o novo frila pra Monet, e que saiu nesta edição de setembro da revista, tratou da amizade de décadas de Spike Lee e Denzel Washington e da sua quinta (e talvez última) colaboração: o elogiado Luta de Classes. saca só.
IRMÃOS DE SANGUE
O mais novo longa de Spike Lee, Luta de Classes, é também sua quinta colaboração com o ator-irmão Denzel Washington
Eles têm mais ou menos a mesma idade e muita coisa em comum. Spike Lee completou 68 anos em março e Denzel Washington fará 71 em dezembro, e foi no mesmo ano de 1989 que os dois estouraram para o mundo: Spike com Faça a Coisa Certa, seu terceiro longa como diretor, e Denzel com Tempo de Glória, filme que lhe deu o primeiro Oscar. Apenas um ano depois, o diretor e o ator se encontraram para o primeiro trabalho juntos, o estiloso Mais e Melhores Blues. Vieram depois Malcolm X, Jogada Decisiva, O Plano Perfeito e, o mais recente, Luta de Classes.
Cinco filmes juntos (em 35 anos) estabeleceram mais que uma ligação entre os dois. “Somos irmãos. A gente simplesmente faz o nosso lance porque nos conhecemos bem. Fora que nossas famílias são muito unidas”, afirmou Lee para a Deadline durante sua presidência no Festival de Cinema do Mar Vermelho em dezembro do ano passado. Nessa época, Luta de Classes ainda estava em pós-produção – a premiere mundial foi em Cannes, no mês de maio deste ano –, e Lee passou mais tempo lembrando do grande filme que fizeram, Malcolm X. E de algumas coisas que nunca lhe desceram a garganta.
“Eles sabem! Eles sabem quem deveria ter ganho!”, berrou o cineasta, meio rindo e meio sério, numa entrevista recente para a Newsweek. Ele estava obviamente falando de Denzel Washington e do Oscar que o ator não ganhou por sua atuação em Malcolm X na premiação de 1993 (quem levou foi Al Pacino por Perfume de Mulher). “Sem querer desrespeitar nenhum ator, mas acho que Denzel é o maior ator vivo atualmente. Quando estávamos fazendo o filme não víamos Denzel, víamos Malcolm X. Víamos o espírito de Malcolm quando Denzel respirava”, completou, mais calmo.
Intenso, controverso, revolucionário e, acima de tudo, íntegro, Malcolm X foi/é um dos ativistas dos direitos humanos mais importantes do século 20. Sua vida breve – foi assassinado em 1965, aos 39 anos – virou um épico de 3 horas e 22 minutos pelas mãos de Lee e Washington e causou grande impacto na comunidade negra norte-americana. Um dos impactados foi Ryan Coogler, diretor de Creed, Pantera Negra e Pecadores, que assistiu Malcolm X aos 5 anos e sua vida mudou. O filme acabou se transformando também na matriz de personagens que a partir de então se multiplicariam pela filmografia de Lee: o homem negro íntegro, heroico e trágico. O mais recente é David King, de Luta de Classes.
CÉUS E INFERNOS
Spike Lee recebeu de Denzel o roteiro de Luta de Classes quando ainda estava envolvido na produção de seu filme anterior, Destacamento Blood, pouco antes da pandemia. A ideia original era mais um remake do cultuado Céu e Inferno (1963), de Akira Kurosawa, mas Lee passou alguns anos reescrevendo para que seu filme fosse uma reinterpretação e não uma refilmagem (como fez em Oldboy – Dias de Vingança). Quando Denzel Washington, o retrato mais bem acabado do homem negro íntegro, entrou na jogada, tudo se acertou.
“Este é o quinto filme que fazemos juntos. Tem sido uma bênção esse trabalho conjunto entre nós, fazer filmes que as pessoas amam, que se destacam. Mas ele [Denzel] tem falado sobre aposentadoria...”, afirmou Lee ao jornal inglês The Guardian logo após a estreia do filme em Cannes dando a entender que Luta de Classes pode ser o último encontro deles nos cinemas.
No final de 2024, em turnê para divulgar Gladiador II, Washington realmente deu a entender que pode se aposentar como ator após finalizar certos projetos: o novo encontro com o irmão Lee; ser Othello no teatro e cinema; fazer outro Shakespeare, Rei Lear, no teatro ou cinema ou em ambos; trabalhar novamente com Antoine Fuqua (que o dirigiu em Dia de Treinamento e na trilogia O Protetor) em um épico sobre o general cartaginês Aníbal, o Terror de Roma; trabalhar pela primeira vez com Steve McQueen; e participar da saga Wakanda da Marvel em Pantera Negra 3.
De todos esses projetos, dois já ganharam vida. Um no teatro (Othello) e outro nos cinemas e streaming (Luta de Classes). E os dois acabaram se unindo de uma outra forma inusitada, pois Washington foi convocado por Lee de última hora para estreia, em competição, de Luta de Classes no Festival de Cinema de Cannes. Só que o tapete vermelho e a exibição do filme seriam em um dia, na França, e ele precisaria voltar rapidamente para Nova York para seguir com a temporada de Othello. Profissional que é, o ator compareceu e ainda recebeu, para sua surpresa e emoção, uma Palma de Ouro honorária, só que precisou sair antes do fim da sessão de estreia para pegar o voo de volta ao teatro.
O PREÇO DA INTEGRIDADE
Um dilema moral profundo é a base tanto de Céu e Inferno, de Akira Kurosawa, quanto de Luta de Classes, de Spike Lee. Um homem bem sucedido acredita que seu filho foi sequestrado quando lhe pedem resgate, só que os criminosos pegaram a pessoa errada e quem foi levado foi o filho de uma pessoa que trabalha para ele. Ele paga o resgate, e não consegue fechar um negócio tão sonhado, ou não paga o resgate e põe a vida do filho do amigo (que também é melhor amigo de seu filho) em risco? Eis a questão.
Jeffrey Wright, que interpreta o assistente do personagem de Denzel Washington, ficou muito mexido pelo dilema proposto por, no caso, Lee. “Esse é o mundo em que vivemos agora, onde todos estão à venda e tudo é transacional. Mas acho que podemos fazer melhor. Basta lembrar os filmes que ele [Lee] fez. Veja o que Malcolm X estava falando. Viemos de uma tradição que não se baseava no que você poderia fazer por si mesmo, mas no que você poderia fazer pela sua comunidade. Não se tratava de dinheiro, mas sim de amor”, disse Wright durante a coletiva do filme em Cannes.
Luta de Classes coloca o espectador no lugar de David King, o personagem de Washington, e o deixa livre para fazer sua escolha diante de tamanho conflito. Mas Lee deixa claro que precisam existir limites morais e, desde o poster do filme até as coletivas de imprensa, tem usado um ditado popular nos Estados Unidos: “all money ain’t good money” (ou, em bom português, “nem todo dinheiro é bom dinheiro”).
Mas enquanto Kurosawa coloca a discussão em um contexto realista, angustiante e policial, Lee opta pela estilização agitada de um thriller, e que ainda por cima traz ecos de outros filmes seus, tais como Faça a Coisa Certa, Febre da Selva, Irmãos de Sangue, Jogada Decisiva, A Hora do Show e Infiltrado no Klan (co-estrelado por John David Washington, filho de Denzel). É o ‘Spikeverso’ se desdobrando diante dos nossos olhos.
“Gosto de repetir que meu filme é uma reinterpretação do que o Kurosawa
fez, e que por sua vez é uma adaptação de um livro de um autor norte-americano.
Aconteceram muitas coisas de um para o outro. O meu é cheio de ação, tem aquela
tensão de fazer você roer as unhas, e é engraçado pra c*****”, disse Lee para o
ex-jogador de basquete Carmelo Anthony em seu programa ‘7pm in Brooklyn’. E
sabemos que quando Lee promete, Lee entrega.
Nenhum comentário:
Postar um comentário