quarta-feira, 1 de novembro de 2023

rolimã na penha

minha história de colaborações com a revista piauí começou em 2009, sempre ali na seção 'esquinas'. não foram muitos textos, mais por culpa minha mesmo, pois nas idas e vindas dos trabalhos mais fixos demorava pra achar uma pauta com a cara da seção. foram 5 textos publicados, sendo que o último em 2018, pouco antes do nascimento da minha filha. teve também um sexto, lá em 2012, que acabou caindo aos 47 do segundo tempo (acho que é o meu preferido, o do bingo erótico em santos). 

ano passado voltei a mandar pautas e depois de algumas tentativas falhas finalmente emplaquei mais uma. era a história de uma lendária descida de carrinhos de rolimã na Penha, em São Paulo (fiquei sabendo dessa história via um grande amigo, Daniel Almeida, que falou sobre rolimãs em programete que fazia para a Rádio Eldorado). fui lá ver os carrinhos em um domingo de abril e depois mandei o texto. passou um mês, passou outro e mais outro, e acabou caindo (mas também foi pago como o outro não publicado). 

segue então o texto em sua íntegra e sem edição extra.

 
VELOZES & FAISCANTES

Um grupo de garotões de meia idade procura manter viva a tradição dos carrinhos de rolimã

Domingo parado na esquina das ruas Conceição Pereira com Mirandinha, no bairro paulistano da Penha. De um lado, um mercadinho de doces abre as portas pós almoço. O relógio passou um pouco das 14h. Do outro, a Padaria e Confeitaria Mirandinha só tem mesas vazias como espectadoras da programação dominical na TV. Mas o silêncio de cidade do interior é quebrado por batidas de martelo. “Tá quase pronto aqui”, grita Aurélio pregando mais um pouquinho uma das rodas de seu carrinho de rolimã.
 
Trabalhador na construção civil, 38 anos, Aurélio Nascimento é um dos participantes mais frequentes da descida da Rua Conceição Pereira, um lugar de encontros, velocidade e faíscas de rolamentos desde o final da década de 1970. “Pronto!”, grita Aurélio para ninguém. “Não esqueço nunca da primeira vez que desci de carrinho de rolimã. Foi em 1995, por ali. Você se sente livre, não tem como explicar a adrenalina. Só descendo, só descendo. É muito bom sentir aquele vento batendo no rosto. Parece que você tá voando”, e vai se dirigindo para reunir o seu aos outros carrinhos desse domingo.
 
“Acho que vão ser uns dez hoje. Essa tem sido a média ultimamente. Mas no passado, no auge da Conceição Pereira, que foi ali de 1995 a 1998, chegavam a ter uns quarenta ou cinquenta. E muita gente assistindo nas calçadas”, diz Thiago Mendes, 37 anos, gasista industrial e um dos organizadores do evento que sempre fez questão de ser informal. Nove carrinhos se reuniram naquela tarde nublada e ligeiramente fria de abril - o que seria o quinto encontro desde o início de 2023.
 
Então, ao lado da padaria, encosta um Onix prata e seu dono, William, desce e abre o porta malas. William já desceu muito a Conceição Pereira, mas machucou joelho jogando bola e agora anda receoso. Ultimamente se contenta em ajudar os amigos levando os carrinhos até o alto da rua. Mas quem entra no porta malas é Parmalat, nascido Leandro, vistoriador de seguradora, 38 anos. É ele quem fica de pernas para fora e puxa de três em três carrinhos, um em cima do outro.

 
Enquanto os carrinhos vão subindo, cada um a seu tempo, quatro olheiros se posicionam em pontos estratégicos da descida. Um fica na Rua Caracol e outro na Rua Maria das Dores, atentos a carros que possam querer entrar na Conceição Pereira, e outros dois ficam na Rua Mirandinha, onde os carrinhos chegam girando e faiscando para conseguir parar. Tudo quase pronto. Ainda faltam alguns subirem.
 
“Minha primeira vez foi aqui mesmo, acho que em 2005. Moro pertinho e vim com um amigo fazer uma filmagem de uma descida. Eu pilotava a moto e ela fazia a câmera. Meu pai, Seu Mário, já descia, ele é da primeira geração. Ele é que fornecia rolimã pra todo mundo na época dele e fazia carrinhos também. Quando fui crescendo passei a ajuda-lo. Nunca desci com ele, a única coisa que ele me falava é que era perigoso, mas a primeira vez foi com um carrinho dele”, diz Thiago com o pé em cima de um dos cinquenta que ele próprio fez. A maioria foi doada pra molecada do bairro, mas o último foi feito especialmente para o seu filho mais novo, Wilson, de 7 anos.

Thiago chegando na Mirandinha

“Nesse dia da filmagem criei coragem e subi a ladeira. O carrinho que peguei do meu pai era pesado pra caramba, acho que a madeira era cambará. Aí eu desci. O coração veio na boca, a boca ficou seca, aí já era e você quer descer de novo e de novo e de novo. No mesmo dia comecei a fazer meu próprio carrinho, mais leve né. Fiz com madeira de cedrinho, faço até hoje assim, como é até hoje a sensação de adrenalina, não muda”, completa Thiago que tem sua atenção desviada para alguém acenando. O grid da primeira descida está completo.
 
A descida em si tem cerca de 400 metros e os carrinhos chegam de 50 a 70 km/h, velocidade aferida por motos que, vez ou outra, descem em paralelo para filmar. As rodinhas de rolamento, ou rolimãs, são um pouco mais lentas e barulhentas, enquanto as de skate são mais rápidas e silenciosas. Descem um, dois, três, quatro, nove carrinhos, com todos os participantes deitados de barriga pra baixo. Essa é a tradição da Conceição Pereira, mas pela história não escrita e muito menos documentada do rolimã no Brasil, o mais comum sempre foi descer sentado. Existem relatos de carrinhos desde a década de 1940 descendo pelas calçadas de São Paulo, mas a popularização aconteceu mesmo a partir da década de 1950 com mais ruas asfaltadas e carros mais acessíveis (os rolamentos vinham das caixas de câmbio).
 
Mas um pedacinho da história do rolimã no Brasil segue acontecendo aos trancos e barrancos nesse cantinho da Penha. Aurélio, Thiago e Parmalat já apareceram por aqui. Faltam o jovem empresário Danilo, 30 anos, acompanhado da namorada e amigos; o comerciante Nani, 42, o único de óculos escuros; o também comerciante Anderson, 45, que fez questão de soletrar o sobrenome Braun para não escreverem errado; o representante comercial Paulo, 49, e seu carrinho de três eixos com rodas de silicone que já desceu parte da Rodovia Imigrantes a 120 km/h; Zé Luiz, 60, que vende roupas femininas na Feirinha da Madrugada; e, por último, Dema, 62, que gosta de participar de eventos de rolimã para família promovidos pela Mulek de Rua, marca de street wear do bairro do Ipiranga. A idade média nesse domingo na Conceição Pereira é 44,5 anos e tem se mantido assim nos últimos tempos.

Aurélio e Zé Luiz
 
“Pois é, hoje tenho meus 60 anos e desço desde 1978. É que o esporte me rejuvenesce, e no rolimã continuo sentindo essa adrenalina só que com a cara a 5 cm do chão. É um barato”, diz Zé Luiz Ojuara, que também pratica BMX e skate long board. Mas poucos o veem descer naquela tarde de domingo, talvez umas vinte pessoas distribuídas pelas calçadas e portões de casas.
 
“Tinha muito mais gente assistindo quando o asfalto era uma porcaria, cheio de buracos. E mais carrinhos também”, lamenta Thiago. “Depois dessa lombada, que a subprefeitura colocou aqui no final do ano passado, desanimou geral. Ficou um pouco mais perigoso porque o carrinho joga mais para o lado quando passa por ela, dá um tranco maior. E aí como todo mundo é um pouco mais velho, a gente fica com medo de se machucar. A recuperação agora demora”.

 
A lombada da discórdia foi colocada no final do percurso da Conceição Pereira, entre as ruas Maria das Dores e a Mirandinha. “Alguns moradores daqui avisam a subprefeitura. Sempre teve isso, essa falta de diálogo. Aqui já teve valeta rebaixada, paralelepípedo, já teve de tudo nessa rua, tudo pra impedir o carrinho. Antes dessa lombada a gente chegava mais rápido, mas com mais controle”, e, logo após terminar a frase, Thiago vê o jovem Danilo chegar mais rápido que o normal e quase atropelar umas cadeiras de plástico da casa de espetinhos que está prestes a abrir. Tudo certo, segue o jogo.
 
Mas quando o relógio bate 16h, as descidas começam, pouco a pouco, a perder corredores. Era dia do primeiro dos dois jogos da final do Campeonato Paulista: Palmeiras, time predominante no bairro, e Água Santa. Ao total, em quase duas horas, foram sete descidas e nenhum acidente, eixo quebrado ou roda solta. “Antes fazia 3, 4, até 5 carrinhos no sábado pra molecada correr no domingo. Hoje quase não faço mais. A criançada não liga mais, só querem saber de celular e videogame. Você não vê mais brincadeira na rua. A tecnologia veio e acabou com tudo e acho que isso é um caminho sem volta. Acho que somos a última geração de rolimã, pelo menos aqui na Conceição Pereira”, diz Thiago sem parecer triste. É fato.
 
Às 17h o domingo está oficialmente encerrado para os carrinhos. Não com uma explosão de premiações, e mais como um suspiro mesmo. Na Rua Mirandinha, onde pouco tempo atrás os rolimãs faiscavam o chão para parar, algumas famílias e casais se dividiam pelas mesas de plástico de dois bares de espetinhos concorrentes para assistir ao jogo. O Água Santa, que é de Diadema, ganhou de 2 a 1 do Palmeiras. O tempo continuou nublado e uma leve onda de frio baixou naquele fim de tarde na Penha de França.

 
EPÍLOGO
 
De abril a novembro deste ano de 2023, a descida de rolimãs na Conceição Pereira só aconteceu mais duas vezes. “O pessoal desanimou por conta da lombada. Já não querem mais ficar arrumando a rua toda vez pra descer. Eles ganharam”, atualiza Thiago, que segue a vida entre o trabalho e a família.

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