sexta-feira, 5 de julho de 2013

mexidão #23

o bicho ainda tá pegando, o couro ainda tá comendo, muita coisa ainda está para ser entendida, mas acho que consegui nesse texto, publicado originalmente em 19 de junho, reunir algumas ideias sobre esse tumultuado e revelador mês de 2013. agora é esperar o tempo...

foto Everton Nunes

O QUE JUNHO DE 2013 PODE NOS ENSINAR

Histórico. Lindo. Memorável. Fantástico. Pacífico. Foram muitos e positivos os adjetivos usados para definir o que ocorreu em São Paulo na segunda-feira, 17 de junho, quando mais de 100 mil pessoas tomaram as ruas da maior cidade do país no “Quinto Grande Ato Contra o Aumento das Passagens”. Altamente recomendáveis as reportagens dos colegas Pedro Alexandre Sanches (“São Paulo, 17 de junho de 2013: a farsa e o pacto”) e Ana Aranha (“Protestos de junho, um retrato impossível”) e o relato da urbanista Raquel Rolnik (“São Paulo: a voz das ruas e a oportunidade de mudanças”).

Ontem, 18 de junho, durante o “Sexto Grande Ato”, parece que parte do sonho acabou, afinal o ato que começou na Praça da Sé acabou se dividindo esquizofrenicamente. Enquanto na Avenida Paulista reinava o mesmo clima paz & amor da segunda, com ênfase na questão do transporte e da cidade, no Centro um grupo sem conexão com o Movimento Passe Livre tentou invadir a Prefeitura. Manifestantes contrários à violência conseguiram conter os mais exaltados, houve discussão e suspeitas que os vândalos seriam policiais disfarçados ou militantes de extrema-direita. Um carro da TV Record foi queimado, bancos foram depredados, lojas saqueadas e duas horas depois chegou o Choque da PM varrendo tudo com bombas e tiros até alcançar a Paulista. O jornalista Pedro Alexandre Sanches ficou no lado alegre do ato e escreveu “São Paulo, 18 de junho de 2013: pororoca”.

Mesmo que certas coisas a gente só entenda com o passar do tempo e o desenrolar dos acontecimentos, já é possível tirar alguns ensinamentos desta impressionante série de manifestações que se espalharam por todo o país. Vamos lá...


A rua é o palco. Isso não é novidade nem aqui, nem na China, mas gerações mais novas ainda não tinham vivenciado o poder catártico de tomar a rua para se fazer ouvir. Porque é na rua que a sociedade se encontra e se confronta, e é na rua que a vida (social) acontece. Portanto, estar na rua é tomá-la para si e assumir responsabilidades individuais e coletivas, além de ser um chamado por uma cidade para todos (e não só para os carros).

Redes sociais fazem a diferença. Os mais céticos sempre criticaram o “ativismo de sofá” e as petições online, mas foram os movimentos nas redes sociais que deram início a esta série histórica de manifestações no Brasil. Nesse novo estado das coisas, o Facebook tem o papel de organizar os eventos e reunir as pessoas em torno de uma causa (ou de várias causas), enquanto o Twitter é uma rápida e poderosa ferramenta de informações em tempo real. Os dois juntos servem ainda para descentralizar o noticiário e furar o bloqueio da parcialidade da grande imprensa.

Não ter líderes é bom. Essa talvez seja uma das características mais novas e transformadoras das atuais manifestações. Também é assustadora para quem está acostumado a ser guiado (ou pautado) por líderes carismáticos e salvadores da pátria. É o tal “existe um líder dentro de você” cantado por Chico Science ao fim de “Todos Estão Surdos” (Roberto e Erasmo Carlos) só que numa versão mais complexa com manifestantes-líderes que precisam ser também gestores da própria ação coletiva. É uma interessante e rica combinação que já está criando uma nova geração de ativistas de esquerda sem ligações partidárias (afinal uma luta por transporte gratuito e fora da iniciativa privada é sim uma bandeira de esquerda).

Política pode ser diversão. Muita gente tem se mostrado incomodada com o ar festeiro de grande parte das manifestações. Bobagem. Palavras de ordem podem ter humor, fantasias são bem vindas e a sisudez é apenas um jeito dos poucos de sempre se manterem no comando.
Qual o problema de uma bateria segurar uma levada de funk carioca acompanhada por um trompete que toca o refrão de “Seven Nation Army” (White Stripes)? Não é o humor, não é a festa que esvaziam um movimento social. Deixem os meninos e meninas brincarem com a política. Talvez seja esse um dos caminhos para novas gerações entenderem que política é parte indissociável do cotidiano de todos e não de alguns “profissionais”.


Polícia Militar não serve para nada. Quer dizer, serve para bater, humilhar e oprimir como já foi visto em São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Porto Alegre e tantas outras cidades. Em reportagem da TV Folha, o vereador e pessoa violenta Conte Lopes afirma que “a Tropa de Choque [da PM] não foi feita para dialogar”. Bem, a base do estado democrático é o diálogo, portanto não é mais possível tolerar a existência de um aparelho repressor contra o próprio povo (e em relatório do ano passado, a ONU recomendou ao Brasil a extinção da PM por execuções sumárias e desrespeito aos diretos humanos). Em São Paulo ficou muito claro que a ausência da PM não resultou em nada próximo de baderna, tanto que um dos gritos mais recorrentes na segunda foi: “Que coincidência! Sem polícia não teve violência”.

Uma causa de cada vez. O surgimento do bordão “não é só por 0,20” foi uma resposta à violência policial em São Paulo na quinta, 13 de junho. Foi um jeito de falar que era também pela liberdade de manifestação. Mas o que pouca gente imaginava era que isso seria usado por grupos oportunistas e a grande imprensa para tentar tirar o foco dos atos e, consequentemente, esvaziá-lo. Já na bela manifestação de segunda foi possível ver inúmeros caroneiros – inclusive com bandeiras preconceituosas, vejam exemplos no tumblr Orgulho de Ser Coxinha – que nem se interessavam pela questão levantada pelo Movimento Passe Livre. A violenta esquizofrenia de ontem, 18 de junho, foi resultado desse início de descaracterização do movimento. É preciso centrar forças e evitar bandeiras genéricas.

“O povo acordou” é uma grande besteira. Não, o “povo” não acordou e um dos melhores cartazes de segunda deixou isso bem claro (“Só agora você acordou? A periferia nunca dormiu”). Participar de um ou dois atos na rua é bonito, é legal, mas não significa tomar consciência.

É preciso tomar cuidado com autoritarismos. A demonização de partidos políticos nas manifestações é uma grande violência e uma enorme burrice. Estamos numa democracia e se um cretino pode levantar um cartaz pedindo a volta da dos militares, qual é o problema de bandeiras do PSTU, PCO, PSOL, PT ou PSDB? Todos estão sendo oportunistas, pro mal ou pro bem, e todos precisam ter direito a voz, mesmo que você (ou eu) não concorde. Também ocorreu violência contra órgãos da imprensa e aí segue um recado para quem não deixou, por exemplo, o repórter Caco Barcellos trabalhar: você não é diferente da PM que atirou em jornalistas na quinta. Isso sem falar no patriotismo de fachada de quem veste a bandeira do Brasil ou canta o hino, mas só pensa no próprio umbigo. Nessas horas é sempre bom lembrar a célebre frase do pensador inglês Samuel Johnson (1709-1784): “O patriotismo é o último refúgio de um canalha”.

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