AH, QUE É ISSO? A FIFA ESTÁ DESCONTROLADA
Tem algo de muito errado no mundo quando um sujeito solta,
tranquilão, a seguinte frase: “Vou dizer algo que é maluco, mas menos
democracia às vezes é melhor para se organizar uma Copa do Mundo. Quando você
tem um chefe de estado forte, que pode decidir, assim como Putin poderá ser em
2018, é mais fácil para nós organizadores do que um país como a Alemanha, onde
você precisa negociar em diferentes níveis”. O tal sujeito é Jérôme Valcke,
secretário-geral da Fifa, e essa asneira foi dita durante
um simpósio ontem, 24 de abril, em Zurique, sede da organização que
organiza a Copa do Mundo.
Lida sobre outro prisma, a asneira de Valcke é um elogio ao
Brasil. Durante o mesmo evento ele falou sobre o país nos seguintes termos: “A
principal dificuldade que temos é quando entramos em um país onde a estrutura
política é dividida, como no Brasil, em três níveis: federal, estadual e
municipal. São pessoas diferentes, movimentos diferentes, interesses diferentes
e é difícil organizar uma Copa nessas condições”. Pois é, meu caro francês
maluco, democracias são assim, um acordo entre diferentes, e é bom que assim
sejam.
Mas pelo jeito, o pessoal da Fifa não está se contentando
apenas com elogios a países ou líderes autoritários, eles querem mesmo se
tornar um. É que hoje apareceu uma notícia tão absurda no site do jornal Tribuna
da Bahia que por algum tempo achei que fosse uma piada do satírico Piauí Herald. A
manchete grita que a “Fifa proíbe São João em Salvador”. Acuma? Isso mesmo,
segundo a reportagem a prefeitura da cidade recebeu ordens da Fifa para não
liberar alvarás para festas de rua durante o mês de junho deste ano, época que
Salvador será uma das sedes da Copa das Confederações. E antes tinham tentado
impedir (sem sucesso, felizmente) a venda de acarajé no entorno do estádio para
não ferir os sentimentos do McDonald’s.
Nunca fui do time anti-Copa. Claro que o Brasil está pronto
(ou está ficando) e um evento como a Copa injeta muito dinheiro na economia do
país, mesmo que, como sempre, seja mal distribuído ou desviado. Porém, desde a
violência que aconteceu na Aldeia
Maracanã, no Rio de Janeiro, comecei a ter certeza que a coisa está fora do
controle. Na certeira definição de @viniciusduarte,
“sediar Copa do Mundo é um cavalo de Tróia”, é colocar o inimigo para dentro.
A Fifa é como a enigmática e fechada Coreia do Norte, só que
transglobal, cheia de grana e muito influente. Com a promessa de carradas de
dinheiro e visibilidade, a organização entra nos países e vai corroendo durante
um tempo suas soberanias, violando direitos sociais, pintando o sete geral a
seu bel prazer (com o conluio do governo federal, Estados e municípios, todos
embevecidos pelo canto da sereia da bola redonda). Mas a Copa vai acontecer, de
um jeito ou de outro, e o que dá para fazer agora é ficar atento a tudo porque
já deu essa história do dinheiro passar por cima das pessoas. Perdemos Aldeia
Maracanã, vencemos a Batalha do Acarajé, e isso é só o começo.
MAIS CAXIXI, MENOS CAXIROLA
Não pensei que iria voltar a tratar da Copa tão cedo.
Sinceramente. Só que poucos dias após ter publicado “Ah,
que é isso? A FIFA está descontrolada” aconteceu a Revolta das Caxirolas e
uma coisa assim não pode passar em brancas nuvens pelo Mexidão. Bem, a essa altura do campeonato quase todo mundo já está
nervoso de saber o que é a caxirola, mas não custa fazer um flashback rápido...
Do nada, a FIFA e o Ministério dos Esportes vieram a público
apresentar o instrumento musical símbolo da Copa das Confederações e da Copa do
Mundo no Brasil. Criação do multi-instrumentista Carlinhos Brown, a caxirola é um chocalho de
plástico feito a base de cana-de-açúcar produzida pela Brasken. O músico baiano
registrou sua nova obra – contratada não sabe-se como e em quais termos pelo
governo – e vendeu os direitos de fabricação e distribuição para a
multinacional The Marketing Store. Os valores dessa gigantesca transação não
são revelados (o valor de R$ 1,5 bilhão foi estimado aqui e ali), mas o preço
sugerido ao torcedor é R$ 29,90.
Daí que logo na estreia oficial do instrumento, domingo
passado, 28 de abril, o reformulado Estádio da Fonte Nova viu uma revoada de
caxirolas rumo ao gramado. Eram torcedores revoltados do Bahia protestando
contra seus dirigentes, enquanto o time perdia para o rival Vitória por 2 a 1.
Foi o bastante para o pessoal da grana ficar de orelhas
em pé prevendo novas manifestações não-musicais já agora na Copa das
Confederações. Bateu um medinho e estão pensando em colocar
uma bula para ensinar ao brasileiro como usar o instrumento com
responsabilidade.
É isso que dá pensar só em dinheiro e não nas pessoas que
fazem e sustentam o espetáculo. Porque, será mesmo que eles acham que ninguém
perceberia que a caxirola não passa de um caxixi de plástico? E que é um
completo absurdo privatizar um bem cultural tradicional? Ou então que a caxirola
não tem relação alguma com o futebol brasileiro? Só mesmo Galvão Bueno e Tadeu
Schmidt, os porta-vozes futebolísticos da Globo, para defenderem tal disparate.
Direto ao ponto, o jornalista José Trajano afirmou durante o
programa Linha de Passe (ESPN) que o torcedor tem o direito de jogar a
caxirola onde bem entender. Na Copa da África do Sul as vuvuzelas podiam ser (e
eram) um inferno para os ouvidos estrangeiros, mas eram genuínas integrantes da
cultura do futebol no país. E a caxirola? Até quinze dias atrás ela nem
existia! Porque diabos deveríamos aceitar algo imposto por essa dobradinha
poder público/iniciativa privada e que provavelmente foi gestado em algum reunião
de brainstorm com publicitários de sapatênis?
Mas nada disso me surpreende, na verdade. Agora, o papel de
Carlinhos Brown nessa tragicomédia... como é que pode um sujeito assumidamente
ligado à cultura popular pegar um instrumento tradicional (alô pessoal da
capoeira!), dar um tapinha e registrar como criação sua?! Sou fã de Brown e o defendi
em março do ano passado no texto “Quem tem
medo de Carlinhos Brown?”, mas prevejo que a chuva de garrafas que tomou na
cabeça durante o Rock in Rio em 2001 vai ser pinto perto do tsunami de
caxirolas que se avizinha por aí. Olha, a Revolta da Caxirola virou até cordel.
Essa apropriação privada de um instrumento popular é o mais
grave desse caso, mais até do que a imposição de um símbolo (o pessoal da grana
que se vire com o encalhe das caxirolas). Em texto
contundente, o antropólogo Henrique Parra tem uma sugestão para minimizar o
absurdo dessa situação: “Se o governo está interessado em criar um símbolo, bem
poderia indicá-lo e deixá-lo livre, como são os símbolos, ao invés de transformá-lo
em propriedade privada. (...) Diversas fabricantes nacionais poderiam
produzi-lo, diversos comerciantes locais poderiam distribuí-lo e aquelas
corporações interessadas em fazer o produto circular em “outras esferas”
(produtos especializados para consumidores endinheirados) poderiam recolher uma
taxa específica cujos recursos poderiam ser destinados ao apoio de milhares de
escolas de capoeira e grupos culturais espalhados pelo País”. Isso sim é um
Brasil de todos.
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