NEM TODOS ESTÃO SURDOS
Medo. Do que pode acontecer. Do desconhecido. Do escuro. Da
rua. De quem está ao lado. De tudo, tudo. Boa parte dos personagens de O
Som ao Redor, longa de Kleber Mendonça Filho lançado recentemente nos
cinemas, sofre desse mal tão contemporâneo e urbano. Algumas vezes com razão,
mas na grande maioria fruto de um emaranhado de paranoias, delírios e
preconceitos, muitos preconceitos, individuais e coletivos.
Não existe uma trama clara nessa excelente estreia do pernambucano,
autor de curtas sensacionais como Recife Frio e hábil crítico de
cinema. Existem pessoas de classe média e seus empregados (porteiro, doméstica,
flanelinha, entregador de água etc.), uma rua em Recife perto da Praia da Boa
Viagem e um grupo de seguranças particulares que chegam oferecendo... segurança
(Contra o quê? Contra quem?). E, claro, um dia após o outro dia.
Tem crianças brincando no playground azulejado do prédio, a
patroa que dá esporro na empregada, a moradora de apartamento que reclama
porque “anda recebendo sua Veja fora do plástico”, o boyzinho arruaceiro e
prepotente, uma reunião de condomínio, o cachorro que não para de latir
madrugada afora, um baseado fumado escondido, um banho de mar noturno,
adolescentes namorando, um argentino perdido, uma batida de carros. Tudo
normal, aparentemente normal. Aos poucos, o filme vai sendo tomado por uma
tensão de que algo (ruim) está para acontecer. É o medo dessa gente tomando as
mais diferentes formas.
No ótimo texto “Da
relação direta entre ter de limpar seu banheiro você mesmo e poder abrir sem
medo um Mac Book no ônibus”, Daniel Duclos fala da Holanda onde mora para
chegar ao Brasil onde nasceu e à seguinte conclusão: “O curioso é que aqueles
brasileiros que se queixam amargamente de limpar o próprio banheiro, elogiam
incansavelmente a possibilidade de andar à noite sem medo pelas ruas [de
Amsterdam], sem enxergar a relação entre as duas coisas. Violência social não é
fruto de pobreza. Violência social é fruto de desigualdade social”.
Só que no Brasil a manutenção da desigualdade –
consequentemente da violência e do medo – é um bom negócio para muita gente (não
só dá lucro como também elege os coronéis Telhada da vida). E grudado nisso tem
o espírito Casa Grande & Senzala que ainda vive arraigado em nossas
relações sociais. Arraigado e difuso, afinal hoje em dia existem milhões de
senhorzinhos de engenho espalhados pelo país (a diminuição da desigualdade
econômica ameniza a social, mas não a resolve).
Não precisa mais ter poder, basta achar que tem. E na rua de
O Som ao Redor, como em todo o país,
tem um monte de gente que quer manter as coisas como estão com seus grandes e
pequenos poderes. Quanto mais desigual, melhor, e o medo é moeda de troca nesse
conflito diário entre autoritarismos e subserviências.
O filme critica tudo isso observando, apenas observando. Não
levanta bandeiras, não faz discursos. Mas registra inúmeros momentos no qual
pessoais normais alimentam o bicho feio (real ou não) que irá lhes assustar quando
colocarem o pé na rua. Quem mandou não olhar para o lado. Quem mandou não ouvir.
p.s.: Recomendáveis a leitura desses dois textos sobre o
filme, “O som
ao meu redor” (Marcelo Negromonte) e “Terror
suspenso” (Kiko Dinucci), e a ótima divulgação que o filme tem feito no Facebook.
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