2011 afirmou que a queda foi estancada e o
número de habitantes permanece praticamente o mesmo desde o final dos anos 1990
(ao redor dos 14 mil), enquanto a população flutuante voltou a aumentar.
Uma das explicações para esse novo movimento
na Barra Funda é que durante esse período recente, uma série de iniciativas (empresariais,
de serviços, entretenimento, etc.) injetou novos dinamismos no bairro. É
possível citar, entre outros, o Centro Empresarial Água Branca, os estúdios da
TV Record, o 1º Tribunal do Júri da Cidade de São Paulo, o Espaço das Américas,
além de bares, casas noturnas e faculdades.
Durante muitas décadas, a Barra Funda, como
outros bairros de São Paulo, sofreu com a falta de planejamento urbanístico.
Aos poucos, e por consequência dos limites que a cidade chegou, novas ideias
precisam ser testadas, afinal o futuro da cidade depende de seu presente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário