domingo, 23 de agosto de 2009

denise fraga, bertolt brecht e a comédia humana

nessas lacunas que a gente tem na vida, o teatro é uma das minhas. só passei a frequentar aqui em são paulo e já "velho", meio que no meio da faculdade, final da década de 1990. tive algumas experiências maravilhosas com o xpto (buster, por exemplo, que lindeza que foi), o oficina (cacilda! e boca de ouro), felipe hirsch, grupo galpão, tapa, gabriel vilela, gerald thomas, etc - nunca rolou antunes filho. mas já faz uma cara que não vou por causa dos preços altíssimos e da preguiça de toda a trabalheira que dá. enfim, lacunas.

uma das peças que tive vontade de ver (mas não fui) nos últimos tempos foi
a alma boa de setsuan, montagem produzida pela atriz denise fraga que voltou recentemente aos palcos paulistanos depois de uma turnê nacional. a estreia foi em setembro do ano passado e fiz uma reportagem pra revista voetrip (editora spring). segue.

denise em foto de joão caldas

DE ALMA LAVADA

O palco está montado, aberto e bem iluminado. Assim, aos poucos, a platéia vai se acomodando com suas câmeras, microfones, gravadores, blocos e canetas. Não demora muito e o terceiro sinal soa dentro da cabeça de alguém. Só pode. Já que todos aparecem de uma vez para sentar nas doze cadeiras dispostas sobre o tablado. Todos são o elenco e o diretor de uma nova montagem de A Alma Boa de Setsuan, peça do renomado dramaturgo alemão Bertolt Brecht, que começa sua turnê em São Paulo. De repente alguns câmeras falam alto - “Mais pro meio! A luz, Denise!” – e a atriz Denise Fraga ri e pula de uma cadeira para a outra até chegar na luz certa. Todos estão felizes e tem início a coletiva de imprensa.

“Não escolhi fazer Brecht por queria provar que posso fazer Brecht, e sim porque na hora que li Setsuan pensei: ‘caramba, quero falar isso aqui!’, ‘quero dizer que acho isso pra caramba!’. Acho que você tem que aproveitar a comunicação que tem... dããã... como ator famoso para falar o que te interessa. É uma felicidade infinitamente maior tocar projetos que sejam a sua voz”. Divertida, acessível e tímida em carne e osso, Denise Fraga é um dos muitos talentos nacionais que surgiram na década de 1980. Fez TV Pirata e por seis anos interpretou a desastrada empregada Olímpia na peça Trair e Coçar é Só Começar, além de novelas (Barriga de Aluguel, por exemplo), minisséries (O Auto da Compadecida e a recente Queridos Amigos), cinema (Boleiros 1 e 2) e quadros de muito sucesso no Fantástico (Retrato Falado). E mesmo com todo este sucesso foram necessários cinco anos para concretizar o sonho de um Brecht para chamar de seu. Mas do que se trata Setsuan?

Escrita em 1941 e montada dois anos depois - durante o exílio do escritor nos Estados Unidos por causa da perseguição aos judeus na Alemanha nazista -, A Alma Boa de Setsuan é uma parábola moral ambientada em uma China mítica. Três deuses, transformados em um nesta montagem, descem à Terra em procura de pelo menos uma alma boa. Logo descobrem ser uma tarefa das mais complicadas, mas acabam encontrando a bondosa prostituta Chen Tê e lhe dão uma bela recompensa. Mas o povo de sua província (Setsuan, centro da China) começa a abusar de sua boa vontade e ela precisa criar/interpretar um primo, Chui Ta, para conseguir dizer “não”. É aí que as trocas de personagens e confusões começam, com direito a uma gravidez inesperada e um julgamento. Setsuan, aliás, foi a primeira peça de Brecht a ser montada profissionalmente no Brasil há exatos 50 anos.

“A gente quis provar, mais uma vez, que Brecht é divertido porque acredito no humor como filosofia de vida. O humor é um jatinho. É um veículo rápido. Você pode enfiar a faca no coração do sujeito e deixar ele às gargalhadas. Assim ele leva para casa a questão que você coloca. Essa peça tem isso. É muito legal ver as pessoas pegando uma discussão ética de uma maneira divertida. O negócio é divertir e dar assunto para o jantar”. Todos riem e Denise Fraga se pergunta, como todos do elenco que ainda conta com Ary França, Cláudia Mello e Joelson Medeiros, se nos dias de hoje é preciso ser duro para conseguir as coisas. “Hoje a gente não dá mais a mão com medo que nos tomem o braço. Sendo que, às vezes, só a nossa mão já faria muita coisa”.

Pouco antes de todo o elenco apresentar seus personagens, o diretor Marco Antônio Braz acrescenta novas camadas ao afirmar que “quando lemos essa peça vimos que ela funciona metaforicamente sobre a dualidade humana, o bem e o mal, e até sobre como o Estado trata questões sociais”. Mas não se agüenta e torna pública a admiração pelo trabalho da atriz. O elenco todo faz um “oooh!” carinhoso e Denise Fraga, sinceramente envergonhada, agradece. Então a coletiva volta ao rumo com o eterno questionamento sobre se a atriz se sente estigmatizada por ser mais conhecida como comediante.

Denise Fraga, que por pouco não foi aeromoça, nem espera a bola quicar no chão. “Isso nunca me incomodou porque sempre fiz muitas coisas dramáticas fora do circuito televisivo. Adoro essa mistura porque na vida não existe divisão. Está tudo junto e é essa linha tênue que separa a comédia do drama que é o melhor terreno para o ator. Esse escorrega de emoções é o meu caminho”. E vai além ao louvar seus parceiros de elenco e, conseqüentemente, o teatro de grupo. “Eles também pensam, como eu, que somos um todo que tem que funcionar para essas pessoas que vêm nos assistir”. O público e o teatro, este ser sagrado para os atores, agradecem tamanha disponibilidade, mas Denise sente tudo isso muito mais profundamente.

“Estou me sentindo emocionada por esse retorno ao lar. Quando entrei na escola de teatro, quando pensava no queria ser, te juro que minha rotina imaginária era essa aqui. Porque o nosso trabalho... olha, pra quem gosta é muito bom, mas pra quem não gosta, é chato pra caramba! Tô falando demais, né?”. Imagina, o palco é seu.

2 comentários:

Unknown disse...

1966, setembro. Teatro Maria Della Costa, Rua Paim, encostada na Avenida 9 de julho. Um jovem do interior embasbacado pela fantástica atriz. Peça: A alma boa de Set-Suan, Brecht. O mundo é generoso. Subo a Paim e entro na kitchenette do Demoiselle. O mundo parece pequeno a meus pés.
Djalma.

Dafne Sampaio disse...

poxa, que bela história, djalma. cê viu então a maria della costa como a alma boa... que jóia. deu mais vontade de ver essa montagem. muito obrigado por compartilhar a lembrança.