terça-feira, 8 de agosto de 2023

bicho é mais que bicho

mais um release pra minha coleção. costumo fazer mais pra música, mas teve uma época que fiz vários pra Globo Livros (biografia do Will Eisner, livros de história, etc). só que nunca tinha feito de um livro infantil, mas como chamado da amiga Renata Assumpção é uma ordem, topei na hora. Estranhos, de Luiz Antônio Barros, é uma beleza cheia de camadas e tensões (e as ilustrações e projeto gráfico de Alex Gyurkovicz são um show à parte). saca só.

UMA ODISSEIA PARA BICHOS E CRIANÇAS

Em 1945, George Orwell criou, em A Revolução dos Bichos, uma parábola sobre a busca de uma sociedade utópica onde os animais de uma fazenda viveriam por conta própria livres de seus opressores, os humanos. E de como esse paraíso rui diante da traição e corrupção de seu ideal. Já em 1976, Chico Buarque lançou o musical teatral Os Saltimbancos e nele alguns animais fogem de seus donos para tentar a sorte, coletiva e artisticamente, na cidade grande. Estamos em 2023, e os animais de Estranhos, livro infantil escrito por Luiz Antonio Barros e ilustrado pelo designer Alex Gyurkovicz, não buscam mais uma autogestão idílica longe dos humanos. É impossível fugir deles, então querem apenas sobreviver. 

A história é toda contada por Gesilda, uma pequena aranha negra, para o autor do livro e sua neta. É uma história sobre três dias dramáticos para os bichos da Baixada Santista e que começa com um grande incêndio nas matas do Xixová-Japuí, parque estadual que fica entre os municípios de Praia Grande e São Vicente. 

Espécies nativas das mais diversas – de insetos a macacos-prego, de guaxinins a roedores, de cobras e lagartos a cães-do-mato – buscam então refúgio do outro lado da baía de Santos, nos morros do Guarujá. São levados, em perigosa travessia, por mar (a bordo de tartarugas-marinhas) e ar (por aves de todos os portes). Mas nada sai como esperado e os animais do Guarujá não os querem por lá. 

Nova travessia rumo aos jardins das praias de Santos. Novo, e ainda mais violento, conflito, mas dessa vez com os animais santistas que não querem saber de dividir espaço com desconhecidos, invasores, imigrantes, essa gentinha (segundo eles, claro). A única saída possível, sugerida por uma coruja, é que esses “estrangeiros” sigam para os morros do Marapé pelas águas do Canal 1. 

Segue então a derradeira aventura de Estranhos e nela pequenas tartarugas-marinhas aproveitam uma grande chuva para conseguir driblar as comportas do canal e assim levar os animais do Xixová-Japuí até o Marapé em segurança (e até deixando alguns pelo caminho, mais precisamente, no Orquidário). Tudo finalmente dá certo, ou quase, pois três tartarugas acabam sendo capturadas pelos humanos, esses selvagens, quando tentam regressar ao mar. Todos os animais da cidade fazem uma espécie de minuto de silêncio para os colegas que, presos no aquário da cidade, nunca mais serão livres. Gesilda, a pequena aranha negra, sobrevive para contar a história. 

Descrevendo assim, Estranhos não parece nada com literatura infantil. Diferente de A Revolução dos Bichos ou Os Saltimbancos, o livro de Luiz Antonio Barros é de um duro realismo até para adultos. Não existem muitas chances de um mundo melhor para os animais. Só se conseguirem, talvez, ficar o mais longe possível dos humanos. Ou aperfeiçoarem um senso de comunidade próprio, afinal mesmo entre os animais podem acontecer (e certamente acontecerão) brigas. A natureza também não é sopinha no mel. 

No entanto, a delicadeza utilizada por Barros para contar esse pequeno épico santista faz um contrabalanço perfeito aos assuntos difíceis, atuais e necessários que trata, tanto políticos quanto sociais e ambientais. É o cuidado com a forma unido ao respeito pela inteligência das crianças, e é justamente dessa forma que alcança, de igual para igual, o exigente público infantil. Como se tudo isso não fosse o suficiente, Estranhos é ilustrado e diagramado com um esmero expressionista por Alex Gyurkovicz. Parece um sonho. Será que aranhas sonham?

O livro Estranhos será lançado em Santos no dia 12 de agosto, na Realejo Livros (Rua Marechal Deodoro, 2)