segunda-feira, 3 de julho de 2017

a avó e a boi

foi no dia 10 de junho que @EduardoHanzo começou a contar uma história no twitter sobre uma rixa de décadas entre sua avó e uma vizinha, carinhosamente apelidada [pela vó] de "a boi". tão cômica quanto surrealista, a história viralizou rapidamente no mesmo dia e Hanzo seguiu acrescentando novas peripécias das duas no dia seguinte. pouco tempo depois a saga da avó e da boi chegou aos 'moments' do twitter, ao facebook e a sites que deram prints nos tweets. daí que Hanzo acrescentou mais histórias em 20 de junho.

lendo e relendo a história pensei [como muitas outras pessoas] que maravilhoso filme isso daria. poderia ser uma comédia violenta & surreal bem ao estilo de 'durval discos' da anna muylaert. 

mas verdade mesmo é que fui guardando tudo, separando, editando, e dividi a longa saga em três partes. então pedi pro amigo, e grande desenhista, fernando de almeida ilustrar a história. e se aparecerem mais capítulos acrescento aqui.



A AVÓ E A BOI 
ou 
EU NÃO TINHA NADA PRA FAZER MESMO

PARTE 1

deixa eu contar o conflito que já ultrapassa 50 anos entre minha vó e a vizinha dela, a Boi. Boi é o apelido da vizinha dado por minha avó. até lá pelo meio dos anos 90 minha avó chamava a vizinha de a Vaca, mas lá por 1996 decidiu que isso era muito machista e que tudo tinha limites, e a Vaca foi renomeada pra a Boi. 

minha avó conhece a Boi desde pequena. elas duas moram nas mesmas casas desde crianças. são vizinhas a pelo menos 60 anos. antes de casar com meu avô, minha avó teve 2 namorados. eram épocas mais simples. a Boi roubou os dois namorados, segundo minha avó. anos depois a Boi casou com o segundo namorado roubado num casamento feito NA RUA DE CASA, NA FRENTE DA CASA DA MINHA AVÓ. 

quando eu era criança, minha avó pagava moleques do bairro pra passar dias inteiros tocando a campainha da Boi. varias vezes por hora. minha avó usava uns aparelhos de inalação pra respirar melhor. toda vez que a Boi escutava o som característico do aparelho funcionando, ela ia na frente da casa da minha avó e desligava o disjuntor de energia pra cortar a energia da casa e o inalador parar de funcionar. e o ódio que a minha avó e a Boi compartilham uma pela outra é de longe o sentimento mais forte, intenso e dedicado que eu já vi na vida. 

minha avó tem certeza plena e total que a Boi MATOU pelo menos CINCO cachorros de estimação da minha avó ao longo do anos, e que ela também é responsável pelo desaparecimento de outros dois. um cachorro da minha avó sumiu uma vez. meses depois um conhecido dela foi em um sítio que a família da Boi tinha e viu o cachorro lá. desde que eu me lembro as galinhas que a Boi sempre cria volta e meia aparecem mortas em circunstâncias inexplicáveis e misteriosas. ela não admite mas eu SEI que minha avó tem participação nessa selvageria. dava polícia tantas vezes na rua da casa da minha avó devido a brigas dela com a Boi que eu conhecia vários policiais pelo nome. hoje quase não dá polícia mais porque elas ligam e a polícia, já sabendo da situação, simplesmente não aparece mais. desistiram. uma vez quando a Boi viajou, minha avó PULOU O MURO e envenenou todas as plantas do quintal da Boi com soda cáustica e querosene. todas as plantas. até a última roseira, até a última samambaia. até. o. último. pé. de. boldo.

em uma reviravolta shakespereana e otimista, meus tios e minha mãe eram e são até hoje muito amigos dos filhos da Boi. sempre foram vizinhos mais ou menos das mesmas idades. iam na mesma escola. claro que viraram amigos a despeito da insanidade das mães. pra degosto eterno da minha avó, um tio meu até namorou e depois casou com uma das filhas da Boi. Nem a Boi nem minha avó foram ao casamento. anos atrás, minha avó e a Boi já mulheres idosas, a Boi caiu sozinha em casa, se machucou e ficou gritando pra alguém chamar uma ambulância. minha avó ouviu e não só não chamou a ambulância como GRAVOU O GRITOS DE DOR DA BOI PRA OUVIR DEPOIS. ELA TEM ESSA GRAVAÇÃO ATÉ HOJE. minha avó é a SAVAGE original, ela é completamente implacável e ela não tem misericórdia nenhuma por seus inimigos. 



PARTE 2

o que vocês precisam entender sobre minha avó e a Boi é que:

1 - elas têm muito tempo livre nas mãos
2 - elas têm uma capacidade de FOCO incrível
3 - elas sempre vão até as últimas consequências

minha avó já fez inferno contra a Boi pra mulher do dono do comércio da rua e a mulher convenceu o marido a NÃO VENDER MAIS NADA PRA BOI. então há anos a Boi simplesmente precisa dar uma volta enorme pra ir em outro mercadinho lá na outra rua pra comprar coisas. a minha avó é uma velhinha já meio surda então ela escuta música MUITO ALTO quando tá fazendo as coisas em casa de dia. então a Boi juntou dinheiro da aposentadoria e fez o marido instalar um sistema de som daqueles enormes no carro pra tocar música MAIS ALTO. 

minha avó já caiu dentro da vala que tinha na rua pra se salvar da Boi jogando o carro nela, tem noção? a vala virou A VALA DA VOVÓ pra nós. quando a prefeitura cobriu e pavimentou a vala a gente foi lá se despedir da vala. vovó ficou pistola. minha família só tem gente louca. 

o conflito da minha avó com a Boi não consiste só de agressão física e moral. terrorismo psicológico também é frequente. por exemplo. a Boi acredita em macumba. minha avó não acredita em nada além de tormento e destruição. e no Sílvio Santos. ela acredita no Sílvio Santos. então claro que a minha avó tá sempre fazendo despacho de macumba fake e colocando no quintal e na frente da casa da Boi pra enlouquecer ela. ela já me fez procurar foto de trabalho e despacho no google images e imprimir pra ela poder reproduzir. minhas mãos tão sujas também. a Boi encontra bacia com farofa e galinha no portão de casa, saquinho de pano com ervas pendurados nas árvores do quintal, etc. 

uma vez a Boi achou um saco de veludo EMBAIXO DA CAMA DELA com ervas e um papel com o nome dela riscado que ela é convicta que foi escrito com sangue. (eu não sei se acredito que não foi realmente escrito com sangue. eu honestamente não sei mais no que acreditar a esse ponto). essa foi a primeira vez de muitas que a Boi chamou benzedor pra benzer a casa. ele cobrou 300 reais. não foram feitas perguntas a esse respeito. recentemente a esposa do meu tio, filha da Boi, fez ele confessar que a vovó fez ele entrar na casa e colocar o artefato de macumba lá. 

antes do estatuto do desarmamento passar tanto minha avó quanto a Boi tinha armas em casa, que os maridos usavam pra caçar no interor. todos nós vivíamos constantemente apavorados que alguma coisa ia ser a gota d'água e elas duas iam estourar um tiroteio. meu avô deixava a espingarda trancada no COFRE por causa disso e ninguém sabia a combinação além dele. eventualmente ele acabou se desfazendo da espingarda porque minha avó ficada inventando desculpa pra pedir a combinação do cofre da casa. porque a chance dela querer chegar na arma eram estarrecedoramente altas, e balear inimizades é total algo que ela faria. minha avó 'did not come to play'. eu amo demais essa mulher honestamente, ela me inspira diariamente. acho que a lição que eu tiro disso é que criatividade se apresenta das formas mais inesperadas e que determinação nem sempre dá bons frutos. 

pelo menos uma vez por semana eu ou a mamãe ligamos pra ela pra saber dos desenvolvimentos e inacreditavelmente sempre tem novos episódios. seria de se imaginar que depois de mais de 50 anos de conflito tudo que poderia acontecer já aconteceu né. mas as surpresas não param. é meio que essa piada entre a gente da família ligar pra ela e a primeira coisa que ela falar seja VOCÊS NÃO SABE A ÚLTIMA DA BOI. e é uma desculpa pra gente sempre estar em contato com a véia, ela adora o interesse e a atenção e a gente adora ela. 

acho que outra lição tirada disso é que fazer um inimigo de uma pessoa criativa e com muito tempo livre é uma ideia muito equivocada.



PARTE 3

minha avó chegou do interior de manhã, eu fui lá arrumar a tv dela e encontrei ela sentada numa cadeira no portão. o correio ia passar pra entregar encomenda. ela passou a tarde toda sentada no portão esperando com medo da Boi receber a encomenda e roubar. 

- vó, mulher. entra, por favor. não é assim que funciona. o correio não entrega coisa assim pra qualquer um.

- eu não tinha nada pra fazer mesmo. e tu lembra das contas de luz? a Boi sempre encontra um jeito.

(me ocorreu na hora que se fosse feito filme da história da minha avó com a Boi o nome ia ter que ser Eu Não Tinha Nada Pra Fazer Mesmo e o nome da inevitável sequência teria que ser Eu Não Tinha Nada Pra Fazer Mesmo 2: A Boi Sempre Encontra Um Jeito)

ela fez eu ficar lá no portão esperando enquanto ela entrava pra fazer café pra mim. eu fiquei. não me julguem por ter compactuado. o café da minha avó é muito bom, o suficiente pra não me deixar em posição de negociar no momento. então eu fiquei lá rindo sozinho lembrando do incidente com as contas de luz da minha avó que nunca chegavam. as contas de luz da minha avó nunca chegavam na casa e mais de uma vez contaram a luz porque ela não lembrou de pagar. eventualmente descobriu-se que a Boi sabia o dia que conta chegava e roubava da caixa de correio pra vó não ver e esquecer de pagar.

antes do cabaré realmente pegar fogo entre a vó e a Boi e um muro precisar ser erguido pelo bem de todos, as duas casas ficavam num só terreno enorme com duas caixas de correio, uma do lado da outra. assim como muitas coisas nessa história que fogem à minha compreensão, isso nunca foi mudado. é assim até hoje. talvez tenha a ver com elas serem as duas mulheres mais sovinas do Brasil e não quererem pagar pra mudar a caixa de lugar. ou talvez pra isso elas tivessem que admitir a maluquice que é isso tudo, coisas que elas não fazem. as duas acham que estão certas. a psique da minha avó e da Boi já foi muito analisada por nós nos dias de churrasco, foi concluído que as duas coisas são igualmente plausíveis. 

mas eu divago. enquanto eu tava lá no portão o correio passou. eu recebi a encomenda e entrei. assim que eu entrei minha avó viu o pacote e disse TÁ VENDO ELES ENTREGAM PRA QUALQUER PESSOA QUE TIVER NO PORTÃO SIM. eu odeio quando o viés-confirmatório e as loucuras da minha avó são aparentemente comprovadas e validadas empiricamente. mas eu não tive forças pra explicar que eu assinei o recebimento, mostrei minha identidade, etc. por hoje, o delírio dela foi bem alimentado. 

agora em casa eu estou pensando nas coisas que poderiam ter sido realizadas se essas mulheres não vivessem em estado de paródia constante. e constantemente tentando prever o próximo movimento uma da outra. pesando também que é IMPERATIVO encontrar alguém com a mesma dedicação por você quanto a vó e a Boi se dedicam a arruinar a vida uma da outra.  

PARTE 4 [tuites de 5 de julho]

a guerra secundária da minha avó com a boi pra ganhar a preferência do filho do meu tio com a filha da Boi está escalando muito rápido. elas ficam tratando o garoto como quem trata um Deus caprichoso, exigente, observador, rígido e muito facilmente irritável. 

em maio minha avó comprou um notebook pra ele porque ela achava a tela do celular muito pequena pra ele ver vídeo de Gameplay de Minecraft. mês passado a Boi tentou comprar um desses.



minha avó quer pagar a festa de aniversário dele que tá chegando (contando que seja na casa dela). meu tio e a mãe do menino sendo criados no seio da loucura reconhecem na hora quando é amor genuíno e quando não é e devolvem as coisas. mas as vezes algum suborno emocional passa pela vigilância. é assim que meu primo de 12 anos tem um iphone. meu tio, além de não ter probleminha e portanto não estar disposto de gastar 80 milhões de reais num iPhone ainda detesta Apple. e aí é obrigado a ter um ataque constante desse dentro de casa.

lição: a Guerra tem consequências pra todo mundo. os inocentes são atingidos e frequentemente sofrem destinos piores que a morte. eu aprendi muito mais sobre a moralidade da Guerra crescendo com a minha vó do que 'Catch-22' e Cormac McCarthy nenhum poderiam ter me ensinado.

4 comentários:

Anônimo disse...

Alguém por favor pergunta pra ele se a Boi não tem também um apelido pra vó dele? Todo mundo aqui no trabalho quer saber. Gradecida.

Dafne Sampaio disse...

já perguntaram isso pra ele no twitter, mas ele não sabe. vai descobrir.

Anônimo disse...

Essa historia de duas senhorinhas que tem em comum o que fazer para a outra é muito boa! Um filme/minisserie ainda sera feita...

Unknown disse...

Ja tem uma mini série, que está no Globoplay, que foi maravilhosamente escrita por Miguel Falabella. Terminei de assistir hoje é me apaixonei pela história. Confesso q só soube começou com o Twittes depois, meu filho q me contou, vim aqui no blog p conhecer e amei mais ainda. História engraçada e trágica só mesmo tempo, parabéns Eduardo por compartilhar sua vida, ou melhor da sua Vó e da boi!!!