quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

as cores da rua

no final no ano passado rolou mais um frilinha pra revista Day By Day (do Banco Daycoval). e sobre um dos meus assuntos preferidos, street art no Brasil. fazia um tempo que não escrevia nessa revista e entrevistei um trio de peso, o argentino paulistano Tec Fase, e as paulistanas Mag Magrela e Aline Bispo. a ideia foi costurar o começo na rua e as subsequentes manifestações artísticas em outras plataformas/mídias. ficou legal, né por nada não. infelizmente o texto acabou caindo aos 45 do segundo tempo por motivos de anúncios publicitários. mas não tem nada, pois tá aqui, na sua completude.

foto minha de umas das intervenções de Tec Fase em São Paulo, 
mais precisamente na Avenida Paulista, em 2014

ENCONTRAR-SE NAS CORES DA RUA

Três artistas urbanos radicados em São Paulo – o argentino Tec Fase e as paulistanas Mag Magrela e Aline Bispo – contam como o graffiti os colocou no mundo

Existem coisas que só acontecem nas ruas. E existem coisas que acontecem nas ruas e ganham o mundo. O graffiti, por exemplo. Já não é de hoje que essa arte urbana deixou para trás qualquer estigma de vandalismo e tornou-se uma das mais vibrantes, diversas, inclusivas e lucrativas da atualidade. No Brasil não é diferente, afinal a arte urbana surgiu por aqui no final da década de 1970, pouco tempo depois dos Estados Unidos, e tanto já espalhou nossas cores mundo afora via artistas como Os Gêmeos, Alex Senna, Alexandre Orion, Speto, Nina Pandolfo e Eduardo Kobra quanto acolheu gente de muitos outros cantos.

Um caso recente é o do argentino Tec Fase, 47 anos. Nascido em Córdoba, Tec começou a grafitar ainda adolescente após se mudar para a capital argentina. No começo era apenas para divulgar os shows de sua banda de punk rock, mas depois que a banda acabou e o graffiti continuou, passou a imitar os traços da seminal arte urbana de Nova York. “Quando chegou a hora de ir pra faculdade decidi estudar Desenho Gráfico na Universidade de Buenos Aires. Lá me enturmei com uma galera e criamos um coletivo artístico. Eu dominava o graffiti, outro dominava a serigrafia, e tinha lambe, stencil e assim por diante, e a gente foi tomando a rua como lugar de trabalho. Éramos umas 20 pessoas e fomos criando a cena de street art de Buenos Aires”, disse.

Por volta de 2005, Tec conheceu Baixo Ribeiro, um dos pioneiros da arte urbana brasileira e fundador da galeria Choque Cultural. “Trouxe um fanzine que tinha um ensaio fotográfico com intervenções no asfalto que fazia em Buenos Aires. Foi assim que conheci São Paulo e foi assim que comecei uma grande amizade com o Baixo que, anos depois, me convidou para uma exposição coletiva no MASP chamada 'De Dentro e De Fora'. Fiquei aqui, dentro do museu, durante 45 dias produzindo a obra. Foi uma espécie de residência artística. Nesse período acabei conhecendo minha futura-atual esposa, a Laura Rago”.

Tec mudou-se de vez para São Paulo em 2012 e no final do ano tornou-se pai pela primeira vez. “Já tinha dado um tempo nessas intervenções no asfalto, mas quando cheguei aqui em São Paulo me deparei com as ladeiras de Perdizes e voltei a fazer essas artes no asfalto. Dava pra pintar e ver de longe, tem perspectiva. Diferente de Buenos Aires que é uma cidade muito plana”, e lá se foi Tec desenhando pela cidade bichos gigantes subindo ou serpenteando ruas, pessoas enormes dormindo em avenidas, pipas coloridas do tamanho de caminhões e um homem urbano de 64 metros de altura feito de ruas e carros na empena de um prédio ao lado do Minhocão.

o homem urbano de Tec Fase, próximo ao Minhocão, em São Paulo

“Na minha área, São Paulo é um lugar super inspirador e cresci muito aqui. Montei meu ateliê, consegui me profissionalizar e fui ficando. São Paulo foi pra mim uma tela em branco maravilhosa. Tinha aprendido já muita coisa, morado em muitos lugares, mas não tinha colocado em prática muita coisa também e foi aqui que tudo aconteceu. Sem falar que virei pai de duas meninas”. O cordobés reuniu grande parte de sua obra paulistana no livro Tec 2010/2020, que virou fio condutor para a recente exposição solo Urbana que ficou de agosto a outubro no MAB FAAP. “O que sempre me interessou na rua foi o caráter espontâneo da exposição, isto é, você faz sua arte e automaticamente essa obra é vista sem passar por intermediários. Sem falar na diversidade do público que é fantástica. E essa relação não mudou com o tempo, pois na medida que fui da rua para uma arte mais institucional precisei ainda mais voltar para a rua por esse contato com a realidade”.

Mag Magrela e uma de suas grandes obras, no centro de São Paulo

A paulistana Mag Magrela, 37 anos, também aponta essa conexão com o público da rua como um dos seus maiores interesses. “O que me encanta na rua é a troca que tenho com diversos tipos de pessoas diferentes, em lugares diferentes. É o que mais me interessa quando estou pintando na rua, essa conexão com as pessoas. E vou tendo novas ideias para trabalhos e para a vida mesmo”, diz Mag que começou a pintar na rua em 2007 após conhecer, numa oficina do Senac, outras que já o faziam. Detalhe importante: a oficina foi ministrada por Rui Amaral, um dos pioneiros da street art de São Paulo.

“A sensação que tive após começar a pintar na rua foi de pertencer ao planeta porque antes não sabia muito o que queria, qual era minha função aqui. Foi assim, desse jeito, que comecei a construir essa ideia de ser artista”, e Mag, que está prestes a lançar um livro reunindo o que fez nestes 15 anos, foi vendo também que o que fazia na rua podia ser apenas uma das manifestações de sua arte. Tudo feito de forma apaixonada e autodidata.

“Sou uma pessoa muito expressiva. Preciso me comunicar para existir, e a minha expressão às vezes está em um desenho, numa poesia, numa escultura, num quadro, ou numa melodia para uma música. O que quero fazer em uma poesia não cabe em um desenho e às vezes o desenho vale muito mais que palavras. Cada linguagem tem suas peculiaridades e consigo acessar o que quero dizer e me conectar com as pessoas usando diversas linguagens. A arte sai de forma natural e ela que escolhe em qual suporte ela quer existir”, mas a rua ainda é o mais importante para Mag que já espalhou suas mulheres lânguidas, questionadoras e invariavelmente despidas em países como Portugal, França e Inglaterra.

Falando em mulheres, Mag sente que faz parte de uma geração que viu muitas transformações na cena. “O que mais mudou nesses 15 anos que comecei a pintar é a representatividade, as mulheres e as mulheres pretas e as indígenas conseguindo se manter nessa profissão. Elas sempre existiram, sempre estavam ali, mas conseguir se manter como artista é mais complicado. Acho que isso é o mais maravilhoso que tem acontecido”.

uma das grandes obras de Aline Bispo, próxima ao Minhocão, em São Paulo

Pouco mais nova que Mag, a igualmente paulistana Aline Bispo, 33 anos, também lembra com carinho o momento transformador que foi o de começar a pintar nas ruas. “Minha primeira experiência foi por volta de 2008/2009 e foi muito especial, porque estava iniciando um processo de diversas descobertas, estava conhecendo essa nova plataforma e a possibilidade de poder me comunicar com o mundo de outra maneira, acessando inclusive pessoas que não conhecia. Hoje entendo que essa foi a primeira porta a se abrir, mas muito mais de dentro para fora, porque foi o primeiro momento de poder externalizar diversos sentimentos e dizer que estava ali, que estava presente no mundo”, explica Aline, que também é formada em Artes Visuais pelo Centro Universitário Belas Artes.

“O que me interessou na rua, no primeiro momento, foi a possibilidade de me expressar, de me colocar no mundo de alguma forma diferente da forma que o meio social e outros caminhos me induziram a estar. Depois estabeleci um diálogo, e isso em todas as técnicas e suportes de trabalho, que traz muito essa ideia de falar para o mundo”, e Aline fala, performa, pinta e desenha sobre miscigenação, sincretismos religiosos/étnicos, diáspora africana, gênero e negritude.

“Mas é importante falar que não sou grafiteira, nem muralista,  mas o contato com o graffiti e com grafiteiras e grafiteiros, foi um acesso muito potente para que pudesse inicialmente saber da possibilidade de comunicação em minhas mãos, para além do que tinha até então e essa potência é algo que fica comigo até hoje”, o que quer dizer que das ruas vem a energia que Aline usa para trabalhos tão diversos como pinturas, uma coleção de moda para a Hering, empenas de prédios em parceria com marcas como Adidas e Stella Artois, capas de livros (Torto Arado, romance de Itamar Vieira Júnior, e Por um feminismo afro-latinoamericano, coletânea de artigos de Lélia Gonzalez) e ilustrações (Serena Finitude, livro poético da cantora Anelis Assumpção).

“Tenho medo que dizer isso pareça vaidoso demais, mas o ponto em comum que encontro nesses trabalhos todos sou eu mesma e minha pesquisa, então isso permite que meu trabalho se modifique e siga sendo compatível comigo mesma”, resume olhando-se no espelho.

Tem coisas que só acontecem nas ruas mesmo. Encontrar-se na arte, por exemplo.

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