segunda-feira, 28 de maio de 2012

um antônio na dança

e meu encontro com antônio nóbrega rendeu dois frilas. o da revista brasileiros de maio, que já postei aqui, e esse para o site revista de dança, das colegas flávia fontes e marcela benvegnu (agradecimentos também a alexandre staut que editou o texto). o texto que segue vai mais fundo nas questões que antônio nóbrega vem pensando e trabalhando no universo da dança.




CONSTRUINDO UMA DANÇA BRASILEIRA


Antônio Nóbrega está prestes a dar um passo e tanto. Em momento particularmente especial em sua vida - no qual comemora 60 anos de vida, 40 de carreira e 20 de seu Teatro e Instituto Brincante -, o multiartista olha para o quintal de sua casa em São Paulo e orgulhoso revela que um de seus muitos projetos para 2012 é a criação da Companhia Antônio Nóbrega de Dança. “Vai ficar esse nome mesmo”, e ri ligeiramente acabrunhado da, digamos assim, pouca originalidade do nome da companhia.


Pela primeira vez o pernambucano não dançará sozinho ou com alguém da família (a mulher e parceira Rosane Almeida ou a filha Maria Eugênia), e sim com outros dez homens e mulheres. “Estou agora ampliando a formação desses bailarinos no universo popular brasileiro e isso me cobra uma pedagogia, um método para codificar uma linguagem”, explica. Será, finalmente, o seu mais completo laboratório para a criação de uma Dança Brasileira, com letra maiúscula mesmo, junto de um espetáculo inédito com estreia prevista para meados de 2013.


Apesar de ter ficado conhecido como instrumentista, nos tempos do Quinteto Armorial na década de 1970, e depois também como ator e cantor, foi na dança que Nóbrega mergulhou mais profundamente no decorrer dos anos. “Só conheci e passei a me interessar pelo universo da cultura popular quando o Ariano Suassuna me chamou para fazer parte do Quinteto. Curiosamente comecei a me entender, a me deixar seduzir também pelo universo da dança do frevo, do caboclinho. Esse processo todo nasceu de um encantamento.”


Desde seus primeiros espetáculos solo - Figural e Brincante, ambos do início da década de 1990 -, a dança tem um papel fundamental na costura entre as manifestações culturais celebradas por Nóbrega. Mas foi a partir de meados dos anos 2000, principalmente com a série Danças Brasileiras (feita para a TV Futura) e o show Nove de Frevereiro, que o pernambucano colocou-a no centro de seu palco, o que culminou em 2009 no espetáculo Naturalmente – Teoria e Jogo de uma Dança Brasileira. Disso para a vontade (necessidade?) de uma companhia de dança para poder experimentar à vontade foi um pulo.





Só que Antônio Nóbrega é o tipo de artista que pensa bastante sobre o próprio ofício e para ajudar-lhe nessa tarefa conta com uma vasta biblioteca com tudo que alguém possa imaginar sobre a formação do Brasil. “A dança de nossos palcos ainda é de extração ocidental. Você não vê alguma coisa que traga uma representação simbólica do Brasil e quando traz é de uma maneira muito frágil. Não é assim com a música de Villa-Lobos ou a literatura de Guimarães Rosa, por exemplo. Além d’eu ter me sentido chamado corporalmente pela dança também me senti compelido a fazer essa reflexão, talvez até por conta dessa ausência.”


E desanda a falar sobre dança clássica e seu eterno viés academicista, tudo que foi norma no mundo até o fim do século 19. Sua cabeça não para. “O que não fazia parte desse universo a dança não acolhia. Em termos práticos, se a dança promove movimentos retilíneos... o que é curvo ou grotesco fica de fora. Mas isso é humano! O humano comporta um e outro. Mas isso era solapado por essa visão ocidental, cartesiana, tecnicista, cerebral.” Então faz uma pausa dramática no raciocínio, tambores invisíveis rufam ao longe e completa que “por isso no século 20 vem o rock, a dança moderna, a contemporânea, e tudo com muita força, a força do recalque. Os roqueiros são os bárbaros que não tiveram vez na cultura europeia.”


Cita alguns roqueiros bárbaros da dança, gente como Isadora Duncan (1877-1927), Marta Graham (1894-1991), Maurice Bejárt (1927-2007) e Pina Bausch (1940-2009), artistas que admira profundamente, mas que por serem norte-americanos ou europeus não enfiaram totalmente o pé no recalque (ou popular, torto, grotesco, subalternizado pela cultura hegemônica, etc.) “Existem pessoas tentando isso, procurando no Oriente e na África, mas acho que nós – e aí vai meu elogio ao nosso país – e as nações jovens do mundo temos as melhores oportunidades porque isso está entranhado na gente.” 


Claro que essa imagem “roqueira” é muito distante do discreto, austero e ágil pernambuco-paulistano pai de dois adultos (Gabriel tem 28, Maria Eugênia 25) e também avô. “Não estou dizendo com isso que sou melhor que os outros porque não sei se vou conseguir, não sei se tenho capacidade pra isso. Mas com essa Companhia de Dança espero trazer notícias. Pode ser uma doidice minha, mas também pode ser uma reflexão sensata.” Pausa para respirar.


É um passo e tanto esse da busca pela criação de uma linguagem (brasileira) na dança. Qualquer outra pessoa estaria em pânico. Mas o sereno e metódico Antônio Nóbrega ainda este ano protagoniza um show em homenagem a Luiz Gonzaga e um longa inspirado no espetáculo Brincante (em sua quarta colaboração com o cineasta Walter Carvalho), além de uma série de eventos em seu teatro na Vila Madalena paulistana.


“Sou otimista e acho que a gente tem que ser assim. Porque, como ser humano, já temos de saída elementos pra gente ser pessimista: a morte, o corpo que é frágil, uma psique cada vez mais atormentada. Pra encarar tudo isso é preciso ser conscientemente otimista e acreditar que essa experiência pode até se acabar, mas que pelo menos tem que ser produtiva no seu dia a dia. Sou um otimista por compulsão”, e pede licença para ver quem está tocando a campainha. Ainda não é o terapeuta corporal que está esperando para uma aula logo mais.


“Não sei se a minha prolixidade vai te confundir”, confessa ao voltar. Digo para não se preocupar e ouço atentamente enquanto mais uma vez retorna ao passado para falar que durante os três primeiros séculos do “fazimento” do Brasil as heranças negras, indígenas e ibéricas se miscigenaram livremente pelas ruas, senzalas e arraiais do país. E que esses encontros ganharam um novo impulso com a chegada da Família Real (a cultura hegemônica) em 1808. Porém, segundo ele, “até hoje esses encontros são inferiores às suas potencialidades.” Em outras palavras, a cultura mestiça da rua pode e deve invadir ainda mais esse universo branco ocidental.


“Agora, das duas uma, ou não há um dimensionamento hiperlativo dessa cultura ou eu a dimensiono hiperlativamente”, e solta uma gargalhada daquelas sinceras. De repente, o rosto volta a ficar sério como se um pensamento muito importante estivesse sendo formulado naquele exato momento. Na mosca. “A arte não vai mudar a ordem das coisas, mas tem o papel de ajudar a gente a ter uma consciência um pouco mais completa das coisas para fazer a mudança”, diz Nóbrega, muito certo de seus próprios passos. 


Nenhum comentário: