quinta-feira, 20 de abril de 2017

de barafondas e sambas, a barra funda

não sei porque diabos deixei de colocar aqui um frila legal que fiz em 2014 - convite do michel blanco, amigo desde os tempos da coluna do yahoo. o lance era escrever um texto grande sobre a história da barra funda, bairro tradicional da região central de são paulo. lá fui andar a pé pelo bairro e pesquisar. de algumas coisas já sabia, poucas, e as que conhecia era de modo superficial [sabia que é considerado o berço do samba paulistano, mas não de que modo aconteceu ali]. trabalho massa que resultou numa das partes do livro barra funda em três tempos [paralaxe editora, 2014], organizado por marcelo aflalo, editado pelo michel e com fotos de lalo de almeida [desculpa lalo, vou colocar umas fotos minhas, umas que tirei nessas andanças pelo bairro e em outros momentos].


BARRA FUNDA, OUTROS TEMPOS

Até hoje não se sabe ao certo de onde veio o nome Barra Funda. Uns dizem que dos italianos, seus primeiros habitantes, que carinhosamente falavam que o lugar era uma ‘barafonda’, uma confusão, e muito provavelmente por sua própria presença. Outros dizem que veiodas curvas do Rio Tietê e dos portos de areia da região, pois uma barra funda facilitava a aproximação de barcos maiores. De uma forma ou de outra, Barra Funda nasceu e Barra Funda ficou.

Na segunda metade do século 19, a região era apenas um pedacinho das posses do Barão de Iguape (1778-1875) e lá se encontrava, por exemplo, a bucólica Chácara do Carvalho. Mas as construções das estações de trem da Estrada de Ferro Sorocabana (1875) e da São Paulo Railway (1892) mudaram toda a dinâmica da região. A Barra Funda virou então um movimentado entreposto, um importante meio do caminho entre o Porto de Santos e o interior do Estado, e era preciso muita mão de obra para movimentar essas novas engrenagens. Vieram então os italianos e, após a Abolição, os negros.

Em um tempo no qual as periferias eram próximas ao Centro, a Barra Funda rapidamente se transformou em um amontoado de vilas e cortiços que forneciam importante força de trabalho tanto para as ferrovias e indústrias quanto para as casas ricas no vizinho bairro dos Campos Elíseos. Não foi à toa que o primeiro bonde elétrico de São Paulo foi inaugurado em 7 de maio de 1900 ligando a Barra Funda, onde morava o então primeiro prefeito da cidade e neto do Barão de Iguape (Antônio da Silva Prado, 1840-1929), ao Largo São Bento.


Chaminé de fumaças passadas, 
escutam de perto 
os sons do Espaço das Américas

Com toda essa malha de transportes e distribuição, o desenvolvimento industrial do bairro ocorreu a passos largos a partir de 1900. Indústrias têxteis, químicas e metalúrgicas de pequeno, médio e grande porte, além de olarias e curtumes, começaram a se instalar na Várzea da Barra Funda, a parte do bairro entre as linhas de trem e o Rio Tietê. São dessa época no bairro a Cristaleria Paulista, a Fábrica de Vapor de Tecido e Fiação de Corda e de Barbante, a fábrica de papel Divani, a L. Queiróz (do lança-perfumes Pierrot) e a Bebidas Palhinha. Já na parte de cima da Barra Funda, entre o trem e os Campos Elíseos, concentrou-se a área residencial operária, além de pequenas oficinas (mecânicas, marcenarias, etc).

Boa parte das residências desse início da Barra Funda, bem como de outros bairros da cidade com predominância italiana, tinham como característica a “ponta de chuva”. Era um desenho básico para os pedreiros, dando ênfase à fachada, feito pelos capomastri (mestres de obras) com a ponta de seus guarda-chuvas na terra da construção. O restante das casas era ainda mais simples: entrada lateral, quarto enfileirados como um vagão de trem, porão e muita área de fundo, onde ficavam a cozinha e o banheiro.


A linha de trem atrás do muro, 
o pé do Viaduto Pacaembu, 
nenhum sinal do Largo do Banana

Barra Funda é que mora o samba

Um dos pontos mais importantes do bairro na primeira metade do século 20 foi o Largo da Banana, onde atualmente é o Viaduto Pacaembu e parte do Memorial da América Latina. O largo desapareceu sem deixar vestígio físico, mas o que aconteceu ali se ouve até hoje, pois é unanimidade entre historiadores que o Largo da Banana foi o berço do samba paulista. Em um triângulo de poucos metros quadrados, no qual milhares de cachos de banana e outras frutas eram vendidas e compradas diariamente, a comunidade negra do bairro se encontrava para batuques e improvisos em seus momentos de lazer, já que regularmente eram impedidos de participarem dos ranchos carnavalescos no Centro da cidade.

Foi então na Barra Funda que aconteceu a mistura urbana do samba rural vindo do interior do Estado de São Paulo (Pirapora do Bom Jesus) com o samba carioca que chegava via Porto de Santos. Tudo trazido e levado por trens e confluindo numa cidade que crescia rapidamente com a força econômica do café e da indústria.


Geraldo Filme (1928-1995) cantou essa história em diversas composições, como em “Samba da Barra Funda” - “Alô alô, gente bamba. Na Barra Funda é que mora o samba” -, lembrando de quando, ainda menino, acompanhava as rodas de samba e tiririca (capoeira) que os engraxates e carregadores improvisavam no Largo da Banana. Em “O Último Sambista”, Geraldo voltou a cantar o bairro, dessa vez com certo travo amargo de nostalgia: “Levo saudade lá do Largo da Banana / Onde nóis fazia samba / Todas noites da semana / Deixo esse samba / Que eu fiz com muito carinho / Levo no peito a saudade nas mãos o meu cavaquinho / Adeus Barra Funda”.

Esses agrupamentos festivos que aconteciam no Largo deram origem, em 1914, ao Grupo Carnavalesco Barra Funda. Seus integrantes saíam pelas ruas do bairro vestidos de camisas verdes e calças brancas e, como é de costume em manifestações realmente populares na rua, eram perseguidos pela polícia. Quando ocorriam essas repressões as festas eram transferidas para os quintais ou porões de teto baixo que, a princípio, foram feitos para guardar mantimentos, mas com o adensamento da população ganharam função domiciliar.

Na década de 1930, durante o ditatorial Estado Novo de Getúlio Vargas, os foliões foram sistematicamente “confundidos” com simpatizantes da Ação Integralista Brasileira, partido político do líder fascista Plínio Salgado, que usavam verde. A repressão foi tão dura que o grupo deixou de desfilar em 1936 e só voltou, com nome novo (Escola de Samba Camisa Verde e Branco), na década de 1950.

Em meados da década de 1950, com a cidade em franca expansão, surgiu a necessidade de ligar o bairro com a Zona Norte. Como existiam poucas passagens sobre a linha de trem foi construído o Viaduto Pacaembu, que acabou passando por cima (literalmente) do Largo da Banana. Desde então não existem mais vestígios do ainda pouco conhecido berço do samba paulista. Geraldo Filme também cantou esse triste e silencioso fim do Largo em “Vou Sambar Noutro Lugar”: “Fiquei sem o terreiro da escola / Já não posso mais sambar / Sambista sem o Largo da Banana / A Barra Funda vai parar / Surgiu um viaduto, é progresso / Eu não posso protestar / Adeus, berço do samba / Eu vou-me embora, vou sambar noutro lugar”.

Favela do Moinho

Felizmente algumas edificações históricas sobreviveram à sanha do progresso. Uma delas é o Theatro São Pedro, na esquina da Rua Barra Funda com a Rua Dr. Albuquerque Lins. Sua construção aconteceu por obra e graça do português Manuel Fernandes Lopes, homem de negócios que fez vida em São Paulo e decidiu retribuir com nada menos que um teatro (que hoje é o segundo mais velho da cidade ainda na ativa, perdendo apenas para o Theatro Municipal de 1911). O nome São Pedro veio do local de nascimento de seu benfeitor, Sarzedas de São Pedro, vilarejo próximo a Coimbra.

De estilo eclético, meio neoclássico e meio art nouveau, o teatro foi inaugurado em 20 de janeiro de 1917, e manteve durante muito tempo uma programação que ia desde sessões de cinema até operetas, passando por concertos, espetáculos de variedades e dança. A partir do final da década de 1960 passou por diversas fases de abandono e efervescência. No final da década de 1960, por exemplo, as atrizes Lélia Abramo e Beatriz Segall comandaram uma guinada para as artes cênicas e foram montadas peças de autores como Bertolt Brecht, Ariano Suassuna e Chico Buarque.

O tombamento pelo Patrimônio Histórico aconteceu em 1984, mas o Theatro São Pedro só voltou a abrir ao público definitivamente a partir de uma grande reforma em 1998 e desde então segue firme como uma das poucas edificações que lembra a fase áurea do bairro.

Outras edificações sobreviventes são o palacete da Chácara do Carvalho, situado na Alameda Barão de Limeira, e a Casa Mário de Andrade, na esquina da Rua Lopes Chaves com a Rua Margarida.

O palacete é um dos marcos iniciais do bairro, foi construído no final do século 19 e pertenceu a família do Barão de Iguape. A princípio era um lugar de criação de cavalos puro sangue, mas com a instalação das ferrovias o terreno valorizou e Antônio da Silva Prado, que foi o primeiro prefeito da cidade (1899-1911) e neto do Barão de Iguape, decidiu construir um palacete projetado pelo italiano Luigi Pucci.

Durante a década de 1920, o palacete foi palco de inúmeros convescotes da elite paulistana e chegou até a hospedar Alberto I, o então Rei da Bélgica, e sua corte em visita a cidade. Hoje a Chácara do Carvalho abriga o Instituto de Educação Boni Consilii.

Já a casa de Mário de Andrade não tem particularmente nada de especial (arquitetonicamente falando). É um sobrado geminado típico da classe média paulistana do início do século 20, mas desde que a família do escritor modernista se mudou para lá em 1918, apenas um ano depois de sua construção, a casa ganhou importância histórica.

Lá ficava sua gigantesca e diversa biblioteca, e móveis desenhados por ele. Era lá também que Mário de Andrade dava aulas de composição e, às quartas, recebia importantes intelectuais da época, incluindo amigos que participaram da Semana de Arte de Moderna de 1922.

Durante a década de 1930, quando foi diretor do Departamento Municipal de Cultura, idealizou neste sobrado uma série de atividades culturais acessíveis para a população, tais como bibliotecas circulantes, concertos e espetáculos a preços módicos. Em 1937, pouco antes de sair para um breve autoexílio no Rio de Janeiro, viajou até Pirapora do Bom Jesus. De volta à Rua Lopes Chaves escreveu “O Samba Rural Paulista”, texto seminal sobre as origens do gênero em terras bandeirantes.

Foi no sobrado, em 25 de fevereiro de 1945, que Mário de Andrade sofreu um ataque cardíaco fulminante. Em seu testamento dava dois fins possíveis para a casa: ou ficava com a família ou deveria ser transformada em centro cultural. A casa foi tombada em 1975 e abriga desde 1990 a Oficina da Palavra, uma instituição estadual dedicada a literatura.


Casa das Caldeiras, março de 2013

Outra edificação sobrevivente do glorioso passado industrial da Barra Funda fica no extremo oeste do bairro, quase Pompéia. A Casa das Caldeiras, que desde sua reforma no final da década de 1990 é um local para eventos e shows mantido pelo Estado, era parte das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo, que foi a seu tempo o maior complexo industrial da América Latina.

Tombado pelo Patrimônio Histórico em 1986, a Casa das Caldeiras é um espaço impressionante de alvenaria, pé direito altíssimo e três chaminés monumentais que levam às caldeiras que dão nome ao espaço. Sua construção começou na década de 1920 e o espaço foi ampliado em outros dois momentos (1936 e 1953) em um vasto terreno de mais de 100 mil m2. No complexo fabril do Conde Francesco Matarazzo (1854-1937) eram produzidos sabonetes, álcool, óleo vegetal, vela, sacarias, etc. Tudo devidamente escoado por uma linha de trem própria ligada à Estrada de Ferro Sorocabana.

Mas nem só de passado remoto vive o patrimônio histórico e cultural da Barra Funda, pois em 1989 o bairro ganhou o Memorial da América Latina. Idealizado pelo antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997) e projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012), o Memorial foi construído em um grande terreno entre o Viaduto Pacaembu e o Terminal Intermodal da Barra Funda. Em um terreno de 84.482 m2, o complexo arquitetônico é formado pela Praça Cívica, o Parlamento Latino-Americano, a Galeria Marta Traba, a Sala de Atos, o Queijinho (Centro de Recepção de Turistas), o Pavilhão da Criatividade e o Auditório Simon Bolivar.

Até hoje, mais de duas décadas após sua inauguração, o Memorial da América Latina ainda sofre críticas. De um lado, pela completa aridez do espaço. Nada de árvores ou jardins, apenas o concreto, a ideia fixa de Niemeyer. Do outro, pela falta de diálogo com o entorno. Segundo os críticos é como se tivessem sido jogadas aleatoriamente umas construções naquele espaço e o entorno, e a cidade, que se vire para correr atrás.


Fugindo parada 
bem na ruazinha 
Chácara do Carvalho

Transformações barafondas

A partir do processo de desindustrialização que a cidade de São Paulo viveu a partir da década de 1960 – com a criação de parques industriais na região do ABC, por exemplo –, bairros como a Barra Funda sofreram sucessivas quedas demográficas. Grandes áreas, outrora fábricas e oficinas, permaneceram abandonadas durante muitos anos assombrando velhos moradores, assustando possíveis novos moradores. E o bairro foi se degradando, junto com outras partes próximas ao Centro de São Paulo, sem ninguém se dar conta de sua posição estratégica na cidade, de sua boa malha de transporte público e variedade de serviços. Nem mesmo as estações de metrô, construídas no final da década de 1970, e nem o Memorial da América Latina, do final da década de 1980, reverteram o processo. Afinal, o mais comum em São Paulo é o surgimento de iniciativas urbanas isoladas sem nenhuma preocupação com o entorno.

Segundo levantamento divulgado pelo IBGE, o distrito tinha em 2011 uma população de 14.481 pessoas moradoras, sendo que quase metade na faixa entre 30 e 59 anos. Em 1980, o número era 17.894. Por outro lado, esse mesmo censo de 2011 afirmou que a queda foi estancada e o número de habitantes permanece praticamente o mesmo desde o final dos anos 1990 (ao redor dos 14 mil), enquanto a população flutuante voltou a aumentar.

Uma das explicações para esse novo movimento na Barra Funda é que durante esse período recente, uma série de iniciativas (empresariais, de serviços, entretenimento, etc.) injetou novos dinamismos no bairro. É possível citar, entre outros, o Centro Empresarial Água Branca, os estúdios da TV Record, o 1º Tribunal do Júri da Cidade de São Paulo, o Espaço das Américas, além de bares, casas noturnas e faculdades.

Durante muitas décadas, a Barra Funda, como outros bairros de São Paulo, sofreu com a falta de planejamento urbanístico. Aos poucos, e por consequência dos limites que a cidade chegou, novas ideias precisam ser testadas, afinal o futuro da cidade depende de seu presente.

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