o segundo texto que fiz pra edição de abril da Monet foi também a capa da revista e trata da jornada premiada de Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, o primeiro filme brasileiro a ganhar um Oscar. participação especial da colega Flávia Guerra.
TOTALMENTE PREMIADO
Em um dos muitos eventos pré-Oscar, Ralph Fiennes, em campanha por Conclave, deixou a inibição inglesa de lado e interpelou Fernanda Torres, em campanha por Ainda Estou Aqui. “Você é fabulosa”, disse o ator. A carioca tijucana baixou na atriz que pegou as bochechas de Fiennes e disparou “Repete!”. “Você é maravilhosa”, acrescentou. “Obrigada, já ganhei a noite”, finalizou, toda surpresa e orgulhosa. Mas tanto Fernanda Torres quanto Ainda Estou Aqui ganharam muito mais que uma noite de elogios. Ambos tomaram o mundo de uma forma nunca vista antes por um filme brasileiro - nem com Central do Brasil, dirigido pelo mesmo Walter Salles, 25 anos atrás -, e ainda levaram, por exemplo, um prêmio em Veneza, um Globo de Ouro e um Oscar.
Mas a história de Ainda Estou Aqui teve início em 2015 quando Walter Salles leu o recém-lançado novo livro do amigo Marcelo Rubens Paiva. As famílias Salles e Paiva se conhecem desde a década de 1960, e as crianças iam de uma casa para outra, no Rio de Janeiro. Então toda a ambientação do livro era muito próxima a Walter, que também conhecia a macro história da família, principalmente sobre o desaparecimento, tortura e assassinato do congressista Rubens Paiva, pai de Marcelo, pelo braço forte e mão amiga da ditadura, em 1971. O que Walter não sabia era da história íntima de Eunice Paiva, a mãe de Marcelo.
Porque o livro é sobre a história da família, mas é, acima de tudo, a odisseia de como Eunice, viúva com pouco mais de 40 anos e mãe de cinco filhos, ultrapassou uma tragédia, manteve a família unida, tornou-se advogada e trabalhou pelos direitos humanos dos desaparecidos durante a ditadura civil militar e seus familiares e pela causa indígena. Estoica, silenciosa e discretamente. “As mulheres vão sempre muito mais longe do que os homens. Então, minha tendência é gravitar em torno de filmes com protagonistas femininas, porque elas representarem uma forma de inteligência e uma vivência de mundo que me atrai muito mais do que o universo masculino”, disse Walter em entrevista para o Valor, em janeiro deste ano.
Já Marcelo decidiu escrever o livro, pois era necessário preservar a memória de quem a estava perdendo. De um lado, a própria Eunice, que foi diagnosticada com Alzheimer no início dos anos 2000 (ela morreu em 2018, aos 89 anos). Por outro, o próprio país que, em 2015, começou a ver certos setores da sociedade tentando relativizar ou mesmo glorificar a ditadura. Esse encontro-choque-reconstrução da memória, tanto de uma família quanto de um país, acabou virando o cerne de Ainda Estou Aqui.
O roteiro do filme começou a ser desenvolvido em 2017 por Murilo Hauser e Heitor Lorega para a VideoFilmes de Walter e, em 2021, foi apresentado ao mercado no Festival de Cannes. A expectativa por um novo filme de Walter Salles filmado no Brasil – seu longa brasileiro anterior foi Linha de Passe, de 2008 – resultou na fácil pré-vendas dos direitos do filme para distribuidores independentes de 21 territórios, compromisso da Sony Classics para distribuição nos Estados Unidos, e parcerias com a Globoplay, RT Features e três produtoras francesas. Todo esse movimento financiou parte dos custos de uma produção independente que não utilizou nenhum recurso público e foi assim que as 16 semanas de filmagem de Ainda Estou Aqui tiveram início em meados de 2023.
A MEMÓRIA E O PRESENTE
Filmado cronologicamente em locações no Rio de Janeiro, Ainda Estou Aqui marcou o terceiro encontro de Walter Salles com Fernanda Torres (os anteriores, Terra Estrangeira e O Primeiro Dia, são do início e do final dos anos 1990) e o primeiro do cineasta com Selton Mello. E tudo ocorreu na maior tranquilidade, apesar do tema duro e urgente. Então, num piscar de olhos, o filme teve sua estreia mundial na mostra competitiva do Festival de Veneza em setembro do ano passado, ganhou uma emocionante salva de palmas de 10 minutos e levou um prêmio para o seu roteiro. Foi o pontapé inicial para uma montanha russa de emoções, viagens ao redor do mundo, jetlags, entrevistas, exibições, noites de gala, prêmios e festivais que sugaram o trio Walter-Fernanda-Selton por cerca de seis meses.
“Como disse o próprio Walter na coletiva que mediei em Los Angeles, a campanha de Central do Brasil foi orgânica, espontânea, as coisas iam acontecendo. Nem usavam a palavra ‘campanha’ naquela época. De lá pra cá, o mundo mudou muito e as campanhas também. Ficaram mais agressivas, mais estratégicas e com um investimento muito maior. Para se ter uma ideia, Anora custou US$ 6 milhões para ser feito e US$ 18 milhões para promovê-lo ao Oscar”, explicou Flávia Guerra, crítica de cinema, colunista do Splash/UOL e da BandNews FM e apresentadora do podcast Plano Geral.
Flávia Guerra, Walter Salles, Fernanda Torres e Selton Mello na coletiva para imprensa no dia seguinte ao Oscar
“No caso de Ainda Estou Aqui foi tudo mais pensado e muito bem pensado estrategicamente para colocar o filme no centro da cinefilia, né? Foi uma campanha para valorizar o filme e para fazê-lo ser conhecido. Não foram festas, jantares e tal”, disse a jornalista que ainda relembra uma série de “embaixadores” do filme em exibições especiais mundo afora: Sean Penn, Wim Wenders, Guillermo Del Toro, Olivier Assayas, Valeria Golino, Alfonso Cuáron e Alexander Payne.
Mas a grande porta voz do filme foi, sem sombra de dúvida, a atriz Fernanda Torres. Sua elogiadíssima atuação como Eunice Paiva premiada no Globo de Ouro e suas carismáticas aparições em programas televisivos americanos como o de Jimmy Kimmel, bem como sua espirituosa presença nas redes sociais, a fizeram um fenômeno mundial. Quem diria que a Vani de Os Normais e a Fátima de Tapas & Beijos teria fãs como Ariana Grande, Carey Mulligan, Sarah Paulson, Jessica Chastain e Tilda Swinton.
“Fernanda é uma personalidade muito autêntica e acho que essa autenticidade foi ganhando as pessoas. Ela foi internacionalmente o que ela é no Brasil. E muito divertida e articulada, defendendo o tema, o filme, falando com muita propriedade e com humildade ao mesmo tempo. Honrando, como ela fala, o legado de Eunice. Sem falar que ela estava absolutamente bem assessorada em questão de estilo. Um estilo sóbrio que tem a ver com ela e também com a personagem. Tudo foi impecável. Foi um alinhamento dos planetas raro de se ver”, conclui Guerra.
Ainda mais raro é unir tamanho prestígio mundial e elogios da crítica com sucesso de bilheteria. No início de março deste ano, Ainda Estou Aqui ultrapassou a marca de R$ 200 milhões arrecadados mundialmente, sendo que pouco mais da metade veio aqui do Brasil. O público brasileiro, que tão fervorosamente torceu por Fernanda Torres e comemorou o Oscar como se fosse gol de final de Copa, manteve o filme em 500 salas de cinema após vinte semanas do lançamento. A vida realmente presta.