Do outro lado da praça, o Índio Pescador, estátua de
Francisco Leopoldo Silva, olha para o lago seco congelado no tempo.
Os peixes há muito se foram, bem como sua lança, e mesmo assim ele espera. E se
ele um dia saísse pela avenida descontando os anos de maus tratos e indiferença?
Não, nem em sonho. O bom selvagem de cobre continuará por ali esperando
qualquer coisa. Hipnotizado pelo vazio.
A ida é pelo lado par, a volta pelo ímpar, e nas duas
calçadas da avenida passam pessoas com malas, chegando ou partindo da cidade, e
muitas outras saindo das inúmeras faculdades da região. A fauna noturna também
é composta por sem tetos que se abrigam do jeito que conseguem e o primeiro a
ser encontrado aparece logo após a entrada do Hospital Santa Catarina: rosto
coberto e corpo em posição fetal para não sentir o vento frio da noite fresca.
Logo acima de sua cabeça uma série de esculturas em baixo relevo com corações,
pulmões, células, ossos e outros pedaços humanos. E ele ali, inteiro.
No decorrer da caminhada aparecerão outros 17, todos homens,
e a maioria optando pela segurança dos caixas eletrônicos. Ah, e não possuem
preconceito contra nenhum banco. Estão no Safra e na Caixa, no Santander e no
Itaú, no Bradesco e no Banco do Brasil. E invisíveis em todos os lugares pelas
ondas humanas que os cercam.
O frenesi de gente querendo chegar logo em casa, já tá
tarde, mais de 10 da noite putaquepariu, congestiona vários trechos dessa
senhora avenida de 122 anos. Um dos pontos de maior movimento é o prédio da
Gazeta, onde também funciona o cinema Reserva Cultural, a UNIP, a Casper Líbero
e o Objetivo. No entanto, sua longa e ampla escadaria acaba sendo usada também
como arquibancada para o teatro da calçada e nessa noite um grupo de amigos é
responsável pelo som ao vivo. A formação é curiosa – flugelhorn, trompete,
violão, cavaquinho e percussão (cajón) – e o ponto alto é uma versão de
“Liberdade pra dentro da cabeça” (Natiruts).
O pessoal no ponto de ônibus dá umas olhadas, uns até
sorriem, mas quem mais aprecia é um velho bêbado que resolve se deitar para
melhor desfrutar a serenata. A música acaba e o sujeito que toca flugelhorn sai
da formação, senta em um degrau e sai disparando trechos de “Berimbau” (Baden
Powell e Vinicius de Moraes), “I say a little prayer for you” (Burt Bacharach),
Los Hermanos e Beirut. O fluxo de gente não para, nem as obras,
nem um carro de polícia com sirene ligada, nem um silencioso caminhão de bombeiro.
Um pouco depois é a vez do prédio da FIESP dominar o cenário
com suas luzes noturnas. A construção do final da década de 1970, assinada pelo
escritório de Rino Levi, foi reformada vinte anos depois por Paulo Mendes da
Rocha e agora está tomada por animações um pouco falhas com espirais, mapas
estilizados de São Paulo e gotas eletrônicas escorrendo pela fachada do prédio.
Um policial saca o celular, tira uma foto, mostra pra companheira PM, ela diz
que ficou ótima e os dois se dirigem ao MASP. Missão dada é missão cumprida, dizem por aí.
O vão livre do museu projetado por Lina Bo Bardi é outro que
serve de abrigo noturno para sem tetos, geralmente perto da bilheteria, e é uma
moldura e tanto para os cada vez mais corriqueiros passeios noturnos de
bicicleta. Passam um, dois, três, quatro grupos em menos de uma hora, com números
de integrantes variando entre 6 e 20. Passa também um jovem de óculos escuros tocando
um violão porcamente pintado e usando um chapéu de palhaço que poderia ter sido
roubado do Patati ou do Patatá. E nenhuma alma viva no antigo Belvedere do
Trianon, ninguém olhando a Av. 9 de Julho serpentear rumo ao Centro.
O movimento de carros vai diminuindo pouco a pouco, bem
pouco, mas o bastante para ouvir o grito das rodinhas de skate rasgando o chão
perto do prédio da Caixa Econômica. Pouco depois já dá pra ver um garoto de
camisa de flanela e boné rolando e seu skate indo para o lado oposto. Levanta
rápido, cê nem viu mano. Pouco adiante um outro garoto consegue convencer a
amiga a andar em sua prancha com rodinhas. Ela nunca teve coragem, mas ele
tanto insistiu que... então, gentilmente, ele segura a mão dela, que sobe e
fica em pé, parada, já esperando o tombo. Mas lentamente ele a traz pela mão e
o skate vai andando, andando, e ela junto rindo nervosa. Depois gostando. E lá
se vão os dois.
Então é a hora do fim da Paulista, ou do início, aí depende.
Lá pela altura do 2400, a avenida é brutalmente cortada pela Rua da Consolação,
o que não deixa de ser irônico, e só um restinho seu fica do outro lado. Nesse
trecho, que muita gente não acredita fazer parte da Paulista, cabem um grande
prédio residencial, um comercial, um estacionamento, uma boate que já teve dias
melhores e a Praça Marechal Cordeiro de Farias, ou Praça dos Arcos.
Essa praça, como muitas outras na cidade, não é um lugar de
lazer ou descanso e sim de passagem. As praças em São Paulo também não podem
parar, talvez por isso não possuam bancos nem nada parecido. Quer dizer, tem
uma mureta em forma de arco (claro), no qual três sujeitos se escoram pra beber
a última da noite. O relógio acabou de passar das 23h e a poucos metros dos
caras aparecem duas amigas sendo levadas por seus cachorros. Falam sobre
comida, restaurantes e cardápios enquanto seus bichos de estimação cheiram os
arcos metálicos coloridos projetados por Lilian Amaral e Jorge Bassani. A grama
está alta.
Enquanto as amigas, e seus cachorros, descem rumo a Av.
Angélica, carros passam zunindo tanto no sentido Av. Rebouças quanto no da Av.
Dr. Arnaldo. E a Paulista lá, toda iluminada em seus quase 3 km de extensão,
parecendo assombrar uma dupla de chineses. Após cerca de cinco minutos de um
silêncio contemplativo, um vira para o outro e diz algo que gera risadas altas,
então o outro dá um tapinha nas costas do um e ambos voltam para o seu hotel
logo ali na Consolação.
O metrô está quase para fechar e mesmo assim teima em soltar
seus guinchos através dos respiradouros que dão pra avenida. Luz verde, depois
vermelha, depois verde, vermelha, e umas amarelas no meio do caminho, enquanto um
casal de franceses conversa animadamente em frente ao Conjunto Nacional. Cada vez menos gente nos pontos de ônibus e
até os policiais parece que sumiram.
Então, em frente ao Parque do Trianon, o mistério do sumiço
dos PMs se esclarece. É hora da troca de guarda e cerca de 40 soldados homens e
mulheres fazem ‘sentido’ para os comandos genéricos do oficial superior.
Dispensados, grita, e os policiais rapidamente vão para todos os lados da
avenida em grupos de dois ou quatro. A fachada da FIESP continua piscando e
escorrendo em luzinhas, um tanto mais tímidas é verdade, e ainda é possível
ouvir skatistas acertando e errando manobras ao longe.
Em um bar logo após a Av. Brigadeiro Luis Antônio, um bêbado
procura por cigarro enquanto os garçons recolhem cadeiras, mesas e sujeiras.
Algumas poucas horas antes toda a calçada estava lotada de calouros de alguma
universidade por ali, gente bebendo com coisas escritas com batom na testa. RP,
Administração, Publicidade, futuros profissionais, a nova geração ao som de um
grupo de samba que tocava de Adoniran Barbosa a Fundo de Quintal. Agora,
naquela hora, não havia sobrado nem matrícula para contar a história.
De volta à Praça Oswaldo Cruz, um motoboy pede orientações a
dois garis, que tem dificuldade para ouvir por causa do barulho de um esmeril
em um prédio comercial que deveria estar vazio. Acabou de bater meia-noite e
nem sinal do casal que lutou bravamente contra o banco anti-mendigos. Mas o
índio pescador continua lá, mãos vazias, esperando. Ele tem certeza que sua
hora chegará.
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