terça-feira, 12 de dezembro de 2023

scorsese mestre demais

novo frila pra Revista Monet e dessa vez sobre um dos mestres mais mestres de todos os mestres, o grande Martin Scorsese, e sua obra prima mais recente, o dolorido e grandioso Assassinos da Lua das Flores. é uma história de amor, fraqueza, ambição, capitalismo, racismo e muito mais. impressiona, acima de tudo, o vigor com que Scorsese segue dirigindo e pensando do alto de seus pouco mais de 80 anos.


poster alternativo de Assassinos da Lua das Flores

UM ESPETÁCULO ÍNTIMO
 
Martin Scorsese reuniu em Assassinos da Lua das Flores seus dois atores preferidos para recriar um capítulo sangrento e pouco conhecido da história americana
 
Aos 81 anos de idade, Martin Scorsese acumula mais de 5 décadas de carreira, quase 30 longas, e ainda documentários, séries de TV/streaming, curtas, comerciais e até clipes. Mas em nenhum momento de sua longa carreira ele se mostrou tão disposto e empenhado em divulgar um filme quanto o seu trabalho mais recente, o épico Assassinos da Lua das Flores. Programas matinais, podcasts, talk shows, quem lhe chamar pode ter certeza que lá ele estará, animado e falando sem parar.
 
Seu ânimo não é gratuito, afinal o longa é um projeto caro ao seu coração desde que o abraçou em 2017, mesmo ano do lançamento do livro de não ficção que o originou: Killers of the Flower Moon: The Osage Murders and the Birth of the FBI, de David Grann. O filme começou de um jeito, mas não fluía, não ia para frente, e enquanto Scorsese não desenrolava o novelo, ainda dirigiu O Irlandês. Tudo estava pronto para as filmagens de Lua das Flores começarem finalmente em março de 2020, mas a pandemia derrubou tudo e acabou, por mais irônico que possa parecer, salvando o filme.
 
“O livro é maravilhoso, mas no começo eu, enquanto cineasta, senti que estava fazendo algo que já tinha visto antes. E então, quando já tínhamos quase dois anos de trabalho, Leonardo (DiCaprio) uma hora me perguntou - onde está o coração do filme? Foi aí que vi que a história da criação do FBI, a partir dos assassinatos de membros da tribo Osage, definitivamente não era e que o coração do filme estava na história de amor, confiança e traição entre Mollie e Ernest Burkhast”, disse Scorsese após a primeira apresentação pública do filme, em maio, no Festival de Cannes. Ao seu lado, sua Mollie (Lily Gladstone) e seu Ernest
 (Leonardo DiCaprio).

 

A pandemia serviu, nesse caso específico, para que Scorsese tivesse tempo para maturar, ao lado do roteirista Eric Roth, a total mudança de foco do filme. “Esse tempo serviu para pensar o que é importante na vida, então esse filme nasceu disso, mudou e cresceu por causa disso”, completou. As filmagens começaram pra valer em abril de 2021 e terminaram em outubro, e antes, durante e depois, Scorsese mergulhou profundamente na história trágica dos Osage.
 
Ficou sabendo que após forçados deslocamentos impostos pelo governo americano no século 19, os Osage foram parar naquela região esquecida e pouco fértil das pradarias de Oklahoma (Scorsese filmou Lua das Flores nas locações reais da história). Contavam que ali não seria perturbados pela invasão branca ao meio oeste do país. Só que, no início do século 20, petróleo foi encontrado na região e os Osage ficaram ricos, muito ricos. No entanto, os nativos eram considerados “incompetentes” judicialmente, um ótimo pretexto para que tutores brancos administrassem seu dinheiro e suas posses. Não demorou muito para surgirem casamentos interraciais, todos de olho na herança da terra e da sua crescente produção de petróleo.
 
Entram em cena, Mollie, uma nativa Osage, e seu marido branco Ernest. O casal é o centro da história sobre uma série de assassinatos de homens, mulheres e crianças Osage – alguns parentes de Mollie, tais como irmãs e mãe – em poucos meses do ano de 1921. Execuções, “acidentes”, envenenamento, explosões, um pouco de tudo aconteceu aos Osage e a alguns apoiadores brancos da tribo. Numa tentativa desesperada, e já com saúde debilitada, Mollie consegue ir a Washington D.C. e chama atenção do governo federal para essas mortes. Ela havia herdado os direitos de suas parentes e, consequentemente, se via como a próxima vítima.
 
Um jovem J. Edgar Hoover, chefe do Bureau of Investigation (futuro FBI), decidiu com alguma relutância pegar o caso, afinal de contas os territórios dos povos originários são de competência federal e as autoridades locais não faziam ou não queria fazer nada a respeito. Em investigação capitaneada por Thomas White (Jesse Plemons) não se demora muito para encontrar alguns responsáveis por alguns dos crimes e, para a surpresa dos próprios Osage, o principal se dizia grande amigo, defensor da tribo e influente cidadão de bem. Seu nome, William King Hale (Robert De Niro), tio de Ernest, marido de Mollie. Ernest, aliás, também foi condenado, e Mollie sobreviveu ao envenenamento de que estava sendo vítima.
 
Nada disso é spoiler, pois tudo que acontece em Assassinos da Lua das Flores é de saber público. O que importa a Scorsese não é quem matou, pois quase todos os brancos envolvidos com os Osage à época tiveram alguma responsabilidade direta ou indireta sobre os crimes. E ainda hoje não se sabe sobre a autoria da maiores dos crimes daquela época. O que importa é como manipulações, traições, racismo e violência estão no cerne da construção da América moderna.
 
“Eu queria fazer justiça aos Osage para que o espectador pudesse sentir a imensidão da tragédia. E também quis fazer um espetáculo, mas um espetáculo interno, quis essa combinação”, explica Scorsese sobre a combinação de grandes planos de paisagens e ação, com planos fechados de amor e abandono.
 
Na coletiva do filme em Cannes, também estava presente o atual líder dos Osage, Chief Standing Bear, que deu uma emocionada declaração. “Bem no início da produção do filme perguntei ao Sr. Scorsese qual era a visão dele sobre a história. Ele disse - vou contar uma história sobre confiança, confiança entre Mollie e Ernest, confiança entre o mundo exterior e os Osage, e a profunda traição dessa confiança. Meu povo sofreu muito e sofre até hoje as consequências desses acontecimentos. Mas hoje posso falar em nome dos Osage que Martin Scorsese e sua equipe restauram essa confiança e sabem que ela nunca será traída”.


SCORSESE E SEUS DUPLOS
 
Lily Gladstone, a Mollie de Assassinos da Lua das Flores, é a grande força silenciosa e moral do filme, então Scorsese confiou a dois de seus colaboradores mais habituais, Robert De Niro e Leonardo DiCaprio, o contraponto. Não é a primeira vez que Scorsese reuniu De Niro (protagonista de 10 de seus filmes) e DiCaprio (presente em 6), mas é o primeiro longa com os três juntos.
 
Antes, em 2015, Scorsese fez um curta em ritmo de comédia, e também uma espécie de comercial do gigantesco cassino Studio City em Macau, intitulado The Audition. Nele, De Niro e DiCaprio interpretam a si próprios e passam o tempo todo brigando, discutindo e ironizando um ao outro enquanto buscam impressionar Scorsese na disputa pelo papel principal em seu novo filme. Nada mais distante da realidade.
 
Foi De Niro que falou de DiCaprio para Scorsese pela primeira vez. Eles tinham acabado de trabalhar juntos em O Despertar de um Homem (1993) e De Niro, sempre muito lacônico até com amigos de longa data, falou maravilhas do garoto que tinha 18/19 anos à época. Oito anos depois, Scorsese chamou DiCaprio, já famoso pós-Titanic, para fazer trio com Daniel Day-Lewis e Cameron Diaz em Gangues de Nova York (2002).
 
De Niro era e sempre será o alter ego mais perfeito de Scorsese. São da mesma vizinhança, tem quase a mesma idade (o diretor é 9 meses mais velho que o ator) e estão envelhecendo juntos. Foram intensos e iconoclastas em sua primeira década de colaborações, desde Caminhos Perigosos (1973) a Rei da Comédia (1982), passando por Taxi Driver (1976), New York, New York (1977) e Touro Indomável (1980). Amadureceram com sangue nos olhos em Os Bons Companheiros (1990), Cabo do Medo (1991) e Cassino (1995). Após uma longa pausa, e agora ainda mais maduros, voltaram a trabalhar juntos em O Irlandês (2019) e Assassinos da Lua das Flores (2023). Se conhecem tanto que se entendem no olhar, em pequenos gestos e poucas palavras.
 
Já DiCaprio virou a nova cara etária – variando de 20 a 40 anos – dos protagonistas das últimas duas décadas na filmografia de Scorsese. Foi o jovem com sede de vingança em Gangues de Nova York (2002), o milionário torturado em O Aviador (2004), o policial na corda bamba em Os Infiltrados (2006), o delirante em Ilha do Medo (2010), o corrupto megalomaníaco em O Lobo de Wall Street (2013) e o marido manipulador, apaixonado e fraco em Assassinos da Lua das Flores (2023). A relação com Scorsese é um misto de figura paterna e mestre, e DiCaprio é mais de conversar, entender as motivações do personagem, mergulhar.
 
De Niro e DiCaprio são as maiores personificações dos mundos criados por Martin Scorsese. Um trio que produziu, sem forçar, uns 10 grandes filmes – contando com Assassinos da Lua das Flores, obviamente – e que brilham muito no alto da maravilha que é o cinema.

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