domingo, 14 de abril de 2013

rafael castro, advogado do diabo de si mesmo

no texto mais recente que fiz para o mexidão, “música popular de estupro” (inspirado pelo texto “amigos, amigos, cretinices à parte”, da jornalista kátia abreu), falei de duas músicas que causaram discussões acaloradas nas redes sociais nas últimas semanas. em suas linhas e entrelinhas, “então se joga” (henrique costa) e “vou te encher de birinight” (rafael castro) falam de embebedar garotas na balada para elas “liberarem geral” (no caso de “então se joga”) ou para serem abusadas (no caso de “vou te encher de birinight”). no texto do yahoo critiquei as músicas (e não os artistas) por tratarem de forma leviana e sem cuidado de um assunto muito delicado. poucos dias depois, rafael castro entrou em contato comigo pelo facebook procurando uma via de falar mais sobre o assunto e tentar explicar o lado dele da história pr’além do espírito linchador que circula pela internet. em nenhum momento achei que nenhum dos dois artistas estava fazendo apologia ao estupro, mas sim que essa mentalidade está muito arraigada no inconsciente masculino, e gostei da abertura de rafael para discutir o assunto. então mandei-lhe uma série de perguntas. suas respostas seguem abaixo e não editei nada para deixar que ele fale por si só.


qual a origem de "vou te encher de birinight"? quando foi escrita?
a música nasceu como a maioria das minhas canções, inventando histórias no computador com o violão em punho. não foi inspirada em nenhum fato ou acontecimento específico. foi composta, gravada e lançada em 2007.

você já tinha tido algum problema com a música antes da calourada da usp? alguém tinha te falado algo sobre ela?
nunca tinha tido problema algum. na verdade quando viemos pra são paulo em 2008 e começamos a fazer shows por aqui, essa era uma das músicas mais pedidas, uma das favoritas da galera que acompanhava os shows. favorita até de gente que tá falando mal hoje, mas é compreensível e nas perguntas seguintes eu falo mais sobre isso.

como foi no show [realizado em 27.02.13]? na hora houve algum protesto?
no show foi tranquilo. não houve nenhum protesto além de uma garota muito alcoolizada pedindo pra tocarmos chico buarque do começo ao fim do nosso show, mas nós não atendemos.

o pessoal do dce entrou em contato com você depois?
o dce não entrou em contato comigo. um dos membros mandou um e-mail para meu produtor comentando que algumas pessoas acharam o conteúdo dessa música estranho e que se conhecessem o artista não chamariam, mas nada foi falado além disso conosco. fica a curiosidade: como alguém contrata um show que desconhece?

como você ficou sabendo da moção de repúdio às "músicas opressoras" de rafael castro? o que achou dela?
ficamos sabendo por compartilhamentos alheios no próprio facebook; não nos avisaram em nenhum momento sobre essa moção. eu achei despropositada e precipitada, porque eu estaria disposto a dar entrevista ou participar de debates se convidado pelo pessoal do dce, para esclarecer qualquer mal entendido ou me desculpar com quem houvesse se ofendido.
na moção (onde ninguém assina, permanecendo até agora um texto anônimo) há várias acusações levianas das quais não pude me defender, mesmo tendo mandado um texto pedindo “direito de resposta” que não foi nem respondido nem publicado. além disso, o sistema de moderação de comentários não permite nenhuma resposta no site onde a moção foi publicada, vetando completamente qualquer opinião de quem a leia.

participação de tulipa ruiz no show de rafael castro durante 
a calourada da usp-sp, agora em fevereiro de 2013

como você acompanhou os desdobramentos pró e contra sua música na internet?
achei interessante, pelo bem ou pelo mal, a música chegar onde chegou. como eu disse em um comentário, a música promoveu um grande debate sobre arte, política, sociedade, machismo, violência, liberdade de expressão, etc. mesmo sofrendo algumas condenações, achei que esses desdobramentos não poderiam ser melhores porque os temas levantados são de suma importância, ainda mais nos tempos que vivemos agora no brasil.

quando a gente conversou no facebook você disse que estava preocupado com a gritaria [palavra minha] dos dois lados (pró e contra). que isso estava fazendo com que um não entendesse o outro, que um enfraquecesse o outro. pode explicar melhor?
o que acontece é o seguinte. tanto as pessoas que condenam a canção quanto quem me defende, no frigir dos ovos, acaba generalizando muito as coisas. as pessoas que leram a moção acabam ficando com uma impressão de que deve existir o julgamento artístico entre certo e errado, entre permissível e reprimível, um pensamento com um viés maniqueísta onde o artista não deveria retratar uma violência sem uma crítica fácil de entender ou uma “lição de moral”. isso enfraquece a arte. por outro lado as pessoas que defendem essa liberdade de criação, acabam atacando ferozmente os movimentos e as lutas, ridicularizando-as, diminuindo o trabalho dessas pessoas e dificultando um diálogo que é muito importante – neste caso a violência contra a mulher. acaba virando um bate boca desgastante sem qualquer objetivo além da própria polêmica e isso só faz enfraquecer os dois lados. eu sou a favor dos dois e, para que conste, sou contra qualquer violência, seja à mulher, ao trabalhador ou à liberdade, sou a favor da existência urgente de movimentos e lutas sobre essas e outras questões que ano após ano são reprimidas pelo nosso governo. é ridículo que isso seja posto em questão por causa de uma obra de ficção.

em um nota que escreveu no facebook você deu sua interpretação da música falando em crítica social. essa interpretação mudou conforme o tempo? quando começaram a aparecer leituras diferentes da música que a sua você se preocupou? o que achou? pensou em reescrevê-la?
na interpretação que eu escrevi ,eu ainda estava tentando manter o bom humor e explicar a canção pros amigos da rede social de um ponto de vista onde poderiam haver variáveis na própria história, tipo “advogado do diabo”. eu disse que a crítica social estava no comportamento, pessoas que precisam beber pra se comunicar e pra aceitar outras pessoas, e que a tragédia seria uma consequência desse comportamento típico dos oprimidos social e sexualmente. de uma forma mais ampla, eu acho que quando você expõe um problema do cotidiano em uma obra de arte, este simples fato já é uma crítica social, porque ela pode agredir, pode gerar reflexões, pode trazer assuntos importantes pra serem debatidos. eu não me preocupo com leituras diferentes porque a arte é mutável e suas interpretações também. se compuséssemos a canção da “cabeleira do zezé” hoje, em tempos onde felicianos e afins querem implodir e exterminar toda a causa homoafetiva, este compositor talvez fosse hostilizado por alguns movimentos. em outros tempos, em outros contextos, a canção pode servir como uma celebração bem humorada da diversidade. eu acho que o ódio e a repressão artística de tempos em tempos recaem no reflexo do contemporâneo, do medo que as pessoas sentem, com razão.

olhando em retrospecto você acha que errou em algo ou que faria diferente? ou está de consciência tranquila?
talvez alguns desgastes pudessem ser evitados se eu não tivesse dado importância para a tal moção que circulava num circuito muito restrito antes de ser publicada por mim, mas estou de consciência tranquila porque é conversando que a gente se entende e o assunto era pertinente. espero que as pessoas tenham percebido que debater é bom e crucificar é inútil.

o que fazer com essa música agora? como você a vê hoje?
há tempos eu não toco essa música ao vivo, porque eu e o pessoal da banda já tínhamos enjoado dela, de tanto que pediam. na usp a gente ressuscitou a canção porque uma das nossas participações especiais, o pélico, gosta. não pretendo mais tocá-la ao vivo por enquanto porque o tom da música não está conversando com esses tempos de repressão e medo, além de ter se desgastado com a polêmica. eu continuo achando que os artistas devem expressar aquilo que eles querem do jeito que eles querem, mesmo correndo o risco de serem mal interpretados ou acusados disso ou daquilo. talvez seja justamente esse tipo de coisa que está faltando. e pra quem pensa que ficar perseguindo artistas ajuda em alguma coisa, eu sinceramente recomendo que olhem o brasil pelo buraco mais embaixo.

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