domingo, 9 de novembro de 2025

a morte e a morte de ângela

matéria bem especial essa que saiu na edição de novembro da Revista Monet porque tudo fica melhor quando rolam entrevistas mesmo, exclusivas. o assunto da vez foi a minissérie Ângela Diniz: Assassinada e Condenada, estreia nacional do mês na HBO. pensei que seria interessante conversar tanto com as responsáveis pelo podcast Praia do Ossos quanto com gente da minissérie, afinal uma gerou a outra. Branca Vianna e Flora Thomson-DeVeaux toparam na hora, mas o pessoal do audiovisual dá um pouco mais de trabalho. originalmente queria falar com Marjorie Estiano (a protagonista) e Andrucha Waddington (o diretor), e acabou rolando Marjorie e Emílio Dantas (o antagonista).

só que em um momento crucial pareceu que as respostas de Marjorie e Emílio não chegariam a tempo. então fui obrigado rapidamente a estruturar o texto ao redor da pesquisa e das respostas de Branca e Flora. terminei o texto, fiquei satisfeito, e mandei pra edição. beleza. daí que algumas horas depois chegaram as respostas de Marjorie e Emílio e era impossível inseri-las no texto. não fariam sentido. o bróder e editor de mão cheia Luís Alberto Nogueira conseguiu mais dois páginas e as colocou como boxes. não dava para perder o material. aqui no Esforçado segue como na revista, o texto e essas duas entrevistas em separado. ficou melhor que a encomenda.

QUEM AMA NÃO MATA

A história da vida e morte de Ângela Diniz, em um crime que abalou o Brasil na década de 1970, é recontada em minissérie na HBO

“Não a mereci, porque não soube compreendê-la, não estava à altura dela. Ela deve ser lembrada com respeito. Desculpe-me, Ângela”. Essa reflexão e pedido de desculpas foi escrito por Raul Fernando do Amaral Street, o Doca Street, na contracapa do livro Mea Culpa (2006), lançado 30 anos após ter assassinado Ângela Diniz com quatro tiros em 30 de dezembro de 1976 numa casa na Praia dos Ossos, em Búzios, Rio de Janeiro. 

O arrependimento de Doca pode até ter sido sincero, mas a realidade inescapável é que Ângela tinha apenas 32 anos, e três filhos, quando foi morta por “legítima defesa da honra” de Doca Street, que morreu em 18 de dezembro de 2020, aos 86 anos, vítima de um ataque cardíaco. Ele pode refazer sua vida. Ela, obviamente, não. E toda essa história que movimentou o país na virada dos anos 1970 para os 80, e deu força para o movimento feminista brasileiro, é recontada agora nos seis episódios da minissérie Ângela Diniz: Assassinada e Condenada.

Dirigida pelo experiente Andrucha Waddington – de Eu Tu Eles, Casa de Areia, Sob Pressão, Chacrinha: O Velho Guerreiro e Vitória –, a minissérie é uma adaptação do premiado podcast Praia dos Ossos, lançado em 2020 pela Rádio Novelo, e tem um elenco de peso encabeçado por Marjorie Estiano (Ângela), Emílio Dantas (Doca), Antônio Fagundes, Thiago Lacerda, Stepan Nercessian, Camila Márdila e Renata Gaspar.

Diferentemente do longa Ângela (2023), que optou por focar no drama do relacionamento abusivo do casal com Isis Valverde e Gabriel Braga Nunes nos papéis principais, Ângela Diniz: Assassinada e Condenada vai realmente além seguindo os passos das pesquisas profundas e muitas entrevistas feitas para o podcast. É o antes, o durante e o depois de uma tragédia anunciada, afinal de contas, nos ínfimos quatro meses de relacionamento entre Ângela e Doca ficou claro que a violência doméstica, disfarçada de paixão fulminante, era o tom predominante.

POR TRÁS DA HONRA

Uma das fundadoras da Rádio Novelo, a linguista Branca Vianna foi a idealizadora e apresentadora do podcast Praia dos Ossos. “Me lembro bem do assassinato da Ângela, do julgamento do Doca e da argumentação do advogado dele de que o crime teria sido motivado por legítima defesa da honra. Foi um caso muito noticiado e já tinha 13 anos quando aconteceu. Além disso, a minha mãe, Branca Moreira Alves, foi uma das feministas que organizaram o movimento de protesto e mobilização que ganhou o nome de ‘Quem ama não mata’”, disse. 

Então Branca Vianna, junto das outras fundadoras da Novelo, a jornalista Paula Scarpin e a tradutora e pesquisadora Flora Thomson-DeVeaux, começou a trabalhar na história de Ângela Diniz no início de 2019 e lançaram os oito episódios do podcast entre agosto e outubro de 2020. Durante todo o longo processo de entrevistas – foram cerca de 60 – e pesquisa em revistas, jornais e telejornais, o trio Novelo logo percebeu que precisariam dar conta de uma história com muitas camadas.

“Fizemos Praia do Ossos para contar como um assassino confesso acabou condenado a uma pena de apenas dois anos de prisão com sursis, saindo livre do tribunal. Como um homem mata uma mulher com quatro tiros na cara e vira herói? Também nos interessou o efeito que a justificativa oferecida pelo advogado do Doca Street teve no nascente movimento feminista da época. A noção de que o Doca teria matado a Ângela por amor prevaleceu no primeiro julgamento [1979] e em grande parte da opinião pública naquele momento. Então, as feministas se mobilizaram por este e outros feminicídios da época e conseguiram impactar a opinião pública e as autoridades a respeito do tema da violência doméstica”, afirmou Branca Vianna. 

O resultado desse movimento foi que a Promotoria recorreu da sentença e houve um segundo julgamento, em 1981, e dessa vez Doca Street foi condenado a 15 anos de prisão (cumpriu 5 até obter liberdade condicional em 1987). Foi uma vitória pontual, mas uma vitória, e o movimento feminista brasileiro só foi conseguir mudanças mais concretas em 2006 (com a promulgação da Lei Maria da Penha) e em 2023 (com o STF declarando a ilegalidade do argumento de “legítima defesa da honra”).

Doca e Ângela

POR TRÁS DO MITO

Tal qual Branca Vianna, Flora Thomson-DeVeaux também é uma personagem do podcast, tanto nas entrevistas quanto nos achados em arquivos, mas nos créditos ela é responsável pela pesquisa, coordenação de produção e tratamento de roteiro. “Terminei meu doutorado em letras lusófonas na Brown University e comecei a fazer a pesquisa do podcast no mês seguinte. Foi fascinante passar do Rio de Janeiro do Machado de Assis [Flora traduziu para o inglês Memórias Póstumas de Brás Cubas] direto para o mundo das colunas sociais dos anos 1970 no Brasil”, explicou.

E Ângela Diniz vivia nas colunas sociais desde que se casou muito jovem em Belo Horizonte, e depois vieram os três filhos, o “desquite”, os escândalos, a mudança para o Rio de Janeiro, o desejo de ser livre sem ser julgada. Enfim, tudo o que era da vida da “Pantera de Minas” – apelido criado pelo jornalista Ibrahim Sued –, era notícia. 

“Boa parte do que faz a história da Ângela relevante hoje é o papel que esse caso desempenhou ao impulsionar o movimento feminista brasileiro para as ruas, no combate à violência. Mas para além desse capítulo da história, a desumanização da Ângela, primeiro na mídia e depois no tribunal do júri, continua tristemente atual – sem falar na espiral tão conhecida de violência dentro do relacionamento com Doca que acabou culminando num feminicídio”, explicou Flora. 

Como não poderia deixar de ser, as responsáveis pelo Praia dos Ossos buscaram entender Ângela em toda sua complexidade e o crime que tirou a sua vida, e também o criminoso que o cometeu, como parte de uma estrutura maior de poder masculino sobre o corpo feminino. Branca lembra que “Ângela era retratada na imprensa como a sensual e meio porra louca, uma descrição obviamente redutora e preconceituosa. Foi muito interessante tentar entender quem ela foi, o que pensava, o que queria da vida, quem eram seus amigos, namorados e família, como ela foi criada, como era a sociedade em que ela cresceu”. 

Já Flora, mais estrangeira no lugar que no momento, confessa que foi fisgada de imediato “pelo desafio de encontrar a pessoa por trás do mito, em vida e em morte. Isso foi uma alegria e uma tristeza ao mesmo tempo, claro – é muito estranho conhecer uma pessoa na ausência dela, e por um motivo tão trágico”. Mas, por mais dolorida que seja, a história trágica de Ângela Diniz precisa ser contada sempre. Para nunca ser esquecida e, quem sabe, um dia jamais ser repetida.

ENTREVISTA MARJORIE ESTIANO (ÂNGELA DINIZ)

O quanto você já conhecia da história da Ângela Diniz antes de embarcar no projeto? Já tinha ouvido o podcast? Como esse projeto chegou até você e o que te levou a aceitá-lo?

Não conhecia a história da Ângela quando Andrucha me convidou e o podcast não tinha nem sido lançado também. Ele já tinha comprado os direitos, e ainda não tinha roteiro, mas aceitei na mesma hora. Tenho uma relação com o Andrucha de muita admiração, respeito e confiança [trabalharam juntos em Sob Pressão, tanto filme quanto série]. Ele é, para além de um artista que me inspira muito, um grande amigo. Estarei com ele sempre que chamar. Mas ao mesmo tempo, é um tema que me mobiliza muito. É uma causa que impacta a sociedade inteira, mas especialmente as mulheres e como tal, me sinto pessoalmente convocada. A necessidade de se discutir esse tema à exaustão até que mudanças realmente efetivas aconteçam é de extrema urgência. E depois de ouvir o podcast fiquei perplexa. O podcast Praia dos Ossos, do Rádio Novelo é incrível, muito rico, detalhado, requintado…a abordagem da Branca Viana é clara e complexa ao mesmo tempo, devorei a narrativa e já comecei a me planejar, planejar meu estudo e pesquisa.

Quais eram suas impressões sobre Ângela antes de encarná-la? E depois? Mudou algo após o término das filmagens?

Acho que a Ângela é uma provocação muito forte a todos nós, indivíduos e sociedade, antes e ainda. Ela como personalidade, seu assassinato, todo desdobramento jurídico e impacto na sociedade. Meu processo de estudo sofre e sofreu inevitavelmente influência da formação patriarcal que habita a todos nós, em menor ou maior grau de desconstrução. Foi um processo muito bonito de apropriação, de consciência de gênero, de investigação do papel político e social que nascer mulher determinou a mim. Esse foi dos aspectos mais difíceis e interessantes, para mim. Falar sobre um tema sem distanciamento é muito delicado. A arte não está dissociada dos valores da sociedade. Uma vez que todos nós ainda somos e vivemos em uma sociedade extremamente machista, conseguir ter clareza sobre a origem de uma escolha artística para a personagem não era possível. Assim sendo, nos restava reconhecer o contexto nebuloso de criação e tentar ao máximo compartilhar as decisões.

O que esse feminicídio tão brutal do passado pode nos ensinar sobre o momento atual?

Acho que o espelho de uma época, nem tão distante, que exibia a violência de forma tão exuberantemente explícita e relacioná-la com a atualidade é um exercício de autoanálise interessante. A cronologia da evolução e da não evolução sob a perspectiva da lei, comportamental, social, política…muito se caminhou, em especial no que diz respeito à liberdade individual da mulher, conquistas muito relevantes, porém, quando me volto para o fato por exemplo, de que minha liberdade de vestir, de transitar por espaços públicos ainda está sujeita a critérios específicos ao meu gênero, a sensação é viver em um recorte no tempo, sem perspectiva de mudança. É um tema extremamente urgente quando 4 feminicídios acontecem por dia em 2024/2025. É necessário que o tema fure a bolha do grupo e ocupe a sociedade inteira. A ponta do iceberg é a morte de uma mulher, mas pra isso acontecer tem uma série de falhas estruturais em absolutamente todos os departamentos da sociedade.

ENTREVISTA EMÍLIO DANTAS (DOCA STREET)

O quanto você já conhecia da história da Ângela e Doca antes de embarcar no projeto? Já tinha ouvido o podcast? Como esse projeto chegou até você e o que te levou a aceitá-lo? 

O nome Ângela Diniz sempre foi bastante familiar, devido à magnitude do crime e à repercussão que ele teve. No entanto, passei a conhecer melhor a história apenas depois de ouvir o podcast Praia dos Ossos. Escutei-o quando foi lançado e depois novamente para me aprofundar antes de trabalhar na série. O projeto me chegou por meio de um convite da Conspiração e, assim que entendi do que se tratava — sendo baseado nesse podcast documental, que acompanhei com muito interesse — achei interessante aceitar. Além disso, senti que era importante revisitar esse assunto, que demorou tanto tempo para ser compreendido e reconhecido desde a sua origem.

Qual maior desafio ao encarar um personagem tão controverso?

O maior desafio é saber que ele existiu de fato. Na ficção, conseguimos enxergar valores distorcidos e atitudes baseadas neles com algum distanciamento, o que dá certo conforto à mente. No entanto, ao lidar com fatos reais — sabendo das intenções e do comportamento do personagem — é muito mais difícil, porque você é constantemente lembrado de que isso aconteceu com alguém de verdade. Esse impacto foi ainda maior ao gravarmos em Búzios, próximos ao local onde tudo ocorreu. Essa proximidade tornou o processo emocionalmente mais intenso.

O que esse feminicídio tão brutal do passado pode nos ensinar sobre o momento atual?

Infelizmente, é a nossa atualidade que nos ensina sobre feminicídio, porque os índices de ocorrência continuam altíssimos, com uma brutalidade crescente, e os criminosos frequentemente pagam pouco ou quase nada pelos atos cometidos. É justamente por esse cenário que considero essencial trazer à tona a história de Ângela. Nesse caso, todos esses elementos ficam muito claros: Ângela era uma mulher que defendia sua liberdade, suas escolhas, sua ética, sua integridade e seus direitos. Em contrapartida, Doca Street estava completamente equivocado em suas certezas, seu moralismo e sua compreensão de relacionamentos humanos. Mais problemático ainda foi o judiciário, que aceitou o argumento da “legítima defesa da honra” — um absurdo que perdurou por mais de 30 anos nos tribunais — além da maneira midiática como o julgamento ocorreu. Esse caso, por ser quase inacreditável, oferece um material importante para que o público compreenda o que significa feminicídio no Brasil e como a sociedade e a cultura lidam com tais crimes.

Como você definiria Doca Street? E o seu Doca Street?

Penso sempre que Doca foi um homem que não entendeu nada, completamente equivocado, incapaz de compreender empatia, afeto, humanidade, amor e respeito. Ele morreu dizendo que amava Ângela Diniz, mas, paradoxalmente, cometeu um crime contra ela — algo absurdo e difícil de acreditar. Ele não questionou valores básicos e importantes e, portanto, agiu de forma equivocada. Mesmo após cumprir a quase insignificante sentença que recebeu, ele não parece ter aceitado o julgamento da sociedade em relação ao que fez. Em resumo, foi uma pessoa completamente fora da realidade, errada e, de certa forma, tosco.

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