uma das minhas obsessões desse ano foi o documentário the act of killing, de joshua oppenheimer. achei duas versões nos torrents da vida - a mais recente com cerca de meia hora a mais -, vi e revi inúmeras vezes, absolutamente assombrado com a história e com o corajoso formato do filme (não foi a toa que dois grandes cineastas, errol morris e werner herzog, entraram como produtores executivos do filme). nesse texto que fiz pro yahoo toquei em algumas das muitas discussões levantadas pelo filme, mas tem mais, muito mais...
O MAL, ESSE BANAL
Impressionante como as pessoas não percebem o tanto de maldade que carregam por aí. Recentemente, o assassinato de MC Daleste durante uma apresentação em Campinas gerou uma enormidade de comentários do tipo “tem que morrer mesmo!” (por ser funkeiro ou por ter feito proibidões no passado ou por ser da periferia, ou por tudo). Claro que nem todos que falaram coisas assim na internet são assassinos em potencial, mas só o fato de darem tão pouca importância para uma vida, qualquer vida, é um sinal alarmante de que a coisa não anda nada bem. Porque a história é a seguinte: se você acha que outra pessoa deve morrer é porque você não a considera igual. É menor, não é gente como você, não é nem gente.
Lembrei-me dessas reações à morte de Daleste ao assistir,
entre calafrios e assombros, o documentário The
Act of Killing (2012). Em cartaz nos Estados Unidos, Holanda, França e
Reino Unido (e espero que saia pelo menos em DVD ou VOD aqui; caso contrário só
nos torrents),
o extraordinário longa de Joshua Oppenheimer é uma porrada na cara e logo de
início dá a letra de sua proposta perturbadora.
“Em 1965, o governo da Indonésia foi deposto por militares.
Qualquer um que se opusesse à ditadura militar poderia ser acusado de ser
comunista: sindicalistas, agricultores sem terra, intelectuais e chineses. Em
menos de um ano, e com a ajuda direta de governos ocidentais, mais de 1 milhão
de ‘comunistas’ foram mortos. O exército usou grupos paramilitares e gangsters
para darem conta da matança. Estes homens estão no poder e perseguem seus
oponentes desde então. Quando nos encontramos com os assassinos eles contaram,
com orgulho, histórias sobre o que fizeram. Para entender o porquê pedimos a
eles que criassem cenas sobre os assassinatos do jeito que bem entendessem. Este
filme segue este processo e documenta suas consequências”.
Os assassinos de 1965 estão hoje com pouco mais ou menos de
60 anos. Todos pais, avôs, religiosos, geralmente fanfarrões, ocasionalmente
carinhosos e absolutamente normais como Anwar Congo, o personagem central do
filme. Durante as pouco mais de duas horas de The Act of Killing, Anwar e outros colegas e amigos fantasiam o
passado sangrento de seu país a partir de clichês do cinema hollywoodiano, de
musicais a faroestes, de filmes de guerra a policiais (na verdade, mantém a
versão oficial da luta dos justiceiros do bem em nome da ordem militar contra
os comunistas maus). Ao mesmo tempo, nos bastidores e em conversas entre si,
são confrontados com a própria crueldade e violência que protagonizaram naquele
tempo (alguns mataram centenas com as próprias mãos).
“Se conseguirmos fazer esse filme [com realismo] o que vai
acontecer é que vamos acabar mostrando que na verdade nós é que fomos os cruéis
e não os comunistas. (...) É uma questão de imagem”, diz Adi Zulkadry, outro
personagem importante do filme e o mais brutalmente consciente dos crimes do
passado (“Matar é algo rápido. Depois é só se livrar dos corpos e voltar pra
casa”). Fala que não se sente culpado porque “crimes de guerra” são definidos
pelos vencedores e ele é um vencedor, portanto ele pode criar a definição que
achar melhor.
Anwar Congo não consegue mais manter a frieza de outrora e
com o decorrer das filmagens vai se abalando com a lembrança de tanto sangue
nas mãos. Confessa que tem pesadelos recorrentes e teme os espíritos dos mortos
e os olhares de suas vítimas. Diz que teve que matar, que foi sua consciência
que o mandou, e não consegue explicar mais nada. Engasga, quase vomita.
“Acho que ao se identificar com Anwar, o espectador é
forçado a ser confrontar com o fato de que estamos mais próximos de ser
assassinos do que gostamos de acreditar”, disse o diretor Joshua Oppenheimer em
entrevista ao site Inside
Indonesia.
Anwar Congo, Adi Zulkadry e outros personagens de The Act of Killing mataram milhares na
Indonésia por razões distintas. Uns foram em busca de poder financeiro e/ou
político, uns por puro sadismo, e outros obedecendo a ordens superiores
(seguindo a teoria da “banalidade
do mal” de Hannah Arendt), para ficarmos apenas em alguns exemplos. Mas
todos consideravam que os assassinados não eram gente o bastante para viver.
Não eram nem gente. Eram exatamente o contrário deles, pessoas normais.
Epílogo jornalístico
Em determinado momento do documentário surge a figura de
Ibrahim Sinik, editor do maior jornal do norte de Sumatra (a maior ilha da
Indonésia) e amigo de políticos poderosos de ontem e hoje. Sobre seu papel como
imprensa nos sangrentos eventos de 1965 e 1966 diz que coletava informações e
comandava interrogatórios. “Independente de qualquer pergunta que fizéssemos, a
gente mudava as respostas pra fazer com que eles parecessem maus. Como jornalista
meu trabalho era fazer com que as pessoas odiassem eles [comunistas]”, relembra
e logo completa, sem disfarçar certo orgulho, que bastava uma piscadela sua
para que o interrogado da vez fosse levado para o matadouro de Anwar Congo
& Cia.
Moral dessa história? Toda imprensa que está aliada ao poder
(situação, oposição ou iniciativa privada) e não aos seus leitores se comporta
da mesma forma.
p.s.: Para quem lê em inglês vale muito a pena
encarar “The Murders of Gonzago - How did we
forget the mass killings in Indonesia? And what might they have taught us about
Vietnam?”, texto de
Errol Morris, diretor do oscarizado Sob a
Névoa da Guerra (2003) e um dos produtores executivos de The Act of Killing. Mais um
destaque para a ótima entrevista em vídeo
da Vice com Morris e outro entusiasmado produtor executivo do documentário,
o cineasta Werner Herzog, de O Homem Urso
(2005).
Nenhum comentário:
Postar um comentário