quarta-feira, 30 de setembro de 2020

essa é pra vc, quino. obrigado por tudo.

e o grande, o gigante Quino, morreu neste final de setembro deste tenebroso 2020. tinha 88 anos e a gente lamenta e coisa e tal, mas o argentino viveu muito bem e produziu ainda mais. vida foda, vida plena. só temos que agradecer por sua existência e pela sua arte. daí que no twitter, a amiga Bia Abramo, lembrou de um trampo que fizemos nas redes da Prefeitura de São Paulo em janeiro de 2015 [estivemos por lá de 2014 a 2016, gestão Fernando Haddad]: Mafalda no rolê

inspirado no filme O Fabuloso Destino de Amelie Poulain, levamos uma bonequinha da personagem imortal de Quino para mostrar alguns pontos turísticos de São Paulo e contar um pouco da história da cidade. partimos da Praça das Artes, que sediava uma exposição em homenagem a Quino e sua personagem. não conseguimos fazer todo o rolê que planejamos no início, acho que por conta de outras tarefas de comunicação do município, mas o que foi feito nos deu muito orgulho. 

segue abaixo as fotos e textos originais que publicamos naquele distante 2015, afinal todo esse material já não está mais disponível nas redes da Prefeitura.

1. PRAÇA DAS ARTES

Mafalda, a criação imortal do cartunista argentino Quino, está entre nós. Desde 17 de dezembro, "O Mundo Segundo Mafalda" ocupa a Praça das Artes e a exposição interativa ficará por lá até final de fevereiro, o que significa que a menina inquieta será nossa hóspede por mais algum tempo. Então, como bons anfitriões que somos, decidimos levá-la para conhecer a cidade. 

Nos próximos dias você acompanha aqui o rolê de Mafalda Oficial por São Paulo, cada dia um lugar diferente, e o passeio começa pela Praça das Artes, onde cerca de 3 mil pessoas por dia estão se divertindo e conhecendo essa menina de 50 anos.

2. GALERIA DO ROCK

Saindo da Praça das Artes pelo calçadão da Avenida São João, levamos Mafalda para conhecer a Galeria do Rock, logo ali pertinho. É que a menina queria ouvir os seus amados Beatles em algum lugar diferente e tipicamente paulistano.

Aí explicamos que a Galeria do Rock nasceu como Shopping Center Grandes Galerias em 1963, portanto o prédio é apenas um ano mais velho que Mafalda, fato que a fez abrir um sorriso de identificação. E o sorriso aumentou quando ela viu as primeiras camisetas e LPs do quarteto de Liverpool dividindo o mesmo grande e sinuoso espaço – ao todo, a Galeria possui cerca de 450 estabelecimentos comerciais – com salões de beleza black, alfaiates, lojas com centenas de tênis coloridos, estúdios de tatuagem, material para graffiti, lanchonetes e muita democracia musical [rap, metal, mpb, psicodelia, etc.].

Dizem que aproximadamente 20 mil pessoas circulam por dia pela Galeria do Rock e Mafalda ficou bem à vontade com a variedade de tipos e estilos, mas ficou mesmo fascinada com o rap, que fala na lata o que precisa ser falado. Tipo ela. 

3. VIADUTO DO CHÁ

Semana passada não estava tão quente quanto hoje e Mafalda foi e voltou várias vezes pelo Viaduto do Chá. Era uma espécie de brincadeira do tipo ‘quem será que encontro agora?'. A menina cruzou com nigerianos, bolivianos, vendedores de chip de celular, homens de terno, turistas americanos, mulheres que lêem o futuro, equipes de TV etc. Depois, ela acalmou, bebeu um pouco de água e quis saber sobre um dos marcos mais importantes da cidade que tem o Theatro Municipal em uma extremidade e a Prefeitura em outra.   

É o seguinte Mafalda: o Viaduto do Chá foi inaugurado em 1892, depois de uma construção tumultuada que teve início em 1888 e foi interrompida porque alguns poucos moradores da região, entre eles o Barão de Tatuí, se incomodaram com essa ideia de ligar o Centro Velho [Sé, Pátio do Colégio] ao Centro Novo [Praça da República, Largo do Arouche]. De uma forma ou de outra, a turma do Barão perdeu e a cidade ganhou. 

Sob o Viaduto do Chá, Mafalda, corre o Vale do Anhangabaú. Por lá já passou um rio [o Anhangabaú], mas quando surgiu o projeto do viaduto no final do século 19, o vale passou pelo seu primeiro processo de urbanização. Só que os belos jardins do Parque do Anhangabaú não duraram muito e no final da década de 1930 o que era verde virou via expressa para carros e mais carros. Essa fase carrodependente do Anhangabaú durou até os anos 1980 até que um novo projeto urbanístico devolveu o espaço para uso público, de shows a manifestações políticas, de paqueras e passeios de skate.

4. PRAÇA DA SÉ

Pessoas dançando forró agarradinhas, pastores declamando e comentando a Bíblia, gente correndo para chegar ou sair do trabalho, tem de tudo um pouco na Praça da Sé, e Mafalda, curiosa como sempre, não parava de perguntar sobre isso ou aquilo. 

Explicamos que a praça e a escadaria da Catedral já foram palco de manifestações históricas durante a ditadura militar e o período de redemocratização. E que a grande igreja em estilo neogótico projetada pelo alemão Maximilian Emil Hehl [1861-1916], autor também da Igreja da Consolação e da Catedral de Santos, é a terceira no mesmo lugar do Centro Velho.

A primeira, ainda nos tempos de São Paulo de Piratininga, durou, mais ou menos, de 1616 a 1745. A segunda, quando a cidade se tornou sede da diocese, foi de 1764 a 1911. A terceira e atual começou a ser construída em 1913, mas as duas guerras mundiais atrasaram as obras e inauguração só aconteceu, com o prédio inacabado, em 1954 [o projeto foi finalizado mesmo em 1967].

Após tantas datas, Mafalda entrou na Catedral e andou por tudo de olhos muito abertos. Quando saiu, ainda impactada pela imponência do edifício, perguntou para algumas pessoas na praça se já tinham entrado lá. A maioria disse que não por causa da pressa do dia a dia. “O urgente nunca deixa tempo para o importante, né?”, retrucou a menina.

5. AVENIDA PAULISTA

Acontecem muitas e variadas coisas nos quase três quilômetros da mais paulista das avenidas. Tem o maior reveillon da cidade e a Parada Gay, a maior do mundo. Tem a tradicional Corrida de São Silvestre e muitos artistas de rua. Tem o oásis verde do Parque Trianon e dezenas de cinemas, teatros e centros culturais como o Museu de Arte de São Paulo, o icônico Masp. 

Mafalda passeou pela Avenida Paulista em um domingo, que é o dia da Feira de Antiguidades no vão livre do Masp, atração permanente no local desde 1979. Mais uma vez adorou a quantidade de gente andando pra lá e pra cá e que nem faz ideia de que a Paulista foi a primeira via pública asfaltada de São Paulo, isso em 1909. Atualmente, moram cerca de 200 mil pessoas na avenida, cuja “data de nascimento” é 8 de dezembro de 1891.

Mas o rosto da menina ficou sério quando lhe disseram que apenas dois casarões sobraram na avenida [o único aberto ao público é a Casa das Rosas]. Os outros, que fizeram a fama da região na primeira metade do século 20, foram sendo demolidos a partir dos anos 1950 e dando lugar a grandes edifícios. “Às vezes me pergunto se a vida moderna não tem mais de moderna do que de vida”, disse. 

Ela acabou arrastando um certo mau humor por alguns quarteirões, mas tudo mudou quando explicamos que a Paulista também é sede de um punhado de consulados, inclusive o da Argentina. Quando soube disso, “la niña” decidiu fazer uma visita para ouvir sua língua materna e comer umas medialunas salgadas e doces. Bateu saudade de casa, sabe como é. Então voltou a sorrir e desceu, barriga cheia, para ver o pôr do sol na Praça do Ciclista. Acontecem muitas coisas na Paulista.

6. BECO DO BATMAN

O nome oficial é Rua Gonçalo Afonso, mas há cerca de 30 anos essa viela tortuosa na Vila Madalena é conhecida como Beco do Batman. Mafalda quis saber como o nome surgiu e explicamos que, no início da década de 1980, grafitaram um Homem-Morcego gorducho por lá. Estudantes, universitários e curiosos começaram a frequentar o Beco para ver o Batman e a fama foi se espalhando até surgirem outros grafites e mais outros e mais outros.

Completamente eufórica, a menina corria pela viela pra cima e pra baixo querendo ver tudo e perguntando o nome dos(as) artistas que vivem colorindo essa e outras partes da cidade. Não sabíamos o nome de todo mundo, mas estavam lá figuras como Speto, Paulo Ito, Milo Tchais, Alex Senna, Magrela, Binho e Presto.

Nos últimos anos, o Beco do Batman passou a ser também uma atração turística internacional. Qualquer dia da semana é possível encontrar um gringo de olhos arregalados perdido entre tantos desenhos. No dia que Mafalda esteve lá, por exemplo, cruzou com uma família de americanos, um mexicano, uma inglesa, dois amigos irlandeses, uma equatoriana e seu namorado boliviano, e um estudante argentino que deu altos pulos de alegria quando a viu. O mundo é um ovo no Beco do Batman.

7. PÁTIO DO COLÉGIO

Foi aqui onde tudo começou, Mafalda. Quer dizer, mais ou menos. O Pátio do Colégio é o marco do começo da cidade de São Paulo, exatos 461 anos atrás, mas já rolava muita coisa por esses morros, várzeas e rios. Muitas aldeias e povos indígenas, como os guianás e os tupiniquins, nômades ou não, viviam e perambulavam por esses planaltos. Então chegaram os portugueses, representados inicialmente pelos jesuítas, e fundaram, em 25 de janeiro de 1554, o Colégio de São Paulo de Piratininga. 

O colégio era, pra te falar a verdade, um barracão feito de taipa de pilão. Mas ficava em um ponto estratégico, no alto de uma colina que dava para o encontro dos rios Anhangabaú e Tamanduateí, e foi lá que Manoel da Nóbrega e José de Anchieta tentavam converter os índios à fé católica e a história da região mudou para sempre. Nada muito diferente do que aconteceu no resto do Brasil, na sua Argentina, por todos os lados das Américas, Mafalda. 

A partir do Colégio, o povoado foi crescendo e virou Vila de São Paulo de Piratininga em 1560, capital da grande Capitania de São Vicente em 1681-83 e, finalmente, cidade de São Paulo em 1711. Já o Pátio do Colégio manteve papel central na cidade e Estado e foi sede do governo paulista entre 1765 e 1912.

Atualmente, o Pátio tem apenas, das antigas construções, uma parede de 1585, e o resto foi todo demolido. A primeira igreja tombou em 1896 e o Palácio dos Governadores em 1953, e esse prédio que a gente está vendo, que tem museu, biblioteca, restaurante, etc, é de 1979. Mas é que São Paulo tem também essa maluquice de erguer e destruir coisas belas, Mafalda.

8. LARGO DA BATATA

Assim que chegou, Mafalda não entendeu muito bem o que era o Largo da Batata. Talvez fosse o calor e o solzão de verão. Talvez a amplidão e a falta de sombra; afinal as árvores ainda estão jovens, pequenas. Talvez o resultado de obras de revitalização que duraram cerca de dez anos e que, justamente pela demora, não conseguiram ainda dar uma cara para o espaço.

Tudo mudou quando viu umas barraquinhas com legumes e frutas na parte de cima do Largo – fomos numa quarta, dia da Feira de Orgânicos –, e uns móveis engraçados e coloridos na parte de baixo. A menina, que de boba não tem nada, viu logo que o Largo da Batata é um lugar que está acontecendo. Com a participação ativista de muitas pessoas, uma nova história está sendo escrita para um dos povoamentos mais antigos da cidade [os outros dois, contemporâneos de século 16, são o Centro Velho e São Miguel Paulista].  

O Largo da Batata já foi terra dos guianás, capela dos jesuítas, durante séculos o único povoado às margens do Rio Pinheiros, entreposto comercial com o interior [daí o Mercado Caipira, atual Mercado de Pinheiros] e alta concentração de vendedores de batata [que lhe deu o nome em algum momento nos anos 1920].

Hoje tem bicicletário, shows, manifestações e aqueles móveis engraçados e coloridos feitos pelo pessoal da Batata Precisa de Você, um grupo que se reúne há um ano para conversar sobre o Largo [e a cidade], promover festas, shows e atividades variadas, enfim, humanizar o local. E tudo por conta própria. Mafalda entendeu direitinho e, pensando alto enquanto passeava entre os móveis feitos de pallets, soltou: “A vida é linda né? O problema é que muitos confundem lindo com fácil”.

p.s.: escrevi em 2010 uma matéria sobre Quino para a revista de bordo da Trip Linhas Aéreas. é uma matéria sem aspas, não consegui entrevistá-lo, mas é um texto que gosto muito. com vcs, "O pai da matéria".

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