A HORA E A VEZ DO RAP NORDESTINO
Uma das muitas coisas boas da democracia digital é que
produção de qualidade (se é boa ou ruim de fato é outra história) não é mais
sinônimo de ter que se mudar de mala e cuia para o Eixo Rio-São Paulo. Daí que
mais gente, vozes e sotaques são ouvidos, principalmente em um país tão grande
e diverso como o nosso, e todo mundo sai ganhando, pode acreditar. Mas por
exemplo, o rap é um dos gêneros musicais que vem amadurecendo mais rapidamente
no Brasil e na última década uma nova geração apareceu com força (Emicida,
Lurdez da Luz, Criolo, Kamau, Ogi, Savave, Karol Konká, tanta gente). E é
interessante de ver e ouvir que o Nordeste também vem contribuindo para esse
amadurecimento.
Lembro agora de memória dos pernambucanos Zé Brown e Inquilinus (mas acho que o grupo
acabou), dos cearenses RAPadura Xique-Chico (ver e ouvir video abaixo) e Costa a Costa e dos baianos Risco
88 e OQuadro, mas tem gente
da Paraíba,
do Rio Grande do Norte, etc. No
entanto, a deixa para essa coluna foram os lançamentos do disco de estreia
d’OQuadro e das primeiras músicas do trabalho solo de Don L, o
principal vocalista do Costa
a Costa.
Comecemos com Don L, que já no Costa a Costa se mostrava um
rimador diferente com jeitão de produtor e atento para sonoridades não usuais
no rap nacional. Vida Premium é o
nome de seu disco solo e dele saíram “Enquanto acaba” (com base de piano jazz,
citação a Chico Buarque e participação da brasiliense Flora Matos) e “Cafetina
seu mundo” (mais pesada, pop e com letra bastante atual).
“Perguntar o que tem do Ceará na minha música é perguntar o
que tem do Ceará em mim. Tenho certeza de que encontrarão a alma de um cearense
na minha música e acho mais interessante do que um chapéu de palha. No Criolo,
por exemplo, que é filho de cearenses, percebo uma melancolia tipicamente
cearense nas letras, uma coisa que você pode ver nos primeiros discos do
Belchior por exemplo. Não sei se tenho isso. Talvez sejam outras
características cearenses, as minhas. Não sei dizer. Sei que não forço. Não me
importo. Me interesso por coisas do mundo todo, tanto quanto, ou até mais do
que me interesso por coisas do Ceará. Por que motivo não poderia? Sou um
cidadão do mundo. Agora uma coisa que não posso deixar de ser é cearense. Isso
eu sempre serei, com todo prazer e orgulho”, disse Don L em conversa por email.
Já quando questionado sobre o que existe de Bahia no rap
d’OQuadro, o baixista Ricardo Santana, ou Ricô, falou que “olhamos pro mundo a
partir daqui, afinal é o lugar onde moramos. É a maior concentração de negros
do mundo depois da África. É um estado onde a cultura pulsa numa diversidade
infinita de ritmos, passando pela literatura, teatro, cinema e etc. Somado a
isso temos grandes problemas sociais que se refletem nas desigualdades, na
violência, nos lamentos e nas formas de celebrar desse povo. E tudo isso nos
influencia direta ou indiretamente. Seria impossível afirmar que não sofremos
influências de nomes como Os Tincoãs, Edgar Navarro, Adonias Filho, dentre
outros tantos. As influências são muitas, mas não nos limitamos a elas. Na
verdade não há fronteiras pra arte e hoje em dia grandes artistas podem surgir
dos lugares mais improváveis, surpreendendo a todos e quebrando estereótipos.
Mas cada estado, cada cidade, tem o seu contexto. Eles versam sobre as verdades
deles, nós cantamos as nossas.”
Em ambos os casos, as raízes são importantes, mas não podem
e nem devem prender. E o excelente disco OQuadro tem seus pés firmes no rap (tem participação de Lurdez da Luz, por exemplo), mas com rimas que ganham novos sentidos ao som de
dub, samba, ijexá, afrobeat, jazz, afrosamba e o diabo a quatro. Essa
multiplicidade (liberdade) de sonoridades, misturas, diálogos e sotaques de
grupos ou artistas estão fazendo do Nordeste um dos lugares mais férteis para o
rap brasileiro. Afinal, em se rimando, tudo dá.
p.s. 1: OQuadro é formado pelas vozes de Rans, Freeza e Jef,
o guitarrista Rodrigo Dalua, o baixista Ricô, o baterista Victor Santana e o
percussionista Jahgga.
p.s. 2: toquei no assunto da democracia digital em outro
texto do Yahoo, “Faça você
mesmo”.
esses papos com don l e ricô aconteceram no facebook e por email. seguem abaixo outras perguntas e respostas que não entraram no texto do yahoo.
DON L
qual a diferença do rap do don l? existe essa preocupação
(em soar diferente)? e qual a diferença entre teu trabalho solo e no costa a
costa?
não existe essa preocupação porque não existe esse problema.
eu faço música pensando num conceito de álbum, em termos de produção e em
termos de ideias sobre as quais quero falar. na verdade faço as músicas
muito no instinto, só depois que tenho algumas prontas cai a ficha do álbum, do
conjunto da obra. daí pra frente as coisas ficam mais claras, e as músicas vêm
mais ainda dentro do conceito que começa a se desenvolver pro disco na minha
cabeça. mas é muito natural porque a música é só uma forma de expressar
minha busca e minhas experiências com o mundo, comigo mesmo, e a relação entre
as duas coisas. minhas aspirações, meus amores, meu ódio. minha versão da vida em
2012. na mixtape do costa a costa, em 2007, o momento era completamente
diferente. mesmo musicalmente, se em 5 anos você não vier completamente
diferente, não é verdadeiro, você parou no tempo, ou tá tentando repetir uma
fórmula. eu não uso livros de receita.
o que você acha do rap feito fora do eixo rio-sp? como você
se encaixa nele? o que tem de mais interessante?
acho que não existe mais
uma característica de escola de acordo com o local de onde vem a música. as
diferenças que você pode classificar por cidade, são muito mais mercadológicas.
mas se a música que você faz tem o que ela precisa ter pra estar entre o que é
considerado relevante e influente nacionalmente ou até internacionalmente, mais
cedo ou mais tarde ela vai chegar a esse ponto. acho que nesse momento sou um
artista relevante e influente pro rap brasileiro. mas isso não quer dizer
retorno financeiro. quer dizer que você
conseguiu alguma visibilidade por mérito do seu trabalho. hoje você pode chegar
a esse ponto sem ir pro eixo. a partir daqui, a partir desse ponto, já é outra
história. gosto muito de flora matos que é de brasília, e karol konká que é de
curitiba, mas estão no sudeste agora. alguns que considero promessas são
gasper, de goiânia, zudzilla, de pelotas, e risco 88 de salvador. mas tem
muitos outros, não sou o cara mais bem informado, tô muito concentrado no meu
próprio disco a um bom tempo.
RICÔ (OQUADRO)
qual a diferença do rap d'oquadro? existe essa preocupação
(em soar diferente)?
o rap é um gênero musical onde cada artista, cada grupo, faz de seu jeito, de acordo com suas experiências de vida, com suas influências
e referências culturais. isso torna o rap rico e diversificado. com oquadro,
ainda podemos somar o fato de ser feito com instrumentos convencionais, o que
torna, naturalmente, o nosso rap mais orgânico. mas nada disso foi premeditado
ou programado para soar diferente. nossa música é resultado dos recursos e dos
acessos que tínhamos até então. hoje, depois da obra pronta, podemos perceber
nessa estética que criamos uma série de conceitos interessantes. mas tudo isso
vem acontecendo espontaneamente.
o que você acha do rap feito fora do eixo rio-sp? como vocês
se encaixam nele? o que tem de mais interessante?
quando começamos a nossa caminhada, ainda enquanto
adolescentes, lá pelos meados dá década de 90, os únicos grupos que faziam rap
e que tínhamos acesso no brasil, eram do rio, são paulo e de brasília. agora
estamos no século 21, onde as informações estão aí pra quem busca. grandes
artistas podem surgir dos lugares mais improváveis, surpreendendo a todos e
quebrando estereótipos. agradecemos a mrn, câmbio negro, athalyba e a firma e
etc., por nos influenciarem. a identificação foi e sempre será muito grande.
mas, cada estado, cada cidade tem o seu contexto.