sexta-feira, 27 de julho de 2018

ivam, o satyro

já tinha ouvido falar da revista helena, mas nunca tinha visto [fisicamente], muito menos lido e não sabia de onde era, quem fazia, etc. então, em fevereiro deste ano, um amigo virtual, o omar godoy, me chamou no inbox do facebook convidando pra colaborar pra revista [que então soube que era ligada à biblioteca do estado do paraná]. seria uma entrevista, depois virou um perfil, e vários nomes foram cogitados até ele sugerir o ivam cabral, ator, dramaturgo e co-fundador da companhia teatral os satyros.

daí fui, em 13 de março, entrevistar ivam em sua sala na sp escola de teatro e lá se foram bem duas horas de ótima conversa sobre assuntos dos mais variados, desde o nascimento no interior do paraná até os desafios de se fazer teatro autoral. tudo certo. mas não queria fazer um perfil normal e nem falar com outras pessoas para costurar uma reportagem. tempo passando, deadline esticando, rascunhos e rascunhos sendo jogados fora e nada daquele momento 'eureka' acontecer. já estava sem esperanças quando no final de março decidi acompanhar apresentação da peça mais recente do grupo, 'o incrível mundo dos baldios'. então fui lá pro espaço dos satyros na praça roosevelt, em são paulo, e em 1º de abril fui presenteado com um pequeno caos nos bastidores - uma atriz que, presa na estrada, não chegava à tempo da peça - que me deu todo o cenário para o perfil. coisas do acaso.

segue então o texto original - que tá bem próximo da versão que saiu na revista que, aliás, é muito bonita em formato e conteúdo - com algumas fotos minhas [na revista as fotos são do bróder rafael roncato].

ivam cabral no alto da sp escola de teatro, na praça roosevelt

O TEATRO QUE ABRE CAMINHOS

O Domingo de Páscoa parecia um domingo como outro qualquer para Ivam Cabral. O ator, diretor, dramaturgo, compositor, produtor e um dos fundadores do grupo teatral Os Satyros chegou, como de costume, uma hora e meia antes de entrar em cena no Espaço do Satyros Um, em São Paulo. Então, o paranaense da pequenina Ribeirão Claro, maquiou-se, colocou as calças e sapatos de seu figurino de andarilho e, de peito nu, bateu rapidamente o texto. Depois veio camisa, peruca, e estava pronto. Era só mais uma apresentação na temporada da mais nova peça de sua lavra, e 101ª da companhia, ‘O Incrível Mundo dos Baldios’.

Não demorou muito para um celular apitar aqui, outro vibrar acolá e uma preocupação palpável tomar conta do camarim a meia hora de começar a peça. “A Márcia está na altura de Jundiaí e está marcando aqui uma hora pra chegar”, diz uma das atrizes. Aos 55 de idade, Ivam sabe que pra tudo tem um jeito, mas não esconde a surpresa. “Isso nunca me aconteceu em 29 anos de Satyros. Já cancelamos peças por motivo de doença, afinal coisas acontecem, mas nunca porque um ator ou atriz não apareceu”, confidencia sem saber ou entender se o ônibus dela, a atriz Márcia Dailyn, quebrou vindo de Jales, ou se ela conseguiu ir até São José do Rio Preto e pegou carona de lá, ou se ela está vindo de táxi.

Por sorte, a atriz – que foi a primeira trans a se formar bailarina na Escola de Dança do Teatro Municipal de São Paulo – está na última das cinco pequenas histórias de ‘Baldios’, portanto é possível começar a peça e torcer pra que chegue a tempo. Ivam aproveita pra dar uma espiada na entrada do teatro e volta visivelmente frustrado: “Gente, uma catástrofe. Tem seis pessoas”. O final de um feriado prolongado e o tempo chuvoso explica facilmente a baixa presença, mas desde quando a peça estreou, em março, todas as sessões andavam lotadas [média de 70 pessoas por apresentação]. “Hoje é, realmente, um dia de exceções”, suspira.

Hora de uma reunião de emergência e ao redor de Ivam reúnem-se o pessoal da técnica, os outros doze atores e atrizes presentes e Rodolfo Garcia Vázquez, diretor, dramaturgo e co-fundador d’Os Satyros. “Sem a Márcia não tem essa cena final, e sem essa cena a peça não faz sentido”, diz Ivam já pensando em cancelar tudo, enquanto Rodolfo sugere atrasar a peça em meia hora e explicar a situação para o pessoal que já comprou ingresso. Se não quiserem esperar, o dinheiro será devolvido. A saída proposta por Rodolfo ganha e ele mesmo vai até a entrada do teatro fazer a proposta. Tudo certo. Não só topam como dizem que assim ganham mais tempo para outras cervejas e que talvez uns amigos consigam chegar. Mais meia hora, então. 

“O que a gente buscava e o que busca até hoje é fazer do Satyros um espaço libertário. Por exemplo, questões de gênero, imigrantes e refugiados, representatividade, periferia, transexuais, tudo isso a gente trabalha no Satyros desde sempre”.  E isso acontece desde que Ivam chegou a São Paulo, no início de 1989, e poucas semanas depois conheceu Rodolfo nos corredores da Escola de Comunicações e Artes, na USP. No 1º de abril daquele ano fundaram Os Satyros e no semestre seguinte estrearam a primeira peça do grupo.

Ivam trazia na bagagem uma infância repleta de literatura no seio familiar [cortesia da mãe, costureira e evangélica, que comprava romances e poesias de vendedoras ambulantes que passavam por Ribeirão Claro], uma adolescência com a descoberta da comunhão pública via música e teatro [cortesia da igreja que ficava a uma quadra da casa] e um início de vida adulta na corda bamba entre o pragmatismo [prestou Administração de Empresas e trabalhou no falecido Banestado] e o risco [largou Administração e foi para Artes Cênicas na PUC, em Curitiba]. 





“Não pensava em fazer teatro especificamente. Sabia que talvez pudesse circular entre música, teatro e literatura, mas sem ser uma coisa ou outra. Mais tarde, quando cheguei a São Paulo, meu sonho – e tenho depoimentos da época pra mostrar que não foi algo que falei depois – era ter um grupo de teatro que fosse importante, que contribuísse, que dialogasse com seu tempo e que indicasse novos caminhos. Nunca pensei em TV, em fama, em Globo”.  

De 1989 até agora, uma centena de peças depois, Ivam Cabral e Os Satyros receberam mais de 40 prêmios, participaram de inúmeros festivais nacionais e internacionais de teatro, criaram um festival próprio [Satyrianas], produziram um filme [‘A Filosofia na Alcova’] e encararam turnês por países como Alemanha, Estados Unidos, Inglaterra, Portugal, França, Espanha, Cuba e Ucrânia [foram a primeira companhia ocidental a se apresentarem no país após a queda do Muro de Berlim]. Também levaram aos palcos textos de Alfred Jarry, Heiner Muller, Gil Vicente, Goethe, Shakespeare, August Strindberg, Oscar Wilde, Nelson Rodrigues, Vange Leonel e, acima de tudo, Marquês de Sade. Mas desde que fincaram bandeira, em 2000, na lendária e paulistaníssima Praça Roosevelt, o grupo vem montado cada vez mais textos próprios, como é o caso de ‘O Incrível Mundo dos Baldios’.

“Somos uma espécie de Ogun, o cara que vai à frente, abrindo caminhos. Acho essa imagem do Ogum muito bonita. E acho que a função do artista é essa, né? Arte está aí pra causar estranhamento, pra fazer com que você não tenha certeza das coisas. Eu existo pra te confundir. Arte é isso”. Ivam olha o relógio e faltam quinze minutos para a peça começar, o que significa que é a hora da roda, aquele momento no qual toda trupe se energiza antes de entrar em cena.

Formam um círculo, dão-se as mãos e, antes de qualquer coisa, alguns recados são dados. Márcia ainda não chegou e pode ser que não consiga, prepararem-se portanto para algum improviso. Então, uma música começa a sair dos alto-falantes e parte do elenco começa a cantarolar baixinho, balançando o corpo de um lado para o outro. “Entra na minha casa / Entra na minha vida / Mexe com minha estrutura / Sara todas as feridas”, e cantam uma, duas vezes, cada vez mais alto, cada vez abrindo mais o sorriso. E a música acaba e todos gritam “Merda!”.



“Cada peça tem uma roda diferente. Por exemplo, essa música [‘Faz um milagre em mim’, pagode gospel de Regis Danese] aparece no final de ‘Baldios’, justamente na cena da Márcia. Ela é uma cantora que está prestes a fazer seu primeiro show com um cachê mais alto e erra o caminho, desce no ponto de ônibus numa quebrada, e encontra um casal de irmãos adventistas. Tudo isso em um 31 de dezembro. Aí, de uma forma bem natural, começamos a cantar essa música na roda”.

Todas as histórias de ‘Baldios’, todos os encontros de personagens, acontecem em um 31 de dezembro. E não é por acaso. “No final do ano passado fui pra Ushuaia, no fim do mundo. Era um lugar que eu queria conhecer. Pensei: é um lugar que me vai dar paz. É um dos lugares mais bonitos do mundo e eu não suportei. Não aguentei ficar lá. Claro que tinha a ver com meu irmão porque a gente viajava muito [um dos cinco irmãos de Ivam morreu em novembro do ano passado de câncer]. Enfim, foi horrível. Passei o dia 31 tentando sair de lá – vou ficar pagando cartão de crédito o resto da vida –, mas consegui e às 11 da noite estava chegando a Buenos Aires. Passei a meia noite em um hotel qualquer. Aí bateu aquela coisa, o mundo não tá nem aí pra mim. Quando você pensa que você é o centro, que a sua dor é o centro, quem é você, cara?! Que significa essa dor perto de tudo isso, dessa imensidão? Você não é nada.”


ivam e o fotógrafo rafael roncato


Essas questões existenciais de Ivam aliadas a uma permanente reflexão sobre espaços públicos como a vizinha Praça Roosevelt deram origem a ‘Baldios’. Afinal, como o próprio Ivam gosta de contar, a palavra ‘baldios’ tem dois significados muito distintos: no Brasil é algo inútil, sem proveito, abandonado; já em Portugal são terrenos comunitários, espaços de convívio, encontro. 

Quando Os Satyros chegaram à praça em 2000 encontraram abandono do poder público e antes mesmo de uma longa reforma mudar a cara do espaço, a trupe começou a acolher e dar trabalho a minorias que por ali vagavam, de ex-presidiários a adolescentes carentes da periferia, de travestis a traficantes. Esses encontros transformaram e enriqueceram a dramaturgia do grupo, enquanto os arredores da praça iam ganhando novas cores, bares e companhias teatrais como os Parlapatões. 

Todo esse renascimento da Roosevelt culminou na criação, em 2010, da SP Escola de Teatro. “É a maior escola de teatro da América Latina”, diz Ivam, sem esconder o orgulho de ser o responsável por reunir os colegas vizinhos em um projeto gratuito bancado pelo Governo do Estado de São Paulo que forma artistas em oito áreas [Atuação, Cenografia e Figurino, Direção, Dramaturgia, Humor, Iluminação, Sonoplastia e Técnicas de Palco]. “A criação dessa escola é a prova que nosso projeto de acolhimento deu certo e que dá pra sobreviver de teatro. Isso é possível aqui”.

Alguém avisa que Márcia já está na Marginal [Pinheiros ou Tietê, não sabem ao certo] e que, na verdade, está vindo de táxi do interior de São Paulo. Não tinha nada de ônibus quebrado. Ivam respira aliviado com a primeira notícia, ainda mais porque é chegada a hora de entrar em cena e o público pagante melhorou um pouquinho, de seis para treze. Mas essa história de vir de táxi do interior...

“Todos somos responsáveis por abrir, fechar ou indicar caminhos. Na poesia eu digo que não temos saída, que fracassamos enquanto humanidade, porque é preciso ter incertezas para se construir juntos. Mas sou otimista pra caramba, acredito muito no ser humano e nosso trabalho é um espelho disso também”. As cinco histórias/encontros de ‘Baldios’ são, efetivamente, um espelho dessa dialética d’Os Satyros, às vezes melancólica e noutras bem humorada.

Na costura humana de ‘O Incrível Mundo dos Baldios’, Ivam e Rodolfo reúnem um palhaço idoso e uma voluntária com seus próprios fantasmas, dois amigos buscando enriquecer rapidamente na quebrada, uma refugiada síria e um adolescente perdido, uma advogada em busca de uma morte digna acompanhada por seu melhor amigo e uma médica e, por fim, uma cantora e um casal de irmãos adventistas. Nessa hora, Márcia, que interpreta a cantora, entra em cena gritando –  “Tô chegando! Tô chegando!” – e toda a trupe ri, aliviada.


ivam e a torre da igreja da consolação, na praça roosevelt

Ivam, que interpreta um andarilho que “busca atender as promessas de pessoas que esperam por milagres para suas vidas” e costura todas as histórias, não perde a deixa e, em cena, manda um recado para sua atriz/personagem: “Ela vai ter que trabalhar muito para pagar os 1600 reais do taxista”. Gargalhada geral.

Tantos sustos depois, o Domingo de Páscoa de Ivam Cabral chega ao fim alimentado por aplausos de pé. “O que eu deixei de falar numa peça eu falo em outra. Esse processo de permanente construção que o teatro proporciona é o mais legal. E no Satyros eu posso tudo”.