O ESPÍRITO TOSCO DO ABADÁ
Pois é, mais um carnaval acabou e entre rasgações de notas
em São Paulo, milhares de blocos de ruas em cidades como Recife
e Olinda, e mais uma vitória da Broadway momesca de Paulo Barros (Unidos da
Tijuca) no Rio de Janeiro, o que sempre me chama mais atenção é o apartheid
social cada vez mais profundo em Salvador.
Há poucas semanas, nos intervalos de gravação do programa
Aprovado (TV Bahia, filiada da Globo), a cantora Daniela Mercury soltou a
seguinte pérola testemunhada por muitos e registrada em reportagem do Terra
Magazine: “Na verdade, só existe carnaval por causa da iniciativa privada”.
O mais revelador é que após o ocorrido sua assessoria de imprensa soltou uma
nota negando outra frase (“Caetano e Gil são do passado”), afinal pegaria mal
para a cordialidade baiana, e silêncio absoluto sobre a relação carnaval X
iniciativa privada.
Óbvio que o carnaval virou negócio milionário em cidades
turísticas como Salvador e Rio de Janeiro. Impossível lutar contra e, a
princípio, não tem nada de errado nisso. Só não dá para engolir uma frase tão
canalha como essa. O carnaval nasceu, existe e se renova por iniciativa popular
(o renascimento do carnaval de rua no Rio de Janeiro nos anos 2000 é um exemplo
da força dessa iniciativa). No caso de Salvador, e de todas as outras cidades
que importaram o conceito de micaretas e trios elétricos, a iniciativa privada
veio para dar lucro a poucos e segregar a diversão.
É o tal espírito do abadá que separa os que podem pagar dos
que não podem, os brancos dos negros, o pessoal premium da patuléia, os
turistas dos locais, os playboys da pipoca, e assim por diante. O negócio foi
ficando tão feio, tão na cara, que recentemente surgiram blocos sem cordões em
Salvador. Mas no fundo pouca gente se importa. Daniela Mercury não se importa.
Artistas globais que ganham um troco para dar as caras nos camarotes também não
se importam. É normal. É assim mesmo. Segregar sem “se dar conta”, isto é,
achando que é apenas uma busca por mais conforto para si próprio é um dos mais
recorrentes esportes nacionais.
Por sorte ainda temos os bailes carnavalescos malucos &
trash (que foram assunto de minha primeira coluna aqui, “Tô me
guardando pra quando o carnaval chegar”) e, acima de tudo, a rua, que
sempre falará mais alto e com mais potência, humor e graça que a tal iniciativa
privada. A rua somos nós feito confete e serpentina.
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