terça-feira, 8 de abril de 2025

é preciso dar um jeito, meu amigo

o segundo texto que fiz pra edição de abril da Monet foi também a capa da revista e trata da jornada premiada de Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, o primeiro filme brasileiro a ganhar um Oscar. participação especial da colega Flávia Guerra.

TOTALMENTE PREMIADO

Em um dos muitos eventos pré-Oscar, Ralph Fiennes, em campanha por Conclave, deixou a inibição inglesa de lado e interpelou Fernanda Torres, em campanha por Ainda Estou Aqui. “Você é fabulosa”, disse o ator. A carioca tijucana baixou na atriz que pegou as bochechas de Fiennes e disparou “Repete!”. “Você é maravilhosa”, acrescentou. “Obrigada, já ganhei a noite”, finalizou, toda surpresa e orgulhosa. Mas tanto Fernanda Torres quanto Ainda Estou Aqui ganharam muito mais que uma noite de elogios. Ambos tomaram o mundo de uma forma nunca vista antes por um filme brasileiro - nem com Central do Brasil, dirigido pelo mesmo Walter Salles, 25 anos atrás -, e ainda levaram, por exemplo, um prêmio em Veneza, um Globo de Ouro e um Oscar. 

Mas a história de Ainda Estou Aqui teve início em 2015 quando Walter Salles leu o recém-lançado novo livro do amigo Marcelo Rubens Paiva. As famílias Salles e Paiva se conhecem desde a década de 1960, e as crianças iam de uma casa para outra, no Rio de Janeiro. Então toda a ambientação do livro era muito próxima a Walter, que também conhecia a macro história da família, principalmente sobre o desaparecimento, tortura e assassinato do congressista Rubens Paiva, pai de Marcelo, pelo braço forte e mão amiga da ditadura, em 1971. O que Walter não sabia era da história íntima de Eunice Paiva, a mãe de Marcelo.

Porque o livro é sobre a história da família, mas é, acima de tudo, a odisseia de como Eunice, viúva com pouco mais de 40 anos e mãe de cinco filhos, ultrapassou uma tragédia, manteve a família unida, tornou-se advogada e trabalhou pelos direitos humanos dos desaparecidos durante a ditadura civil militar e seus familiares e pela causa indígena. Estoica, silenciosa e discretamente. “As mulheres vão sempre muito mais longe do que os homens. Então, minha tendência é gravitar em torno de filmes com protagonistas femininas, porque elas representarem uma forma de inteligência e uma vivência de mundo que me atrai muito mais do que o universo masculino”, disse Walter em entrevista para o Valor, em janeiro deste ano.

Já Marcelo decidiu escrever o livro, pois era necessário preservar a memória de quem a estava perdendo. De um lado, a própria Eunice, que foi diagnosticada com Alzheimer no início dos anos 2000 (ela morreu em 2018, aos 89 anos). Por outro, o próprio país que, em 2015, começou a ver certos setores da sociedade tentando relativizar ou mesmo glorificar a ditadura. Esse encontro-choque-reconstrução da memória, tanto de uma família quanto de um país, acabou virando o cerne de Ainda Estou Aqui.

O roteiro do filme começou a ser desenvolvido em 2017 por Murilo Hauser e Heitor Lorega para a VideoFilmes de Walter e, em 2021, foi apresentado ao mercado no Festival de Cannes. A expectativa por um novo filme de Walter Salles filmado no Brasil – seu longa brasileiro anterior foi Linha de Passe, de 2008 – resultou na fácil pré-vendas dos direitos do filme para distribuidores independentes de 21 territórios, compromisso da Sony Classics para distribuição nos Estados Unidos, e parcerias com a Globoplay, RT Features e três produtoras francesas. Todo esse movimento financiou parte dos custos de uma produção independente que não utilizou nenhum recurso público e foi assim que as 16 semanas de filmagem de Ainda Estou Aqui tiveram início em meados de 2023.

Walter Salles por Matt Sayles

A MEMÓRIA E O PRESENTE

Filmado cronologicamente em locações no Rio de Janeiro, Ainda Estou Aqui marcou o terceiro encontro de Walter Salles com Fernanda Torres (os anteriores, Terra Estrangeira e O Primeiro Dia, são do início e do final dos anos 1990) e o primeiro do cineasta com Selton Mello. E tudo ocorreu na maior tranquilidade, apesar do tema duro e urgente. Então, num piscar de olhos, o filme teve sua estreia mundial na mostra competitiva do Festival de Veneza em setembro do ano passado, ganhou uma emocionante salva de palmas de 10 minutos e levou um prêmio para o seu roteiro. Foi o pontapé inicial para uma montanha russa de emoções, viagens ao redor do mundo, jetlags, entrevistas, exibições, noites de gala, prêmios e festivais que sugaram o trio Walter-Fernanda-Selton por cerca de seis meses.

“Como disse o próprio Walter na coletiva que mediei em Los Angeles, a campanha de Central do Brasil foi orgânica, espontânea, as coisas iam acontecendo. Nem usavam a palavra ‘campanha’ naquela época. De lá pra cá, o mundo mudou muito e as campanhas também. Ficaram mais agressivas, mais estratégicas e com um investimento muito maior. Para se ter uma ideia, Anora custou US$ 6 milhões para ser feito e US$ 18 milhões para promovê-lo ao Oscar”, explicou Flávia Guerra, crítica de cinema, colunista do Splash/UOL e da BandNews FM e apresentadora do podcast Plano Geral.

Flávia Guerra, Walter Salles, Fernanda Torres e Selton Mello 
na coletiva para imprensa no dia seguinte ao Oscar

“No caso de Ainda Estou Aqui foi tudo mais pensado e muito bem pensado estrategicamente para colocar o filme no centro da cinefilia, né? Foi uma campanha para valorizar o filme e para fazê-lo ser conhecido. Não foram festas, jantares e tal”, disse a jornalista que ainda relembra uma série de “embaixadores” do filme em exibições especiais mundo afora: Sean Penn, Wim Wenders, Guillermo Del Toro, Olivier Assayas, Valeria Golino, Alfonso Cuáron e Alexander Payne.

Mas a grande porta voz do filme foi, sem sombra de dúvida, a atriz Fernanda Torres. Sua elogiadíssima atuação como Eunice Paiva premiada no Globo de Ouro e suas carismáticas aparições em programas televisivos americanos como o de Jimmy Kimmel, bem como sua espirituosa presença nas redes sociais, a fizeram um fenômeno mundial. Quem diria que a Vani de Os Normais e a Fátima de Tapas & Beijos teria fãs como Ariana Grande, Carey Mulligan, Sarah Paulson, Jessica Chastain e Tilda Swinton.

“Fernanda é uma personalidade muito autêntica e acho que essa autenticidade foi ganhando as pessoas. Ela foi internacionalmente o que ela é no Brasil. E muito divertida e articulada, defendendo o tema, o filme, falando com muita propriedade e com humildade ao mesmo tempo. Honrando, como ela fala, o legado de Eunice. Sem falar que ela estava absolutamente bem assessorada em questão de estilo. Um estilo sóbrio que tem a ver com ela e também com a personagem. Tudo foi impecável. Foi um alinhamento dos planetas raro de se ver”, conclui Guerra.

Ainda mais raro é unir tamanho prestígio mundial e elogios da crítica com sucesso de bilheteria. No início de março deste ano, Ainda Estou Aqui ultrapassou a marca de R$ 200 milhões arrecadados mundialmente, sendo que pouco mais da metade veio aqui do Brasil. O público brasileiro, que tão fervorosamente torceu por Fernanda Torres e comemorou o Oscar como se fosse gol de final de Copa, manteve o filme em 500 salas de cinema após vinte semanas do lançamento. A vida realmente presta.

amor, palavra prostituta

na edição de abril da revista Monet tive alegria dupla, dois textos (salve Luís Alberto Nogueira, hermano de longa data). o primeiro, que posto aqui, foi sobre Anora, o grande vencedor do Oscar de 2025. o segundo foi sobre Ainda Estou Aqui, o nosso grande vencedor do Oscar de 2025 (é a próxima postagem). 

agradecimentos a Odair José (o título do texto) e Carlos Reichenbach (o título dessa postagem). sem mais delongas...

EU VOU TIRAR VOCÊ DESSE LUGAR

A 97ª premiação do Oscar, que aconteceu na noite de 3 de março, teve muitos momentos históricos e inéditos: o primeiro negro a ganhar um Oscar de Melhor Figurino (Paul Tazewell por Wicked), o primeiro Oscar para a Letônia (Flow, Animação), o primeiro Oscar para o Brasil (Ainda Estou Aqui, Filme Estrangeiro), o mais longo discurso (Adrien Brody, Melhor Ator em O Brutalista) e a primeira vez que uma só pessoa levou quatro Oscar na mesma noite por um mesmo filme. E nesse caso estamos falando de Sean Baker, o premiado diretor, roteirista, editor e co-produtor de Anora, filme que venceu ainda mais um Oscar, o de Melhor Atriz para Mikey Madison.

Quando subiu pela quarta e derradeira vez ao palco do Dolby Theatre, Baker parecia anestesiado por tanta alegria e surpresa. “Quero agradecer à Academia por reconhecer um filme verdadeiramente independente. Este filme foi feito com sangue, suor e lágrimas de incríveis artistas independentes. Vida longa ao cinema independente!”, disse e fez questão de mencionar o orçamento total de Anora: US$ 6 milhões (dinheiro que provavelmente não pagaria a alimentação para elenco e equipe de qualquer filme ou série da Marvel). 

Durante coletiva para a imprensa brasileira no dia seguinte ao Oscar, a atriz Fernanda Torres seguia curtindo uma certa ressaca de alegria quando relembrou a noite anterior. “Esse Oscar foi muito especial porque foi uma celebração do cinema independente. O discurso do Sean Baker, a atriz que a [Mikey] Madison é. Ela é muito especial. A maneira que eles fizeram Anora é a mesma maneira que a gente fez Ainda Estou Aqui. É cinema de grupo. Eles tinham um budget pequeno e eles fizeram aquilo, eles todos, como a gente”, e mencionou ainda dois outros filmes independentes premiados da noite, a animação letã Flow e o documentário palestino-israelense No Other Land

“Nessa campanha encontrei o Sean Baker algumas vezes e ele me disse que amou o nosso filme. Acho que porque ele reconhece o cinema independente que o Walter [Salles Jr.] também faz. Então, sinto que o Ainda Estou Aqui é um primo de Anora. O deles é sobre a busca por afeto. O nosso é sobre afeto”, afirmou Torres. 

Enquanto a atriz brasileira falava na coletiva, em outro canto de Los Angeles, a jovem protagonista de Anora, a atriz Mikey Madison, buscava algum sentido no caos. “Ainda me sinto flutuando como num sonho. Foi uma noite muito surreal e realmente preciso de um tempo pra digerir a magnitude disso tudo. Claro que me sinto honrada e muito feliz, mas totalmente em choque”, disse em entrevista para a Hollywood Reporter. “Amo todas essas mulheres [que estavam na categoria] e suas performances, fiquei tão feliz de estar junto delas. Vi Fernanda [Torres] e nos abraçamos. Troquei mensagens com Demi [Moore], ele foi muito doce, muito querida. Amo muito ela”. 

Os cinco Oscar ganhos por Anora foram o desfecho de um conto de fadas indie que teve início com a Palma de Ouro no Festival de Cannes em maio de 2024. Ao total, o oitavo filme de Sean Baker amealhou, segundo levantamento do site Rotten Tomatoes, 196 prêmios. Mas a história, como sempre, começou antes.

CORTA PARA O PASSADO, DIRETOR 

Apaixonado por cinema desde criança, quando sua mãe o levou para assistir alguns clássicos filmes de terror produzidos pela Universal na década de 1930 (Drácula, Frankenstein, A Múmia, etc), Sean Baker trabalhou na juventude como projecionista (aquele que mostra) e taxista (aquele que ouve), e já adulto editou vídeos de casamento (aquele que conta histórias). Juntou tudo isso pra fazer faculdade em ‘film studies’ pela renomada New York University (NYU), mas acabou trancando o ensino superior em 1992 com o objetivo de ganhar experiência prática, e lá se foi trabalhar em filmes institucionais e publicidade, e só se graduou em 1998. 

Dois anos depois, aos 29 anos, dirigiu seu primeiro longa, Four Letter Words. Nos anos 2000 vieram mais dois longas, Take Out (2004) e Prince of Broadway (2008). Os três filmes que fez nos anos 2010 começaram a lhe dar alguma fama no cenário independente americano e mundial: Starlet (2012), Tangerina (2015) e Projeto Flórida (2017), uma história protagonizada por Willem Dafoe. Durante a pandemia, filmou Red Rocket (2021) e começou a trabalhar no roteiro do que viria ser Anora

A ideia original, pensada em parceria com o amigo e ator de todos os seus filmes Karren Karagulian, era de fazer um filme sobre gângsters russos em Nova York. Mas a história não foi para frente e Baker lembrou que alguns dos vídeos de casamento que editou eram da comunidade russa que vive em Brighton Beach, região sul do Brooklyn. Soube então, via Karagulian, sobre uma noiva que foi sequestrada no dia de seu casamento como ameaça da máfia russa. E pensou em relações de poder, em dinheiro, em sexo por dinheiro, e no mundo da prostituição que tem sido frequente em seus filmes desde Starlet, em 2012. 

Mas Baker queria começar a escrever só quando já tivesse o rosto da protagonista e ela veio, doce e raivosa, numa descompromissada sessão de Scream (2022). Era Mikey Madison. Baker e sua mulher, a produtora Samantha Quan, lembraram que tinham visto Madison alguns anos em um papel pequeno em Era Uma Vez em Hollywood (2019), de Quentin Tarantino. 

“Não queria fazer um filme de gangster russo - já foi feito muitas vezes -, mas ainda queria brincar com os temas de poder, e o que é poder nesta sociedade capitalista senão dinheiro? Então, o que colocaria a protagonista, uma garota de programa, nessa posição? Ela se casa com uma família, mas que tipo de família seria se não fosse uma família de gangster? Ah, a família de um oligarca russo! Ela se casa com o filho de um oligarca russo, um garoto que nunca cresceu”, disse Baker em entrevista para a revista Filmmaker. 

Baker foi então juntando referências mais ou menos diretas para criar Anora, desde a leveza do improviso de Robert Altman à liberdade de Jess Franco, desde o conto de fadas de Uma Linda Mulher a uma família poderosa exigindo respeito em Um Príncipe em Nova York, da luz suja de clássicos urbanos dos anos 1970 como Operação França e O Sequestro do Metrô, de jovens mulheres donas de seu próprio nariz em comédias italianas dos anos 1960 e 70 (A Garota com a Pistola e Por Um Destino Insólito, por exemplo).

Desse liquidificador cinematográfico saiu Anora, um filme que estende o tempo para que seus personagens, e sua história, respirem. Que abraça personagens marginalizados. E que se recusa a dar respostas fáceis para conexões humanas complexas.