sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

o início da avenida paulista também é seu fim

Pois é, logradouros de mão dupla tem dessas coisas. Só que ali em seu início oficial, na Praça Oswaldo Cruz (antigo Largo do Paraíso), na noite de 19 de fevereiro, um casal tinha questões mais urgentes para se preocupar. O relógio marcava 21h35 e ele negro, ela branca, ambos magros com cerca de 20 anos, se equilibravam precariamente em um dos bancos ondulados anti-mendigos. A luta contra o concreto é sempre árdua e a praça ainda por cima estava mergulhada em sombras e com centenas de galhos espalhados pelo chão – resultado da grande chuva de algumas horas antes –, mas os dois deram um jeito de se encaixar, coxa sobre coxa, beijo sobre beijo, abraçados infinitamente até a inevitável hora de irem para a casa dos pais.

Do outro lado da praça, o Índio Pescador, estátua de Francisco Leopoldo Silva, olha para o lago seco congelado no tempo. Os peixes há muito se foram, bem como sua lança, e mesmo assim ele espera. E se ele um dia saísse pela avenida descontando os anos de maus tratos e indiferença? Não, nem em sonho. O bom selvagem de cobre continuará por ali esperando qualquer coisa. Hipnotizado pelo vazio.


A ida é pelo lado par, a volta pelo ímpar, e nas duas calçadas da avenida passam pessoas com malas, chegando ou partindo da cidade, e muitas outras saindo das inúmeras faculdades da região. A fauna noturna também é composta por sem tetos que se abrigam do jeito que conseguem e o primeiro a ser encontrado aparece logo após a entrada do Hospital Santa Catarina: rosto coberto e corpo em posição fetal para não sentir o vento frio da noite fresca. Logo acima de sua cabeça uma série de esculturas em baixo relevo com corações, pulmões, células, ossos e outros pedaços humanos. E ele ali, inteiro.

No decorrer da caminhada aparecerão outros 17, todos homens, e a maioria optando pela segurança dos caixas eletrônicos. Ah, e não possuem preconceito contra nenhum banco. Estão no Safra e na Caixa, no Santander e no Itaú, no Bradesco e no Banco do Brasil. E invisíveis em todos os lugares pelas ondas humanas que os cercam.


O frenesi de gente querendo chegar logo em casa, já tá tarde, mais de 10 da noite putaquepariu, congestiona vários trechos dessa senhora avenida de 122 anos. Um dos pontos de maior movimento é o prédio da Gazeta, onde também funciona o cinema Reserva Cultural, a UNIP, a Casper Líbero e o Objetivo. No entanto, sua longa e ampla escadaria acaba sendo usada também como arquibancada para o teatro da calçada e nessa noite um grupo de amigos é responsável pelo som ao vivo. A formação é curiosa – flugelhorn, trompete, violão, cavaquinho e percussão (cajón) – e o ponto alto é uma versão de “Liberdade pra dentro da cabeça” (Natiruts).

O pessoal no ponto de ônibus dá umas olhadas, uns até sorriem, mas quem mais aprecia é um velho bêbado que resolve se deitar para melhor desfrutar a serenata. A música acaba e o sujeito que toca flugelhorn sai da formação, senta em um degrau e sai disparando trechos de “Berimbau” (Baden Powell e Vinicius de Moraes), “I say a little prayer for you” (Burt Bacharach), Los Hermanos e Beirut. O fluxo de gente não para, nem as obras, nem um carro de polícia com sirene ligada, nem um silencioso caminhão de bombeiro.


Um pouco depois é a vez do prédio da FIESP dominar o cenário com suas luzes noturnas. A construção do final da década de 1970, assinada pelo escritório de Rino Levi, foi reformada vinte anos depois por Paulo Mendes da Rocha e agora está tomada por animações um pouco falhas com espirais, mapas estilizados de São Paulo e gotas eletrônicas escorrendo pela fachada do prédio. Um policial saca o celular, tira uma foto, mostra pra companheira PM, ela diz que ficou ótima e os dois se dirigem ao MASP. Missão dada é missão cumprida, dizem por aí.


O vão livre do museu projetado por Lina Bo Bardi é outro que serve de abrigo noturno para sem tetos, geralmente perto da bilheteria, e é uma moldura e tanto para os cada vez mais corriqueiros passeios noturnos de bicicleta. Passam um, dois, três, quatro grupos em menos de uma hora, com números de integrantes variando entre 6 e 20. Passa também um jovem de óculos escuros tocando um violão porcamente pintado e usando um chapéu de palhaço que poderia ter sido roubado do Patati ou do Patatá. E nenhuma alma viva no antigo Belvedere do Trianon, ninguém olhando a Av. 9 de Julho serpentear rumo ao Centro.

O movimento de carros vai diminuindo pouco a pouco, bem pouco, mas o bastante para ouvir o grito das rodinhas de skate rasgando o chão perto do prédio da Caixa Econômica. Pouco depois já dá pra ver um garoto de camisa de flanela e boné rolando e seu skate indo para o lado oposto. Levanta rápido, cê nem viu mano. Pouco adiante um outro garoto consegue convencer a amiga a andar em sua prancha com rodinhas. Ela nunca teve coragem, mas ele tanto insistiu que... então, gentilmente, ele segura a mão dela, que sobe e fica em pé, parada, já esperando o tombo. Mas lentamente ele a traz pela mão e o skate vai andando, andando, e ela junto rindo nervosa. Depois gostando. E lá se vão os dois.


Então é a hora do fim da Paulista, ou do início, aí depende. Lá pela altura do 2400, a avenida é brutalmente cortada pela Rua da Consolação, o que não deixa de ser irônico, e só um restinho seu fica do outro lado. Nesse trecho, que muita gente não acredita fazer parte da Paulista, cabem um grande prédio residencial, um comercial, um estacionamento, uma boate que já teve dias melhores e a Praça Marechal Cordeiro de Farias, ou Praça dos Arcos.

Essa praça, como muitas outras na cidade, não é um lugar de lazer ou descanso e sim de passagem. As praças em São Paulo também não podem parar, talvez por isso não possuam bancos nem nada parecido. Quer dizer, tem uma mureta em forma de arco (claro), no qual três sujeitos se escoram pra beber a última da noite. O relógio acabou de passar das 23h e a poucos metros dos caras aparecem duas amigas sendo levadas por seus cachorros. Falam sobre comida, restaurantes e cardápios enquanto seus bichos de estimação cheiram os arcos metálicos coloridos projetados por Lilian Amaral e Jorge Bassani. A grama está alta.


Enquanto as amigas, e seus cachorros, descem rumo a Av. Angélica, carros passam zunindo tanto no sentido Av. Rebouças quanto no da Av. Dr. Arnaldo. E a Paulista lá, toda iluminada em seus quase 3 km de extensão, parecendo assombrar uma dupla de chineses. Após cerca de cinco minutos de um silêncio contemplativo, um vira para o outro e diz algo que gera risadas altas, então o outro dá um tapinha nas costas do um e ambos voltam para o seu hotel logo ali na Consolação.

O metrô está quase para fechar e mesmo assim teima em soltar seus guinchos através dos respiradouros que dão pra avenida. Luz verde, depois vermelha, depois verde, vermelha, e umas amarelas no meio do caminho, enquanto um casal de franceses conversa animadamente em frente ao Conjunto Nacional.  Cada vez menos gente nos pontos de ônibus e até os policiais parece que sumiram.


Então, em frente ao Parque do Trianon, o mistério do sumiço dos PMs se esclarece. É hora da troca de guarda e cerca de 40 soldados homens e mulheres fazem ‘sentido’ para os comandos genéricos do oficial superior. Dispensados, grita, e os policiais rapidamente vão para todos os lados da avenida em grupos de dois ou quatro. A fachada da FIESP continua piscando e escorrendo em luzinhas, um tanto mais tímidas é verdade, e ainda é possível ouvir skatistas acertando e errando manobras ao longe.

Em um bar logo após a Av. Brigadeiro Luis Antônio, um bêbado procura por cigarro enquanto os garçons recolhem cadeiras, mesas e sujeiras. Algumas poucas horas antes toda a calçada estava lotada de calouros de alguma universidade por ali, gente bebendo com coisas escritas com batom na testa. RP, Administração, Publicidade, futuros profissionais, a nova geração ao som de um grupo de samba que tocava de Adoniran Barbosa a Fundo de Quintal. Agora, naquela hora, não havia sobrado nem matrícula para contar a história.


De volta à Praça Oswaldo Cruz, um motoboy pede orientações a dois garis, que tem dificuldade para ouvir por causa do barulho de um esmeril em um prédio comercial que deveria estar vazio. Acabou de bater meia-noite e nem sinal do casal que lutou bravamente contra o banco anti-mendigos. Mas o índio pescador continua lá, mãos vazias, esperando. Ele tem certeza que sua hora chegará.

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