brasília 18% acabaria sendo seu último filme ficcional e de lá pra cá dirigiu apenas três documentários: português, a língua do brasil [2009], a música segundo tom jobim [2012] e a luz do tom [2012], todos citados nessa entrevista.
nelson. pereira. dos santos.
Era um dia da semana como outro qualquer e o Centro do Rio de Janeiro fervilhava sob um céu azul de cartão postal. No labirinto de suas ruas estreitas um cineasta de espírito jovem, mas que no ano que vem completa 80 anos, trabalha sem parar. Nelson Pereira dos Santos é seu nome. Presente no cinema brasileiro desde o final da década de 1940, o paulistano de alma carioca traz em sua bagagem filmes inesquecíveis como Rio Zona Norte, Vidas Secas e Memórias do Cárcere, além de um olhar ao mesmo tempo doce e crítico em relação à realidade nacional. Em 2006, o diretor e roteirista lançou Brasília 18% nos cinemas após uma década produzindo exclusivamente documentários. Sua volta à ficção, uma das estreias do mês no Canal Brasil, é um misto de drama político e história de amor torta ambientada nos labirintos de Brasília com direito a congressistas envolvidos em tramóias, orgias e assassinatos. Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência e o cineasta sabe disso há tempos. Leia a seguir a entrevista com Nelson Pereira dos Santos, que além de mestre da sétima arte é, desde 2006, um imortal da Academia Brasileira de Letras [ocupa a cadeira 7 que originalmente foi de um de seus maiores ídolos, Castro Alves].
Carlos Alberto Ricceli e Malu Mader em cena de Brasília 18%
O que é Brasília pra você? Você lembra da primeira vez que foi lá?
Lembro, claro. Eu trabalhava pro Jornal do Brasil na época e fui numa excursão com jornalistas. Vi Brasília, a Esplanada dos Ministérios, aquela terra vermelha e os edifícios todos ainda no esqueleto. Sempre fui fã de tudo que é novidade, então quando surgiu essa história de fazer uma nova capital achei ótimo. Era jovem e acreditei, como muita gente. Depois fui pra Brasília em 1965 trabalhar na UnB e ajudei a montar a primeira faculdade de cinema em uma universidade pública no Brasil. Mas essa história não durou muito e no mesmo ano alguns professores foram demitidos pelos militares e o restante pediu demissão em solidariedade, inclusive eu. Voltei à cidade em 1991 quando foi criado o Polo de Cinema de Brasília, eu era um dos conselheiros, e também por lá, mais ou menos na mesma época, filmei algumas partes de A Terceira Margem do Rio. Tenho uma relação com Brasília desde o começo.
Imagino então que você tenha acumulado um monte de histórias de bastidores da cidade durante todo esse tempo.
Pois é, quem conhece a vida política de Brasília vai lembrar de acontecimentos reais e que no filme parecem ficção. Mas tem outra coisa que é bom lembrar. Essa Brasília do filme é a Brasília da cúpula, do plano piloto, dos que têm acesso ao poder. Não é a Brasília do cidadão comum. É outra cultura.
Como surgiu a ideia de dar nomes de escritores aos personagens do filme?
Na hora de fazer o roteiro, de escrever a história, a gente precisa dar algum nome aos personagens. Aí eu coloco o que primeiro vier na cabeça, depois mudo. Ou então coloco o primeiro nome do ator. Na época, não sei por que, tinha um Olavo Bilac na minha escrivaninha. Depois veio o Gonçalves Dias. E assim foi. Quando acabei o roteiro mandei para alguns amigos. O que foi comum a todas as observações foi essa história dos nomes. Achavam que o público não ia entender. Mas tinha certeza que isso poderia ser interessante, afinal são nomes de pessoas que deram contribuições importantes no plano da arte, da literatura, e esses nomes estão agora em um terreno de absoluta decadência. São grandes nomes em pessoas mesquinhas.
Antes do Brasília 18% você ficou durante dez anos fazendo exclusivamente documentários. Foi uma opção tua? É mais tranquilo fazer documentários do que ficção?
Eu tinha um projeto de ficção muito ambicioso. Era uma reconstituição do Brasil Império e da vida do escritor Castro Alves. Comecei a captação, mas o projeto estava muito caro. Então fui convidado a fazer um documentário sobre o centenário do Gilberto Freyre e joguei tudo que tinha sido investido no Castro Alves para Casa Grande & Senzala, que acabou virando uma série em quatro episódios de uma hora cada. Trabalhei pra dedéu nisso entre 1999 e 2003. Depois apareceu o centenário do Sérgio Buarque de Hollanda [Raízes do Brasil, de 2004]. Mas esta sua observação é válida porque, realmente, em um documentário, você trabalha em cima de fatos históricos comprovados e com uma equipe menor. É mais íntimo e mais barato.
Mas você estava com saudades de fazer ficção?
Ah, sim. Mas houve estranhamentos. Que depois superei, claro. O número de técnicos na equipe aumentou [risos]. É uma subdivisão muito grande, um monte de assistentes. Facilita por um lado, ainda mais com a alta qualidade dos profissionais de hoje. É que não tinha ideia de como pilotar um bonde deste tamanho [risos]. Mas a gente vai aprendendo, né?
E como estão os novos projetos?
Acabei de fazer um filme na Academia Brasileira de Letras intitulado Português, a Língua do Brasil, no qual os acadêmicos falam sobre o português falado no Brasil. E já tenho esquematizada a produção de um documentário sobre o Tom Jobim que será feito no mesmo esquema do Sérgio Buarque de Hollanda. Um filme será um retrato afetivo e o outro será sobre a obra. Quero ver se consigo começar a filmar em setembro para lançar no ano que vem.
Algo mudou em teu prazer de filmar nestes mais de 50 anos de carreira?
Olha, sempre me sinto à vontade quando estou em um set e o momento de filmar é como estivesse de férias. Estou fazendo o que quero fazer. Por exemplo, esse filme que fiz na Academia Brasileira de Letras não tinha roteiro. Tive a ideia e fui filmando. Mas é uma sorte contar com um elenco como esse porque os acadêmicos falam super bem e as opiniões são brilhantes. Tem momentos maravilhosos. Olha aí eu vendendo o peixe de outro filme [risos]. Mas imagine o Sérgio Paulo Rouanet falando sobre o uso da língua ou então o Ariano Suassuna recitando um sermão do Padre Antônio Vieira. E o João Ubaldo Ribeiro, a Nelida Piñon... olha, não percam este filme [risos]! E tudo pelo prazer de filmar. Mas preciso começar a pensar na hora de me aposentar, principalmente agora que tenho um bom lugar para ficar que é a Academia. Tem muita coisa para fazer lá, muito livro para ler. E é preciso de saúde para fazer cinema. Mas também, pensando no Manoel de Oliveira que está com 98 anos e continua filmando, tenho ainda alguma esperança [risos].
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