de vez em quando chamo são paulo de gotham city (não é exclusividade minha, claro) e foi sensacional ver esse foto com batman como motorista de busão. ainda mais porque é em fortaleza, minha terra natal. tudo em casa.
SÃO PAULO, VELHA E LOUCA
Tudo em São Paulo é um pouco torto. Cheio de ramificações e
um pouco torto, fora do lugar. Com a música não seria diferente. Talvez sejam
misturas demais, ou uma combinação peculiar de seriedade com humor
autodepreciativo, mas o fato é que poucos artistas (nativos ou não) da cidade se
tornaram conhecidos em todo o país (cidade que, aliás, fez ontem 458 anos). Lembro
agora de cabeça, e claro que tem mais gente, da Inezita Barroso na década de
1950, d’Os Mutantes no fim dos anos 1960, de Adoniran Barbosa e Os Demônios da
Garoa, tardiamente, nos 70, das bandas Titãs, Ira!, Ultraje a Rigor e RPM na década
de 80, do rap dos Racionais MCs e do pagode de Exaltasamba, Art Popular e Raça
Negra nos 90. Cada uma dessas histórias é diferente da outra, mas todas são
profundamente paulistanas. De qualquer forma é pouco perto da enorme quantidade
de sucessos musicais brasileiros.
Procurar entender isso, sacar que intensa não-identidade
musical é essa que o país às vezes compra e muitas vezes não, acabou virando interesse
pessoal desde que comecei a viver aqui em 1994. Mas quando passei de ouvinte
amador a profissional – em 2001 fundei com um grupo de amigos o site Gafieiras, com grandes
entrevistas musicais, no qual fiquei por uma década –, o que era obsessão leve
ficou preocupação aguda.
Então fui acionando túneis do tempo e viajando pelos sambas
de Paulo Vanzolini, Geraldo Filme, Eduardo
Gudin e Germano
Mathias, pelo balanço do Trio Mocotó, Skowa e Branca di Neve, pelas
experimentações de Arrigo Barnabé e Rumo (a turma de Ná
Ozzetti e Luiz Tatit), pelo rock de Fellini, Akira S e Violeta de Outono, e
muito muito rap (Thaide & DJ Hum, Athalyba e a Firma, etc). Até punk.
Nessa época já conhecia bem a dupla Mauricio
Pereira e André
Abujamra (Os
Mulheres Negras) e Itamar
Assumpção, outras caras cruciais de São Paulo. Quer dizer, só esse pouco
mencionado dá uma boa ideia de que é impossível fazer um retrato-falado da
música negra, branca, atonal, pop, caipira e o diabo a quatro dessa cidade.
Por isso falei de “não-identidade” e também por causa de um
dos textos que mais me fez entender o que é a música popular de São Paulo, e
que foi publicado pela Folha
de S. Paulo em julho de 2001 (olha o ano do astronauta libertado de Tom Zé,
o baiano paulistano, e Mutantes de novo). Nele, o professor e compositor Zé
Miguel Wisnik disse que “com exceção da música caipira, guardada
tradicionalmente na voz encorpada e reta de Inezita
Barroso, em São Paulo não se criaram os gêneros. Aqui eles se encontram, se
misturam, se desmancham, são processados e reprocessados e tratados muitas
vezes com aquela distância relativizante de que se investem as coisas quando
elas são sabidamente de empréstimo”. Tudo é aqui, nada é daqui (nem falarei da
grande quantidade de músicos de fora de São Paulo que fizeram seu trabalho na
cidade; isso é um grande capítulo à parte).
A impressão que tenho é que em cidades como Salvador, Rio de
Janeiro, Recife, Porto Alegre e Belém, os sons e o ritmo vem antes de tudo, muito
antes do verbo. Um exemplo singelo: poucas coisas são tão cariocas quanto um
mineiro radicado no Rio. Em São Paulo não. Tudo existe fora, antes, e é nela
que tudo se mistura. Não é um rosto fácil de identificar. Nem de gostar também.
Daí talvez nasça certa dificuldade do Brasil com a música de São Paulo e, ao
mesmo tempo, um fascínio de artistas de tudo que é canto com essa enorme
variedade de possibilidades. Em alguns lugares isso se chama liberdade, n’outros
é caos mesmo.
Todo esse acúmulo de histórias, desenraizamentos,
experiências, paixões, horrores e vivências gerou nos anos 2000 uma das
gerações de músicos mais interessantes e (ainda mais) diversas da história de
São Paulo. É a terra que continua quebrando o samba no trabalho de artistas
como Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Romulo Fróes e Douglas Germano. É onde o rap
ganhou corpo e força com gente como Criolo, Emicida, Lurdez da Luz, Rodrigo
Ogi, Flora Matos e CaGeBe. É nela que a música instrumental perdeu o medo de
ser, de alguma forma, pop e experimental (vide Hurtmold, MarginalS, Bixiga 70 e
Guizado). É por onde escoam as novas vozes femininas de Tulipa Ruiz, Anelis
Assumpção, Céu, Andreia Dias, Mariana Aydar, Iara Rennó, Luisa Maita e Mallu
Magalhães. Falei do balanço moderno de Curumin ou do lirismo de um dos maiores descendentes
de Roberto Carlos, o cantor e compositor Marcelo Jeneci? Ora pois, estou
falando agora e só arranhando a pontinha desse Minhocão.
Não dá para prever quem deles(as) serão os novos Mutantes,
as novas Inezitas, direto da Terra da Garoa para o Brasil (será que é preciso?).
Por outro lado, o sucesso de hoje também não é o mesmo do tempo das gravadoras
e discos de ouro. Enquanto isso, São Paulo continuará sendo...
p.s. 1: pouco antes de começar a escrever esse texto vi o
clipe mais recente de Mallu Magalhães (“Velha e Louca”) e, de repente, a letra
da música, tão confessional do atual estado de espírito da cantora, me pareceu
uma ótima descrição de São Paulo. Acabou inspirando o título da coluna. “Pode
falar que eu não ligo, / Agora, amigo, / Eu tô em outra, / Eu tô ficando velha,
/ Eu tô ficando louca / (...) / Pode falar, não importa / O que eu tenho de
torta, / Eu tenho de feliz, / Eu vou cambaleando / De perna bamba e solta”, canta
a ex-menina.
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