terça-feira, 17 de março de 2009

e agora, joão?

nessa linha it's all true segue uma matéria que fiz pra monet de novembro de 2008. já tinha trocado alguns e-mails com joão moreira salles por causa da segunda reportagem que fiz pra piauí (a do cemitério de animais), então foi fácil chegar nele. o difícil foi marcar uma entrevista. por telefone, sem chance (também não queria). aí ele me disse que vinha pra são paulo participar de uma palestra na puc sobre os dois anos da revista. mesmo assim não ia dar tempo pr'uma entrevista nos conformes e o jeito foi acompanhar a palestra, mandar uma pergunta durante e ouvir/observar bastante. saiu o texto abaixo. agradecimento aos chapas da cia. de foto pelo retrato de joão. 


O QUE FAZ JOÃO FILMAR?

A mesa parece muito pequena ali no meio do palco, mesmo com a presença de garrafas d’água, copos, microfones e pingüins de geladeira. Pingüins? A simpática ave ganhou uma boina à la Che Guevara e virou símbolo da piauí, revista que momentaneamente tirou João Moreira Salles do circuito de documentários para lhe jogar no mercado editorial. Extremamente tímido em qualquer meio, o carioca de 26 anos precisará domar algumas vergonhas para ser o protagonista de uma noite no qual falará para alunos da PUC paulistana sobre os dois anos da revista, realidade e cinema, muito cinema. Mas ainda falta uma hora para o bate-papo começar. Calma.


Diretor de Entreatos (2004), uma das estréias do mês no Canal Brasil ao lado de Peões (2004) do ídolo e mestre Eduardo Coutinho, João Moreira Salles tem o mesmo nome do avô paterno e é seis anos mais novo que o irmão Walter Salles Jr. (Linha de Passe). Começou a trabalhar com documentários ao lado do irmão, no final da década de 1980, na extinta TV Manchete, mas só ficou mais conhecido em 1998 ao dirigir, em parceria com Arthur Fontes, a série Futebol, sobre a dura saga de garotos em busca do sonho boleiro. Coincidentemente, no mesmo ano que o irmão estourou mundialmente com Central do Brasil. Daí para frente, João Moreira foi mergulhando mais fundo na realidade brasileira e produzindo documentários, sempre documentários. Fundou, também com o irmão, a produtora Videofilmes.


Antes do bate-papo começar, o cineasta e um professor da universidade decidem arrastar a mesa um pouco para frente, mais próxima da platéia. Parece tudo certo agora e assim começa. “Sou um documentarista. Sempre tratei da não-ficção, do mundo - a ficção, na minha família, é outro quem faz [risos] -, e o que aprendi em dez, doze anos de trabalho com isso é que documentário não é necessariamente o tema. É mais como você fala, o jeito que você conta”. Um ano depois de Futebol, João Moreira reuniu-se com Kátia Lund e fizeram o explosivo Notícias de uma Guerra Particular, média-metragem sobre a escalada da violência urbana no Rio de Janeiro. Foi neste vídeo que surgiu Rodrigo Pimentel, então oficial do BOPE. Após duras críticas à política de combate ao tráfico, Pimentel saiu da instituição (mais tarde foi um dos roteiristas de Tropa de Elite). João Moreira também acabou saindo machucado dessa história ao ser acusado de favorecer o traficante Marcinho VP, patrão no Dona Marta, morro da Zona Sul carioca onde foi filmado Notícias.


“O que me faz filmar é o fato de acordar de manhã e ter que exercer uma profissão. Não existe uma grande missão. Ah, preciso filmar porque sou um artista... não sou um artista! Filmo porque foi a profissão que escolhi. Não tem nada de épico ou glorioso nisso. Pelo menos nunca teve pra mim. O que nós fazemos como documentaristas é dar forma ao mundo e organizar as informações para que façam sentido. Aí você joga sobre a realidade o manto da narrativa. (...) Claro que existem temas que me interessam, mas o mais importante é contar uma história de um jeito que ninguém contou”. Com este ímpeto saiu da violência dos morros cariocas para as salas de concerto européias ao filmar Nelson Freire (2003), seu primeiro longa feito para cinema.


Mas antes de lançar o filme sobre o famoso pianista clássico, João Moreira havia registrado, em outubro de 2002, a reta final da campanha presidencial de Luis Inácio Lula da Silva. O cineasta levou quase dois anos para reduzir as 220 horas captadas para uma duração factível. “Tempo é algo essencial. Tempo penetra no DNA do filme, ou da reportagem, e o transforma em outra coisa. É preciso de tempo para pensar, refletir e estabelecer as conexões”. Com o tempo ao seu lado também driblou possíveis usos políticos, afinal Entreatos poderia tanto ser usado pelo Governo quanto pela oposição. “Goste-se ou não do Lula, o fato dele se eleger em 2002, ou de ter tido a chance de se eleger, é um fato único na história do Brasil. Nunca ninguém com sua origem social e política teve uma chance real de se eleger Presidente da República. Aquilo era um fato único e para o documentário o que é único sempre interessa”.


Outro fato único foi a opção de não filmar nenhum ato público. Apenas os bastidores, ou “momentos fracos”, como classificou o próprio cineasta. “São aqueles momentos vividos relaxadamente. Momentos de espera, elevador, quarto de hotel ou traslado. Se perguntassem ao Lula, ali durante a campanha, quais foram os acontecimentos marcantes do dia anterior ele jamais lembraria esses momentos porque só existiram para preencher o espaço entre um e outro momento forte da campanha. Não teve importância nenhuma. Mas isso se torna importante no filme porque foi organizado para ser assim”. E os silêncios, olhares e papinhos acabam sendo mais reveladores que a euforia de 200 mil pessoas em um comício.


Em 2006, João Moreira, ávido leitor, deu uma tacada ousada ao lançar a piauí porque queria ler uma revista que não existia. As estimativas iniciais de pessoas ligadas ao mercado editorial chutavam de 5 a 12 mil leitores para uma revista com grandes reportagens, humor ferino e posição ideológica indefinida. Dois anos depois os números variam de 30 a 35 mil e o sucesso da empreitada fez o cineasta optar por se afastar das câmeras. Mas não da ilha de edição (lançou o íntimo Santiago em 2007) e nem da produção (Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho, no mesmo ano). “Escrevi na piauí um texto sobre o Fernando Henrique Cardoso, fiz um documentário sobre o Lula e o procedimento foi rigorosamente o mesmo. A única coisa que mudou foram os instrumentos. Hoje estou na revista, mas amanhã posso voltar a fazer documentários, e mesmo assim não mudo de profissão porque continuo no campo da não-ficção”. E a não-ficção, na forma do apresentador do evento, irrompeu com o anúncio do fim da conversa. Realidade é assim. Quando menos se espera...

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