música brasileira é aquela coisa bonita, cada vez mais diversa e territorialmente vasta. e todo ano aparece gente nova, tem povo amadurecendo e veteranos inquietos. mas foi em 2023 que teve Barbara Eugênia cantando Wando, Céu cantando Pitty, DJ Múlu remixando Tetê Espíndola, Martinho da Vila e Chico César cantando Zé Ketti, Valério tocando Luiz Gonzaga e Xande de Pilares cantando Caetano.
também foi em 2023 que finalmente gostei de Ava Rocha e fui surpreendido pelo improvável (a ex-atriz Cleo e Johnny Hooker, a ex-skatista Karen Jonz e o Cansei de Ser Sexy). falando em primeiras vezes, surgiram por aqui a potiguar Sarah Oliver, a mineira Sara Não Tem Nome, os gaúchos Ian Ramil e Duda Brack, o paraibano VictoRAMA, o cearense Mateus Fazeno Rock, o pernambucano Luiz Lins, o carioca Jonathan Ferr e o paulista MC Pedrinho.
também foi em 2023 que precisei quebrar mais uma vez a regra de não colocar mais de uma música por artista. Aleatoriamente de Rodrigo Ogi é tão porrada pulsante de um rapper cronista cada vez mais afiado que foi difícil fechar em apenas uma música (teria colocado mais que duas, aliás), e assim entraram “Chegou sua vez” e “Valha-me” (uma com Juçara Marçal, a outra com Siba, ambas produzidas por Kiko Dinucci). também não fui capaz de escolher entre “Madrugada maldita” e “Estante de livros” (essa com participação certeira de Don L), os dois pontos altos do excelente disco O Amor, o Perdão e a Tecnologia Irão Nos Levar Para Outro Planeta do FBC.
dessas 70 músicas vieram, obviamente, trampos novos & massa de gente já querida pela casa. gente que já sai com uns corpos de vantagem. é o caso de Aíla, Alice Caymmi, Jaloo, Ju Dorotea, Lurdez da Luz, Lucas Santtana, MC Tha, Síntese, Vitor Ramil, Baiana System, Duda Beat, Marcelo D2, Tatá Aeroplano, Xis e sempre sempre a filha Iara Rennó e a mãe Alzira E. mas já tá bom de blábli né. segue a playlist com 70 músicas brasileiras de 2023 segundo os ouvidos da casa.
70 MÚSICAS BRASILEIRAS DE 2023
A Espetacular Charanga do França - “Chevette azul” Academia da Berlinda - “Bandoleiro” Afrocidade - “Tá fod*” Aíla & Jáder - “Me beija” Alaíde Costa - “Ata-me” Aldo Sena - “Meu vovô” [part. Saulo Duarte] Alice Caymmi - “Las brujas” Alzira E - “Filha da mãe” [part. Ney Matogrosso] Ana Frango Elétrico - “Insista em mim” Arquétipo Rafa - “Feito ladeira” [part. Alessandra Leão] ÀTTØØXXÁ - “Dejavú” [part. Liniker] Ava Rocha - “Longe longe de mim” BaianaSystem & Duda Beat - “Borogodó” BaianaSystem, Gilsons & Tropkillaz - “Presente” Bárbara Eugênia - “Gosto de maçã” Bixiga 70 - “Na quarta-feira” Céu - “Emboscada” Clarice Falcão - “Chorar na boate” Cleo - “Seu fim” [part. Johnny Hooker] Coruja BC1, MC Luanna & Febem - “Versão brasileira” Djonga - “Coração gelado” [part. Tz da Coronel] Domenico Lancellotti - “Quem samba” [part. Ricardo Dias Gomes e
Marcia] Don L - “Tudo é pra sempre agora” [part. Luiza de Alexandre] Duda Brack - “Víbora ligeira” Eddie - “Máscara negra” [part. Karina Buhr e Isaar] FBC - “Estante de livros” [part. Don L] FBC - “Madrugada maldita” Felipe Cordeiro, Illy & Barro - “Todo céu azul” Giovani Cidreira - “Dois lados” [part. Russo Passapusso e Melly] Ian Ramil - “Macho-Rey” Iara Rennó - “Orí axé” Iza & MC Carol - “Fé nas maluca” Jaloo - “Tudo passa” Jards Macalé - “A foto do amor” Jonathan Ferr - “Correnteza” Ju Dorotea - “Raven” Juliano Gauche - “Nos cânticos de lá” Karen Jonz - “Coocoocrazy” [part. CSS] Karol Conká, Tasha & Tracie - “Negona” Letrux & Lulu Santos - “Zebra” Lucas Santtana - “What's Life” Luiz Lins - “Midas” Luisa e os Alquimistas & Getulio Abelha - “Caninga” Luiza Lian - “Homenagem” Lurdez da Luz - “Devastada” Marcelo D2 - “Povo de fé” Marina Sena - “Me ganhar” Martinho da Vila & Chico César - “Acender as velas” Mateus Fazeno Rock - “Melô de Aparecida” MC Pedrinho - “Gol bolinha, Gol quadrado 2” MC Tha & MahalPita - “Coisas bonitas” Moreno Veloso - “Mundo paralelo” Mulú - “Escrito nas estrelas” [remix] niLL - “3.0” [part. Amiri] Paulo Ohana & Bruna Alimonda - “Um pedido de desculpas” Rico Dalasam - “Tarde d+” Rodrigo Campos - “Japonego” [part. Juçara Marçal] Rodrigo Ogi - “Chegou sua vez” [part. Juçara Marçal] Rodrigo Ogi - “Valha-me” [part. Siba] Sara Não Tem Nome - “Nós” Sarah Oliver - “Redinha” Síntese - “Éter, dom & maldição” Tatá Aeroplano - “Canto mistério” Valério - “Asa Branca” VictoRAMA - “AfroRobot” Vitor Ramil - “Acordei sonhando” [part. Alunas e Alunos da Escola
Projeto] Xande de Pilares - “Muito romântico” Xis - “Cutuco di bituca” [part. Elena Diz, Kami Cruz e Chico
Chagas] YMA & Jadsa - “Meredith Monk”/ “Mete Dance” Zudizilla - “Groove ou caos” [part. Tuyo]
João Gilberto por Speto (próximo ao Mercadão de São Paulo)
55 DISCOS BRASILEIROS DE 2023
como já disse lá em cima, Aleatoriamente do Rodrigo Ogi e O Amor, o Perdão e a Tecnologia Irão Nos Levar Para Outro Planeta do FBC são dos maiores frutos do ano. discos que são tanto 2023 quanto o futuro. tem balanço e sujeira, esperança e desigualdade, cidade e amor.
outros grandes discos deste ano são o Coração Bifurcado de Jards Macalé, Iboru de Marcelo D2, a Negra Ópera de Martinho da Vila, O Paraíso de Lucas Santtana, a volta de Xis em Invisível Azul, a revelação de Mateus Fazeno Rock em Jesus Ñ Voltará, a delicadeza de Xande de Pilares ao cantar Caetano Veloso e a dobradinha de Rodrigo Campos (com o próprio Pagode Novo e a parceria com Romulo Fróes em Elefante), além do absurdo talento de mãe (a Mata Grossa de Alzira E) e filha (o Orí Okán de Iara Rennó).
seguem os 55 discos brasileiros do ano com link pra ouvir os respectivos na íntegra.
a tradição do esforçado de listas dos melhores sons do ano segue
firme e forte e variada. mais uma vez as dividi em nacionais e gringos, com
músicas e discos pra cada segmento. dessa vez começo com os gringos e me
surpreendi com o crescente número de africanos, afinal quase ¼ das 100 músicas vieram
de todos os lados do grande continente, desde o Egito (Nadah El Shazly) a África
do Sul (Muzi, Petite Noir e Kamo Mphela), do Mali (Los Chicharrons e os tuaregs
Bombino e Tinariwen) a Cabo Verde (Mayra Andrade, Dino D’Santiago e a saudosa
Sara Tavares), do Marrocos (ElGrandeToto) a Gana (Amaarae e Alogte
Oho), da Nigéria (Bloody Civilian, Nneka, Aunty Rayzor e Olamide) ao Congo (Baloji,
DJ Finale e Chrisman), do Quênia (Kabeaushé e MC Yallah) ao Burundi (Theecember).
um pouco mais de uma dezena dos sons da lista é hispanohablante
tipo grandão como Rosalía, Bad Bunny e Kali Uchis (em dose dupla) ou indies do
coração como La Yegros, Xenia Rubinos e Chancha Via Circuito, mas a maioria é
gente nova no pedaço tais quais La Dame Blanche, Karen y Los Remedios, C.
Tangana, Juliana, Mito y Comadre, Montoya e Trueno.
como sempre, a grande maioria da lista vem da dobradinha EUA-UK,
ela também cada vez mais diversa (mas invariavelmente negra né). cabô papo
furado. importante aqui é ouvir e reouvir essa centena de músicas que resumem
um pouco, pra mim, da música de 2023. tome playlist e, na sequência, a lista completa
por ordem alfabética.
100 MÚSICAS GRINGAS DE 2023
Aesop Rock - “Mindful Solutionism”
Aja Monet - “Why My Love”
Al Green - “Perfect Day”
Alogte Oho & His Sounds of Joy - “La Ka Ba'a”
Amaarae - “Counterfeit”
Andrew Bird - “Never Fall Apart”
Animal Collective - “Soul Capturer”
Armani White - “Goated” [ft. Denzel Curry]
Atmosphere - “Talk Talk” [ft. Bat Flower]
Aunty Rayzor - “Nina”
Bacao Rhythm & Steel Band - “How We Do”
Bad Bunny - “Un Preview”
Baloji & Mayra Andrade - “Matrone”
Beck - “Thinking About You”
Beyoncé - “My House”
Björk - “Oral” [ft. Rosalía]
Black Pumas - “More Than a Love Song”
Bloody Civilian - “Come From”
Blur - “The Narcissist”
Bombino - “Ayes Sachen”
Busta Rhymes - “Luxury Life” [ft. Coi Leray]
C. Tangana - “Estrecho/Alvarado”
Chancha Via Circuito - “Amor en Silencio” [ft. Lido Pimienta]
Chlothegod - “UGOMDN”
Chrisman - “Unforgettable” [ft. Tracy The Rapper]
Cotonete - “Day In Day Out” [ft. Leron Thomas]
Daniel Haaksman - “Supervivencia” [ft. Çantamarta]
Dave Okumu & The 7 Generations - “Chapter 4: Cave of Origins”
David Walters - “Soul Tropical”
Dengue Fever - “Silverfish”
Dino D'Santiago & Os Tubarões - “Djonsinho Cabral”
DJ Finale - “Pitschu Debou” [ft. DeBoul & Le Meilleur]
ElGrandeToto - “Weld Laadoul”
El Michels Affair & Black Thought - “Grateful”
Eva B - “Kuch Nahi Hua”
Gorillaz - “Controllah” [ft. MC Bin Laden]
Holy Hive - “The Shame” [ft. El Michels Affair & Fleet Foxes]
também como sempre, boa parte das melhores músicas do ano vem dos
melhores discos do ano. não tem como fugir, mas acho que vale destacar que 15
desses 60 talvez tenham sido os meus preferidos, pois foram os que tiveram
tantas músicas que chegou a ser difícil escolher apenas uma. Damon Albarn, por
exemplo, assinou mais uma porrada do Gorillaz (Cracker Island) e ainda
voltou com o Blur (The Ballad of Darren). dois instrumentais pegaram
meus ouvidos de jeito, o carimbenho-germânico BRSB da Bacao Rhythm and
Steel Band e o groovadíssimo Puzzled do multinstrumentista JJ
Whitefield. sem falar nas minas super poderosas Amaarae, Bloody Civilian, Janelle
Monae, Jorja Smith e Kali Uchis, e no poder do rap de Black Thought (em
parceria com a banda-que-só-faz-som-foda El Michels Affair), Killer Mike e Mick
Jenkins. já Bad Bunny tá naquela fase que não erra uma e com Nadie Sabe Lo
Que Va a Pasar Mañana não foi diferente. e por último, a grande surpresa do
ano, o maravilhoso Volcano dos ingleses Jungle (que ainda se torna
melhor com a série de clipes para cada uma das músicas e que viram um filme
lindamente coreografado, dançado e filmado).
putz, preciso muito falar rapidamente de alguns discos que não
emplacaram nenhuma faixa na lista de músicas. discos invariavelmente lindos por
si e não necessariamente por uma canção ou outra. são viagens que valem muito,
como as de André 3000 (New Blue Sun), Blu (Afrika), Captain
Planet (Sounds Like Home), Goran Bregovic (The Belly Button of the
World), Luzmila Carpio (Inti Watana: El Retorno del Sol), PJ Harvey (I
Inside the Old Year Dying) e Surprise Chef (Friendship). mas sem
mais delongas, os 60 discos gringos de 2023 à moda da casa (com os devidos
links para os discos na íntegra).
novo frila pra Revista Monet e dessa vez sobre um dos mestres mais mestres de todos os mestres, o grande Martin Scorsese, e sua obra prima mais recente, o dolorido e grandioso Assassinos da Lua das Flores. é uma história de amor, fraqueza, ambição, capitalismo, racismo e muito mais. impressiona, acima de tudo, o vigor com que Scorsese segue dirigindo e pensando do alto de seus pouco mais de 80 anos.
poster alternativo de Assassinos da Lua das Flores
UM ESPETÁCULO ÍNTIMO Martin Scorsese reuniu em Assassinos da Lua
das Flores seus dois atores preferidos para recriar um capítulo sangrento e
pouco conhecido da história americana Aos 81 anos de idade, Martin Scorsese acumula mais de 5 décadas de
carreira, quase 30 longas, e ainda documentários, séries de TV/streaming,
curtas, comerciais e até clipes. Mas em nenhum momento de sua longa carreira
ele se mostrou tão disposto e empenhado em divulgar um filme quanto o seu
trabalho mais recente, o épico Assassinos da Lua das Flores. Programas
matinais, podcasts, talk shows, quem lhe chamar pode ter certeza que lá ele
estará, animado e falando sem parar. Seu ânimo não é gratuito, afinal o longa é um projeto caro ao seu
coração desde que o abraçou em 2017, mesmo ano do lançamento do livro de não
ficção que o originou: Killers of the Flower Moon: The Osage Murders and the
Birth of the FBI, de David Grann. O filme começou de um jeito, mas não
fluía, não ia para frente, e enquanto Scorsese não desenrolava o novelo, ainda
dirigiu O Irlandês. Tudo estava pronto para as filmagens de Lua das
Flores começarem finalmente em março de 2020, mas a pandemia derrubou tudo
e acabou, por mais irônico que possa parecer, salvando o filme. “O livro é maravilhoso, mas no começo eu, enquanto cineasta, senti
que estava fazendo algo que já tinha visto antes. E então, quando já tínhamos
quase dois anos de trabalho, Leonardo (DiCaprio) uma hora me perguntou - onde
está o coração do filme? Foi aí que vi que a história da criação do FBI, a
partir dos assassinatos de membros da tribo Osage, definitivamente não era e que
o coração do filme estava na história de amor, confiança e traição entre Mollie
e Ernest Burkhast”, disse Scorsese após a primeira apresentação pública do
filme, em maio, no Festival de Cannes. Ao seu lado, sua Mollie (Lily Gladstone)
e seu Ernest (Leonardo DiCaprio).
A pandemia serviu, nesse caso específico, para que Scorsese
tivesse tempo para maturar, ao lado do roteirista Eric Roth, a total mudança de
foco do filme. “Esse tempo serviu para pensar o que é importante na vida, então esse filme
nasceu disso, mudou e cresceu por causa disso”, completou. As filmagens
começaram pra valer em abril de 2021 e terminaram em outubro, e antes, durante
e depois, Scorsese mergulhou profundamente na história trágica dos Osage. Ficou sabendo que após forçados deslocamentos impostos pelo
governo americano no século 19, os Osage foram parar naquela região esquecida e
pouco fértil das pradarias de Oklahoma (Scorsese filmou Lua das Flores
nas locações reais da história). Contavam que ali não seria perturbados pela invasão
branca ao meio oeste do país. Só que, no início do século 20, petróleo foi
encontrado na região e os Osage ficaram ricos, muito ricos. No entanto, os nativos
eram considerados “incompetentes” judicialmente, um ótimo pretexto para que tutores
brancos administrassem seu dinheiro e suas posses. Não demorou muito para
surgirem casamentos interraciais, todos de olho na herança da terra e da sua
crescente produção de petróleo. Entram em cena, Mollie, uma nativa Osage, e seu marido branco
Ernest. O casal é o centro da história sobre uma série de assassinatos de
homens, mulheres e crianças Osage – alguns parentes de Mollie, tais como irmãs
e mãe – em poucos meses do ano de 1921. Execuções, “acidentes”, envenenamento,
explosões, um pouco de tudo aconteceu aos Osage e a alguns apoiadores brancos
da tribo. Numa tentativa desesperada, e já com saúde debilitada, Mollie
consegue ir a Washington D.C. e chama atenção do governo federal para essas
mortes. Ela havia herdado os direitos de suas parentes e, consequentemente, se
via como a próxima vítima. Um jovem J. Edgar Hoover, chefe do Bureau of Investigation (futuro
FBI), decidiu com alguma relutância pegar o caso, afinal de contas os
territórios dos povos originários são de competência federal e as autoridades locais
não faziam ou não queria fazer nada a respeito. Em investigação capitaneada por
Thomas White (Jesse Plemons) não se demora muito para encontrar alguns
responsáveis por alguns dos crimes e, para a surpresa dos próprios Osage, o
principal se dizia grande amigo, defensor da tribo e influente cidadão de bem.
Seu nome, William King Hale (Robert De Niro), tio de Ernest, marido de Mollie.
Ernest, aliás, também foi condenado, e Mollie sobreviveu ao envenenamento de
que estava sendo vítima. Nada disso é spoiler, pois tudo que acontece em Assassinos da
Lua das Flores é de saber público. O que importa a Scorsese não é quem
matou, pois quase todos os brancos envolvidos com os Osage à época tiveram
alguma responsabilidade direta ou indireta sobre os crimes. E ainda hoje não se
sabe sobre a autoria da maiores dos crimes daquela época. O que importa é como
manipulações, traições, racismo e violência estão no cerne da construção da
América moderna. “Eu queria fazer justiça aos Osage para que o espectador pudesse
sentir a imensidão da tragédia. E também quis fazer um espetáculo, mas um
espetáculo interno, quis essa combinação”, explica Scorsese sobre a combinação
de grandes planos de paisagens e ação, com planos fechados de amor e abandono. Na coletiva do filme em Cannes, também estava presente o atual
líder dos Osage, Chief Standing Bear, que deu uma emocionada declaração. “Bem
no início da produção do filme perguntei ao Sr. Scorsese qual era a visão dele
sobre a história. Ele disse - vou contar uma história sobre confiança,
confiança entre Mollie e Ernest, confiança entre o mundo exterior e os Osage, e
a profunda traição dessa confiança. Meu povo sofreu muito e sofre até hoje as
consequências desses acontecimentos. Mas hoje posso falar em nome dos Osage que
Martin Scorsese e sua equipe restauram essa confiança e sabem que ela nunca
será traída”.
SCORSESE E SEUS DUPLOS Lily Gladstone, a Mollie de Assassinos da Lua das Flores, é
a grande força silenciosa e moral do filme, então Scorsese confiou a dois de
seus colaboradores mais habituais, Robert De Niro e Leonardo DiCaprio, o
contraponto. Não é a primeira vez que Scorsese reuniu De Niro (protagonista de
10 de seus filmes) e DiCaprio (presente em 6), mas é o primeiro longa com os
três juntos. Antes, em 2015, Scorsese fez um curta em ritmo de comédia, e
também uma espécie de comercial do gigantesco cassino Studio City em Macau,
intitulado The Audition. Nele, De Niro e DiCaprio interpretam a si
próprios e passam o tempo todo brigando, discutindo e ironizando um ao outro
enquanto buscam impressionar Scorsese na disputa pelo papel principal em seu
novo filme. Nada mais distante da realidade. Foi De Niro que falou de DiCaprio para Scorsese pela primeira vez.
Eles tinham acabado de trabalhar juntos em O Despertar de um Homem
(1993) e De Niro, sempre muito lacônico até com amigos de longa data, falou
maravilhas do garoto que tinha 18/19 anos à época. Oito anos depois, Scorsese
chamou DiCaprio, já famoso pós-Titanic, para fazer trio com Daniel
Day-Lewis e Cameron Diaz em Gangues de Nova York (2002). De Niro era e sempre será o alter ego mais perfeito de Scorsese.
São da mesma vizinhança, tem quase a mesma idade (o diretor é 9 meses mais
velho que o ator) e estão envelhecendo juntos. Foram intensos e iconoclastas em
sua primeira década de colaborações, desde Caminhos Perigosos (1973) a Rei
da Comédia (1982), passando por Taxi Driver (1976), New York, New
York (1977) e Touro Indomável (1980). Amadureceram com sangue nos
olhos em Os Bons Companheiros (1990), Cabo do Medo (1991) e Cassino
(1995). Após uma longa pausa, e agora ainda mais maduros, voltaram a
trabalhar juntos em O Irlandês (2019) e Assassinos da Lua das Flores (2023).
Se conhecem tanto que se entendem no olhar, em pequenos gestos e poucas
palavras. Já DiCaprio virou a nova cara etária – variando de 20 a 40 anos –
dos protagonistas das últimas duas décadas na filmografia de Scorsese. Foi o
jovem com sede de vingança em Gangues de Nova York (2002), o milionário
torturado em O Aviador (2004), o policial na corda bamba em Os
Infiltrados (2006), o delirante em Ilha do Medo (2010), o corrupto megalomaníaco
em O Lobo de Wall Street (2013) e o marido manipulador, apaixonado e
fraco em Assassinos da Lua das Flores (2023). A relação com Scorsese é
um misto de figura paterna e mestre, e DiCaprio é mais de conversar, entender
as motivações do personagem, mergulhar. De Niro e DiCaprio são as maiores personificações dos mundos
criados por Martin Scorsese. Um trio que produziu, sem forçar, uns 10 grandes
filmes – contando com Assassinos da Lua das Flores, obviamente – e que
brilham muito no alto da maravilha que é o cinema.
mais uma frila massa real pra querida revista monet, dessa vez sobre a franquia Missão Impossível e todos os desdobramentos na psiquê de Tom Cruise risos. acho sinceramente que é uma das franquias mais regulares em termos de qualidade. e ainda são pop com estilo, realismo e adrenalina com propósito. segue o texto.
CORRA ETHAN, CORRA A história de uma das franquias mais bem sucedidas da história é
retrato fiel da pulsão por adrenalina do produtor e astro Tom Cruise Já são 27 anos que Ethan Hunt corre sem parar. Às vezes para salvar colegas
de trabalho, noutras a si próprio, mas, quase sempre, para evitar o fim do
mundo mesmo. A princípio, o agente super secreto interpretado por Tom Cruise
teria apenas uma aventura, o primeiro Missão Impossível. Era também a
primeira aventura de Cruise como produtor. Mas o filme foi tão bem recebido
pela crítica e pelo público, e Cruise claramente se identificou tanto com o
personagem, que o filme de 1996 se multiplicou por anos a fio até chegar, em
2023, ao sétimo longa:Missão Impossível – Acerto de Contas, Parte 1 (a
segunda parte, só em 2025). O objetivo do primeiro filme da franquia era, em si, ambicioso ao
trazer para o mundo digital e fraturado pós queda do Muro de Berlim personagens
e conceitos criados durante a maniqueísta Guerra Fria (a série televisiva
original foi ao ar de 1966 a 1973, com um chorinho em 1988). Sai o ‘nós contra
eles’, entra ‘o inimigo está em todos os lugares’ ou ‘o inimigo é invisível’ ou
ainda ‘o inimigo somos nós’. Especialista em dualidades, máscaras e espetáculo,
o diretor Brian De Palma foi a escolha perfeita do produtor Cruise. De Palma estava numa fase boa, afinal de contas seu filme anterior, O
Pagamento Final (1993), é considerado até hoje um dos pontos altos de sua
longa carreira (que, entre outros, conta com clássicos como Carrie, Blow
Out, Scarface e Os Intocáveis). O diretor relembrou esse
período em uma entrevista para a Associated Press em 2020: “Em
meus 50 e poucos anos, fiz O Pagamento Final e depois Missão
Impossível. Não existe nada melhor do que isso. Você tem todo o poder e
ferramentas à sua disposição. Quando você tem o sistema de Hollywood
trabalhando para você, você pode fazer coisas notáveis”. Mas o diretor queria mais e junto com os roteiristas David Koepp (Jurassic
Park), Robert Towne (Chinatown) e Steve Zaillian (A Lista de
Schindler), e com o aval de Cruise obviamente, fez com que Missão
Impossível fosse também o funeral da série que o originou. É que o único
personagem comum a ambos, Jim Phelps, deixou de ser o líder ético da TV
(interpretado por Peter Graves) para ser um traidor cínico no longa (na pele de
Jon Voight). Os tempos mudaram e a IMF (Impossible Mission Force) agora possuía
uma nova face, a do desobediente e audacioso Ethan Hunt. Na mesma entrevista de 2020, De Palma confessa que o ator/produtor lhe
chamou para o segundo filme logo que o sucesso do primeiro ficou evidente. “Depois
de fazer Missão Impossível, Tom me pediu para começar a trabalhar no
próximo. Eu disse: 'Você tá brincando?' Um destes é suficiente. Por que alguém
iria querer fazer outro?’ Claro que a razão pela qual eles fariam outro é pelo
dinheiro. Nunca fui diretor de cinema para ganhar dinheiro, o que é um grande
problema para Hollywood”. Dinheiro é bom e Tom Cruise não é bobo, mas o que motivou o ator a
seguir como Ethan Hunt foi mais do que isso, foi uma identificação profunda com
o pragmatismo do agente secreto e sua incapacidade de ficar parado diante de
ameaças. E assim foi tentando achar novamente um diretor que atendesse às necessidades
aventureiras desse universo: John Woo aplicou suas coreografias e
câmeras lentas em Missão Impossível 2 (2000); J.J. Abrams, em seu primeiro
filme na direção, injetou drama e mostrou a intimidade do agente em Missão
Impossível 3 (2006); e Brad Bird, que era conhecido pelas animações Ratatouille
e Os Incríveis, colocou a IMF na berlinda em Missão Impossível
– Protocolo Fantasma (2011). Todos os diretores foram profissionais e
satisfatórios, e os filmes continuaram indo bem nas bilheterias, mas sempre
tinha algo faltando para o casamento durar mais.
Tom Cruise e Christopher McQuarrie
Então, para Missão Impossível – Nação Secreta (2015), Cruise
chamou outro diretor, mais um, o quinto em cinco filmes. Em meados dos anos
2010, Christopher McQuarrie não era estranho ao ator – foi roteirista de Operação
Valquíria (2008) e No Limite do Amanhã (2014), deu alguns pitacos no
roteiro de Protocolo Fantasma e o dirigiu em Jack Reacher (2012)
–, mas a química e a camaradagem entre os dois ganhou contornos especiais em Nação
Secreta. “Não há ego. E não existe um conjunto específico de regras além
daquelas que servem para entreter o público. Precisamos envolvê-lo em cada
instante do filme, então, de uma forma estranha, o público está conosco em cada
reunião de história, em cada exibição de teste, na sala de edição, no set. Isso
torna o processo muito democrático. Não se trata realmente de quem está certo e
quem está errado. É tudo uma questão de o que é certo para o público. Isso nos
permite eliminar conflitos”, afirmou McQuarrie em entrevista para o site
MovieMaker, em julho deste ano. Foi assim que Cruise convocou, pela primeira vez, um diretor para retornar
e ampliar seus corres como Ethan Hunt. E McQuarrie o fez de forma grandiosa em Missão
Impossível – Efeito Fallout (2018), até hoje a maior bilheteria da
franquia. A bem sucedida fórmula está toda lá – traições, perseguições, lutas
mano a mano, quase fim do mundo, etc –, mas McQuarrie e Cruise conseguiram
juntos criar um filme espetacularmente real ou realisticamente espetacular.
Tudo é feito diretamente para a câmera, com nada ou quase nada de efeitos
especiais, em palcos mais ambiciosos em termos de locações, veículos e
coreografias. Dessa forma, sob a direção de McQuarrie, o já folclórico
Tom-Cruise-é-o-seu-próprio-dublê ganhou contornos mais desafiadores e
perigosos. A dupla literalmente dobrou a aposta em Missão Impossível – Acerto
de Contas (Parte 1), afinal de contas um filme só não foi o bastante para
dar conta de um novo e assustador antagonista, a Entidade (nada menos que uma
Inteligência Artificial que ganha consciência própria e passa a ser disputada
por grandes nações/organizações por seu controle). Na sétima aventura de Ethan
Hunt, velhos amigos retornam (Ving Rhames e Simon Pegg), bem como o mais
recente amor/parceria (Rebecca Ferguson), uma nova colega chega por acidente
(Hayley Atwell), um antigo chefe problemático dá as caras (Henry Czerny) e os vilões
da vez se mostram particularmente poderosos (Esai Morales e Pom Klementieff, a
serviço da Entidade). Todos a serviço do espetáculo e do público, como bem
gosta Tom Cruise. “Ele realmente reconhece que é uma estrela de cinema porque as pessoas
gostam de seus filmes, e não o contrário”, afirmou Doug Liman, que o dirigiu em
No Limite do Amanhã, em matéria no Washington Post. “Não é como se ele
fosse o escolhido. Ele genuinamente se preocupa com o público e em dar-lhes de
volta o valor do dinheiro gasto”. Saltar de um penhasco dirigindo uma moto e depois abrindo o paraquedas
é um dos retornos altamente satisfatórios que Cruise dá a seu público nesta
primeira parte de Acerto de Contas (e foi o mais divulgado, vários meses
antes do lançamento nos cinemas). É também apenas o início de mais uma
sequência eletrizante a bordo de um trem (como no Missão Impossível que
deu origem a tudo). Com a parte 2, a luta de Ethan Hunt contra a Entidade terá
seu desfecho, mas seu compromisso profissional em salvar o mundo quantas vezes
for necessário não tem previsão de fim. Falando recentemente sobre a longevidade de Harrison Ford em uma
entrevista para o Sydney Morning Herald, Cruise afirmou que “Harrison Ford é
uma lenda; espero continuar indo como ele. Tenho 20 anos para alcançá-lo.
Espero continuar fazendo filmes Missão Impossível até ter a idade dele”.
E solta aquele sorrisão confiante e orgulhoso de quem tem certeza que nada,
pelo menos pra ele, é impossível.
logo abaixo, o making of da impressionante sequência do pulo de moto sobre um enorme penhasco seguido de um salto da moto com paraquedas. o tanto de trabalho para uma sequência, que é curta no filme, é uma coisa de outro mundo.
minha história de colaborações com a revista piauí começou em 2009, sempre ali na seção 'esquinas'. não foram muitos textos, mais por culpa minha mesmo, pois nas idas e vindas dos trabalhos mais fixos demorava pra achar uma pauta com a cara da seção. foram 5 textos publicados, sendo que o último em 2018, pouco antes do nascimento da minha filha. teve também um sexto, lá em 2012, que acabou caindo aos 47 do segundo tempo (acho que é o meu preferido, o do bingo erótico em santos).
ano passado voltei a mandar pautas e depois de algumas tentativas falhas finalmente emplaquei mais uma. era a história de uma lendária descida de carrinhos de rolimã na Penha, em São Paulo (fiquei sabendo dessa história via um grande amigo, Daniel Almeida, que falou sobre rolimãs em programete que fazia para a Rádio Eldorado). fui lá ver os carrinhos em um domingo de abril e depois mandei o texto. passou um mês, passou outro e mais outro, e acabou caindo (mas também foi pago como o outro não publicado).
segue então o texto em sua íntegra e sem edição extra.
VELOZES & FAISCANTES
Um grupo de garotões de meia idade procura manter viva a tradição
dos carrinhos de rolimã
Domingo parado na esquina das ruas Conceição Pereira com Mirandinha, no
bairro paulistano da Penha. De um lado, um mercadinho de doces abre as portas
pós almoço. O relógio passou um pouco das 14h. Do outro, a Padaria e
Confeitaria Mirandinha só tem mesas vazias como espectadoras da programação
dominical na TV. Mas o silêncio de cidade do interior é quebrado por batidas de
martelo. “Tá quase pronto aqui”, grita Aurélio pregando mais um pouquinho uma
das rodas de seu carrinho de rolimã. Trabalhador na construção civil, 38 anos, Aurélio Nascimento é um dos
participantes mais frequentes da descida da Rua Conceição Pereira, um lugar de
encontros, velocidade e faíscas de rolamentos desde o final da década de 1970.
“Pronto!”, grita Aurélio para ninguém. “Não esqueço nunca da primeira vez que
desci de carrinho de rolimã. Foi em 1995, por ali. Você se sente livre, não tem
como explicar a adrenalina. Só descendo, só descendo. É muito bom sentir aquele
vento batendo no rosto. Parece que você tá voando”, e vai se dirigindo para
reunir o seu aos outros carrinhos desse domingo. “Acho que vão ser uns dez hoje. Essa tem sido a média ultimamente. Mas
no passado, no auge da Conceição Pereira, que foi ali de 1995 a 1998, chegavam
a ter uns quarenta ou cinquenta. E muita gente assistindo nas calçadas”, diz
Thiago Mendes, 37 anos, gasista industrial e um dos organizadores do evento que
sempre fez questão de ser informal. Nove carrinhos se reuniram naquela tarde
nublada e ligeiramente fria de abril - o que seria o quinto encontro desde o
início de 2023. Então, ao lado da padaria, encosta um Onix prata e seu dono, William,
desce e abre o porta malas. William já desceu muito a Conceição Pereira, mas
machucou joelho jogando bola e agora anda receoso. Ultimamente se contenta em
ajudar os amigos levando os carrinhos até o alto da rua. Mas quem entra no
porta malas é Parmalat, nascido Leandro, vistoriador de seguradora, 38 anos. É
ele quem fica de pernas para fora e puxa de três em três carrinhos, um em cima
do outro.
Enquanto os carrinhos vão subindo, cada um a seu tempo, quatro olheiros
se posicionam em pontos estratégicos da descida. Um fica na Rua Caracol e outro
na Rua Maria das Dores, atentos a carros que possam querer entrar na Conceição
Pereira, e outros dois ficam na Rua Mirandinha, onde os carrinhos chegam
girando e faiscando para conseguir parar. Tudo quase pronto. Ainda faltam
alguns subirem. “Minha primeira vez foi aqui mesmo, acho que em 2005. Moro pertinho e
vim com um amigo fazer uma filmagem de uma descida. Eu pilotava a moto e ela
fazia a câmera. Meu pai, Seu Mário, já descia, ele é da primeira geração. Ele é
que fornecia rolimã pra todo mundo na época dele e fazia carrinhos também.
Quando fui crescendo passei a ajuda-lo. Nunca desci com ele, a única coisa que
ele me falava é que era perigoso, mas a primeira vez foi com um carrinho dele”,
diz Thiago com o pé em cima de um dos cinquenta que ele próprio fez. A maioria
foi doada pra molecada do bairro, mas o último foi feito especialmente para o
seu filho mais novo, Wilson, de 7 anos.
Thiago chegando na Mirandinha
“Nesse dia da filmagem criei coragem e subi a ladeira. O carrinho que
peguei do meu pai era pesado pra caramba, acho que a madeira era cambará. Aí eu
desci. O coração veio na boca, a boca ficou seca, aí já era e você quer descer
de novo e de novo e de novo. No mesmo dia comecei a fazer meu próprio carrinho,
mais leve né. Fiz com madeira de cedrinho, faço até hoje assim, como é até hoje
a sensação de adrenalina, não muda”, completa Thiago que tem sua atenção
desviada para alguém acenando. O grid da primeira descida está completo. A descida em si tem cerca de 400 metros e os carrinhos chegam de 50 a
70 km/h, velocidade aferida por motos que, vez ou outra, descem em paralelo
para filmar. As rodinhas de rolamento, ou rolimãs, são um pouco mais lentas e
barulhentas, enquanto as de skate são mais rápidas e silenciosas. Descem um,
dois, três, quatro, nove carrinhos, com todos os participantes deitados de
barriga pra baixo. Essa é a tradição da Conceição Pereira, mas pela história
não escrita e muito menos documentada do rolimã no Brasil, o mais comum sempre
foi descer sentado. Existem relatos de carrinhos desde a década de 1940
descendo pelas calçadas de São Paulo, mas a popularização aconteceu mesmo a
partir da década de 1950 com mais ruas asfaltadas e carros mais acessíveis (os
rolamentos vinham das caixas de câmbio). Mas um pedacinho da história do rolimã no Brasil segue acontecendo aos
trancos e barrancos nesse cantinho da Penha. Aurélio, Thiago e Parmalat já
apareceram por aqui. Faltam o jovem empresário Danilo, 30 anos, acompanhado da
namorada e amigos; o comerciante Nani, 42, o único de óculos escuros; o também
comerciante Anderson, 45, que fez questão de soletrar o sobrenome Braun para
não escreverem errado; o representante comercial Paulo, 49, e seu carrinho de
três eixos com rodas de silicone que já desceu parte da Rodovia Imigrantes a
120 km/h; Zé Luiz, 60, que vende roupas femininas na Feirinha da Madrugada; e,
por último, Dema, 62, que gosta de participar de eventos de rolimã para família
promovidos pela Mulek de Rua, marca de street wear do bairro do Ipiranga. A idade
média nesse domingo na Conceição Pereira é 44,5 anos e tem se mantido assim nos
últimos tempos.
Aurélio e Zé Luiz
“Pois é, hoje tenho meus 60 anos e desço desde 1978. É que o esporte me
rejuvenesce, e no rolimã continuo sentindo essa adrenalina só que com a cara a
5 cm do chão. É um barato”, diz Zé Luiz Ojuara, que também pratica BMX e skate long board.
Mas poucos o veem descer naquela tarde de domingo, talvez umas vinte pessoas
distribuídas pelas calçadas e portões de casas. “Tinha
muito mais gente assistindo quando o asfalto era uma porcaria, cheio de buracos.
E mais carrinhos também”, lamenta Thiago. “Depois dessa lombada, que a
subprefeitura colocou aqui no final do ano passado, desanimou geral. Ficou um
pouco mais perigoso porque o carrinho joga mais para o lado quando passa por
ela, dá um tranco maior. E aí como todo mundo é um pouco mais velho, a gente
fica com medo de se machucar. A recuperação agora demora”.
A lombada da discórdia foi colocada no final do percurso da Conceição
Pereira, entre as ruas Maria das Dores e a Mirandinha. “Alguns moradores daqui
avisam a subprefeitura. Sempre teve isso, essa falta de diálogo. Aqui já teve
valeta rebaixada, paralelepípedo, já teve de tudo nessa rua, tudo pra impedir o
carrinho. Antes dessa lombada a gente chegava mais rápido, mas com mais
controle”, e, logo após terminar a frase, Thiago vê o jovem Danilo chegar mais
rápido que o normal e quase atropelar umas cadeiras de plástico da casa de
espetinhos que está prestes a abrir. Tudo certo, segue o jogo. Mas quando o relógio bate 16h, as descidas começam, pouco a pouco, a
perder corredores. Era dia do primeiro dos dois jogos da final do Campeonato
Paulista:
Palmeiras, time predominante no bairro, e Água Santa. Ao total, em quase
duas horas, foram sete descidas e nenhum acidente, eixo quebrado ou roda solta.
“Antes fazia 3, 4, até 5 carrinhos no sábado pra molecada correr no domingo. Hoje
quase não faço mais. A criançada não liga mais, só querem saber de celular e
videogame. Você não vê mais brincadeira na rua. A tecnologia veio e acabou com
tudo e acho que isso é um caminho sem volta. Acho que somos a última geração de
rolimã, pelo menos aqui na Conceição Pereira”, diz Thiago sem parecer triste. É
fato. Às 17h o domingo está oficialmente encerrado para os carrinhos. Não com
uma explosão de premiações, e mais como um suspiro mesmo. Na Rua Mirandinha,
onde pouco tempo atrás os rolimãs faiscavam o chão para parar, algumas famílias
e casais se dividiam pelas mesas de plástico de dois bares de espetinhos
concorrentes para assistir ao jogo. O Água Santa, que é de Diadema, ganhou de 2
a 1 do Palmeiras. O tempo continuou nublado e uma leve onda de frio baixou
naquele fim de tarde na Penha de França.
EPÍLOGO De abril a novembro deste ano de 2023, a descida de rolimãs na
Conceição Pereira só aconteceu mais duas vezes. “O pessoal desanimou por conta
da lombada. Já não querem mais ficar arrumando a rua toda vez pra descer. Eles [a subprefeitura da Penha, os vizinhos] ganharam”,
atualiza Thiago, que segue a vida entre o trabalho e a família.