quarta-feira, 23 de março de 2011

uma breve história do cordel

ano passado, o pessoal da voetrip me pediu um texto sobre a história da literatura de cordel, mas acabou não sendo publicada (ainda, acho, me perdi dessa história) porque tiveram problemas para ilustrar a matéria. não acharam imagens legais o bastante ou coisa assim. paciência. na internet esse problema é facilmente contornável.

UMA PELEJA SEM FIM

A história da literatura de cordel é antiga, longa e cheia de personagens. Também é repleta de reviravoltas, duelos e lacunas. Sabe-se que o hábito de registrar histórias orais em folhetos, expostos em varais nas feiras populares, veio junto com os colonizadores portugueses por volta do século 17. Foi só chegar ao porto de Salvador para essa arte se espalhar rapidamente pelo Nordeste brasileiro, terreno fértil para contações de histórias. No entanto, por causa da falta de documentação e de reconhecimento dos eruditos de nossa língua, existe um vazio muito grande sobre essa alvorada da literatura de cordel no país, mas é certo que os primeiros nomes a ficarem conhecidos surgiram somente na segunda metade do século 19.

A razão está na chegada de máquinas de tipografia/impressão mais acessíveis, o que, consequentemente, fez com que os folhetos se espalhassem em maior quantidade e velocidade (bom lembrar que o Brasil foi o último país das Américas a ter uma imprensa própria). Como se vê, a democratização da tecnologia foi tão favorável ao surgimento da literatura de cordel como a conhecemos quanto ao seu renascimento no início do século 21 através da internet. Entre uma ponta e outra dessa saga, muitas brigas de faca, deboches, trava-línguas, mensagens educativas, Deus e o Diabo nas terras do Sol.
De Recife para o mundo

Justiça seja feita. Se, no final do século 19 e início do século 20, Recife foi a cidade responsável por milhares de folhetos soltos pelos ventos e veredas do semi-árido nordestino, foram dois paraibanos os responsáveis por sua produção. Primeiro, Leandro Gomes de Barros (1865-1918), que não só escreveu muitos cordéis como editou outros tantos e criou uma importante rede de agentes distribuidores de sua sofisticada poesia popular. Depois veio João Martins de Athayde (1880-1959) que comprou o projeto editorial de Leandro, à deriva após sua morte precoce, e o ampliou ainda mais, só que privilegiando folhetos de humor e pelejas. A partir do sucesso dessas duas empreitadas em Recife, outras pólos surgiram, tais como Juazeiro do Norte (CE), João Pessoa (PB), Caruaru (PE) e Belém (PA).

Foi nesse período que se consolidou a forma literária mais conhecida do cordel, a sextilha, modalidade com o segundo, o quarto e o sexto versos rimando entre si, deixando o primeiro, terceiro e quinto sem rimas. Um exemplo clássico da sextilha pode ser lido nessa estrofe: “Meu avô tinha um ditado / meu pai dizia também: / não tenho medo do homem / nem do ronco que ele tem / um besouro também ronca / vou olhar não é ninguém”. Um mundo novo se abre quando o cordelista descobre que a sextilha pode ser escrita de cinco modos diferentes, isso sem falar em variações na métrica e em outros estilos de cordel com cinco, sete ou dez versos por estrofe. Prova irrefutável de que é preciso saber muito, principalmente em termos de repertório e vocabulário, para entrar na brincadeira.

Falando em brincadeira, as xilogravuras só passaram a ilustrar as capas dos cordéis a partir da década de 1950 como uma alternativa ao poeta mais pobre, que não podia pagar um desenhista, para ilustrar seu folheto. Com desenhos rudimentares e sintéticos talhados em matrizes de madeira, as xilogravuras logo se tornaram item obrigatório e essa combinação caiu ainda mais no gosto popular. Já o termo “literatura de cordel”, fruto do reconhecimento dos folhetos pela academia, só veio surgir na década de 1960.

Nesse período, anos 1950 e 60, o cordel atingiu seu ápice de reconhecimento se espalhando para além no Nordeste de acordo com as ondas migratórias. Escritores chegavam a vender 10 mil exemplares de uma edição em um único ano, sendo que J. Borges chegou a surpreendentes 100 mil exemplares com seu “A chegada da prostituta no céu”. Durante toda essa longa e altamente produtiva primeira fase do cordel vieram ao mundo clássicos como “A chegada de Lampião no Inferno” (José Pacheco), “Peleja de Cego Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum” (Firmino Teixeira do Amaral), “O homem da vaca e o poder da fortuna” (Francisco Sales Arêda), “Proezas de João Grilo” (João Ferreira de Lima), “Romance do Pavão Mysteriozo” (João Melchíades Ferreira) e “A greve dos bichos” (Zé Vicente). A boa onda acabou por arrebentar a partir da década de 1970 até virar uma marola preocupantemente inofensiva nos anos 90. Alguns mais afoitos chegaram a pedir pela extrema-unção do cordel, mas o futuro digital tinha uma ou duas surpresas guardadas na manga.


A chegada da prostituta no céu from Marcos Tenorio on Vimeo
Computadores fazem arte

“O cordel continua sobrevivendo. O auge foi no século passado, mas depois foi morrendo e na década de 1990 chegou à beira da cova. Agora começou a voltar. Hoje tá muito animado”, explicou o septuagenário J. Borges, um dos mais ativos cordelistas e xilogravuristas da atualidade, em entrevista a este repórter em 2006. A razão dessa volta animada ao cordel se deve, segundo ele, “ao movimento estudantil. Recebo muita visita de colégio e faculdade. As professoras compram também, além de turistas, pesquisadores e colecionadores. Hoje se vende no Brasil todo e antes era só no Nordeste.” Associações culturais, como a Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC), também foram abertas nos mais variados estados, desde o fundamental Pernambuco até os centrais São Paulo e Rio de Janeiro, passando por Piauí, Rio Grande do Norte e Ceará.

Essa nova geração, utilizando as ferramentas da rede mundial de computadores, passou a criar pelejas virtuais que tanto são deixadas disponíveis para os internautas, com direito a todo seu processo de criação em aberto, quanto ganham versão impressa. O projeto Corda Virtual, idealizado pelo site Interpoética, é um ótimo exemplo de como acontecem e se desenvolvem estas pelejas virtuais. Para jovens cordelistas com os cearenses Klévisson Viana e Moreira de Acopiara, o uso do computador não diminui em nada a qualidade da arte. É só mais um recurso. “O que descaracteriza o cordel é escrever errado e não obedecer às regras da métrica, rima e oração”, explicou Viana em entrevista ao site A Nova Democracia. Para provar que a literatura de cordel segue como uma eficaz e bem humorada crônica da atualidade esta nova geração cria, no calor da hora, folhetos como “A famigerada ‘dança’ do Créu” (Waldeck de Garanhuns) e “A chegada de Michael Jackson no Portão Celestial” (João Gomes de Sá e Klévisson Viana).

Para encerrar o assunto, pelo menos por hora, J. Borges fala desse ofício da seguinte forma: “Pra fazer um cordel bom é preciso ter um conhecimento da situação da área onde o cordelista vive. Tem que saber assuntos de amor, de religião, de política e de gracejo. Nas palestras que faço gosto de falar que sou o único que vive de mentira. Sou o maior mentiroso. Porque se falar a verdade morro de fome, e a mentira o povo compra a vida toda. Mas tem que ser uma mentira que se pode acreditar, não pode exagerar muito. Enfim, é um mistério.” E mistérios assim duram para a vida toda.

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