terça-feira, 7 de outubro de 2025

this is absolute scorsese

como disse no post anterior, a edição de outubro da Revista Monet veio com dois textos meus: o sobre o recém-falecido Ozzy Osbourne e este sobre o muito vivo e ativo Martin Scorsese (e que foi a capa da edição). a deixa é a estreia na Apple TV+ do documentário em cinco partes intitulado Mr. Scorsese.

Martin Scorsese, Rebecca Miller e Daniel Day-Lewis

O HOMEM-CINEMA
 
Documentário em cinco partes, estreia do mês na Apple TV+, disseca a vida e a carreira de Martin Scorsese, um dos maiores cineastas da história
 
Prestes a completar 83 anos, Martin Scorsese continua frenético e apaixonado. E muito atento, sempre, ao passado, ao cinema, ao presente e, acima de tudo, à própria mortalidade. Talvez por isso esteja trabalhando como nunca, correndo atrás de muitas coisas ao mesmo tempo. Nos últimos dez anos, por exemplo, Scorsese dirigiu três longas épicos (Silêncio, O Irlandês e Assassinos da Lua das Flores), produziu uma série de TV (Vinyl), contou uma história de Bob Dylan (Rolling Thunder Revue), declarou seu amor à Nova York (Pretend It’s a City), narrou mais uma vez seu amor por artistas que o influenciaram (Made in England: The Films of Powell and Pressburger) e se divertiu atuando como si mesmo (na série The Studio). E até arrumou tempo para abrir seus arquivos para a série documental O Lendário Martin Scorsese, estreia do mês na Apple TV+.
 
Dirigida por Rebecca Miller, a série em cinco partes é um mergulho na vida e obra de um dos maiores cineastas do mundo, com direito a muitas cenas nunca antes vistas de bastidores de seus filmes e entrevistas inéditas com amigos e colaboradores como Robert De Niro, Leonardo DiCaprio, Mick Jagger, Daniel Day-Lewis (marido de Miller), Thelma Schoonmaker, Steven Spielberg, Sharon Stone, Jodie Foster, Paul Schrader, Margot Robbie e Cate Blanchett.
 
“Sou muito grata por ter tido a liberdade artística e o acesso para criar um retrato cinematográfico de um dos nossos maiores artistas vivos. Sua obra e vida são tão vastas e tão envolventes que a obra evoluiu de um longa para uma série em cinco partes ao longo de um período de cinco anos; e elaborar este documentário junto com meus colaboradores de longa data foi uma das experiências mais marcantes da minha vida como cineasta”, afirmou a diretora no release oficial de O Lendário Martin Scorsese.

 

UMA JORNADA PESSOAL
 
O bem e o mal, escolhas, lealdade, culpa, espiritualidade, violência, ambiguidades, pecados, moralidade, redenção, tem de tudo na carreira de Martin Scorsese. Desde o início, nos filmes universitários que fez em meados dos anos 1960, até o presente momento, o diretor assinou 26 longas de ficção, 16 documentários, e mais curtas, comerciais, trabalhos como ator, videoclipes, produções executivas, restauração de filmes antigos e sem dar sinais de parar ou desacelerar.
 
O último filme que lançou, o premiadíssimo Assassinos da Lua das Flores, já tem dois anos de existência, e Scorsese ainda não começou a produção de nenhum novo. É que o diretor precisa ter um projeto com roteiro mais desenvolvido e a certeza de quem pagará por sua realização, e essa conjunção de astros às vezes demora para se alinhar.
 
Então agora, agorinha, não é possível cravar qual será o novo longa de Scorsese: pode ser sobre a banda de rock Grateful Dead, ou um novo filme sobre Jesus (baseado em livro de Shusaku Endo, o mesmo autor que Scorsese adaptou em Silêncio), ou a história de um serial killer no século 19 (The Devil in the White City), ou uma cinebiografia de Frank Sinatra (The Old Blue Eyes), ou sobre a chegada da máfia siciliana em Nova Orleans (Midnight Vendetta), ou um drama policial ambientado no Havaí dos anos 1960/70 com DiCaprio, Dwayne Johnson e Emily Blunt, ou ainda outra parceria com DiCaprio, o drama de época Home (baseado em livro de Marilynne Robinson). Em todos, o cineasta enxerga um fio comum.
 
“Procuro sempre descobrir quem somos como seres humanos, como organismo, e do que são feitos os nossos corações. É isso que acho que estou procurando. Em outras palavras: continuo uma pessoa curiosa”, afirmou Scorsese em entrevista para o jornal inglês The Guardian em 2024. Um ano antes, mais prático, o diretor disse à revista GQ que “estou na idade em que você simplesmente... você vai morrer, não tem jeito. Isso não significa que você não aceite conselhos, nem discuta e argumente, mas chega um ponto em que você sabe o que quer fazer. E você não tem escolha”.

 
“VOCÊ ESTÁ FALANDO COMIGO?”
 
Mas Scorsese sempre soube o que quis fazer, mesmo quando não estava em seus melhores momentos. Foi assim com seus curtas universitários, com sua estreia em longas (o realista Quem Bate à Minha Porta?, 1967) e com seu encontro com o lendário Roger Corman (que o ensinou a dirigir com rapidez e poucos recursos, e assim nasceu Sexy e Marginal, 1972).
 
Seguro no ofício e estimulado pelo amigo John Cassavetes, o diretor resolveu dar um passo além em seu terceiro filme e decidiu falar sobre um mundo que sempre lhe foi familiar, o da máfia da Little Italy de Nova York. Caminhos Perigosos (1973) foi tanto um sucesso de crítica que colocou o nome de Scorsese no novo panteão do cinema norte-americano ao lado de Francis Ford Coppola, Brian De Palma, George Lucas e Steven Spielberg, e ainda por cima marcou a primeira colaboração com o ator Robert De Niro.
 
Sem planos a seguir aceitou o convite da atriz Ellen Burstyn para dirigi-la no drama romântico Alice Não Vive Mais Aqui (1974), que continua uma raridade em sua filmografia por ter uma protagonista mulher, mas rendeu um Oscar a Burstyn.
 
Então veio o encontro, via De Palma, com o roteirista (e futuro diretor) Paul Schrader que tinha acabado de escrever a história de um ex-combatente no Vietnã perdido nas impurezas de Nova York. Scorsese viu os demônios internos do escritor russo Fyodor Dostoiesvski na trajetória do atormentado Travis Bickle (Robert De Niro) e pegou Taxi Driver (1976) para si. O filme ganhou Palma de Ouro em Cannes e se tornou, rapidamente, um marco para o cinema. Scorsese estava com tudo e, pela primeira vez, viu seu mundo ruir.
 
Um dos motivos foi o fracasso de bilheteria de seu único musical, o estilizadíssimo New York , New York (1977), estrelado por Liza Minneli e Robert De Niro. Outro foi o estilo de vida recheado de álcool e cocaína que mergulhou junto com o amigo músico Robbie Robertson durante as filmagens do documentário O Último Concerto de Rock (1978). De Niro quem o resgatou do fosso ao sugerir a história de um pouco conhecido boxeador chamado Jake LaMotta. Touro Indomável (1980) tornou-se mais um clássico instantâneo de sua filmografia.
 
Os anos 1980 foram uma montanha russa de emoções para Scorsese, com direito a O Rei da Comédia (1982), com De Niro e Jerry Lewis, uma sátira pouco compreendida em seu lançamento, mas muito cultuada nos últimos anos; a comédia neurótica Depois de Horas (1985); um tradicional drama de bilhar A Cor do Dinheiro (1986), com Paul Newman e Tom Cruise; e o épico espiritual A Última Tentação de Cristo (1988), um filme muito caro às raízes católicas de sua formação.
 
“A beleza do conceito de Nikos Kazantzakis [autor do livro] é que Jesus tem que suportar tudo o que passamos, todas as dúvidas, medos e raiva. Ele me fez sentir como se estivesse pecando - mas ele não está pecando, ele é apenas humano. E também divino. E ele tem que lidar com toda essa culpa na cruz. Foi assim que o direcionei, e era isso que queria, porque meus próprios sentimentos religiosos são os mesmos. Penso muito sobre isso, questiono muito, duvido muito, e depois tenho uma sensação boa. E depois muito mais questionamentos, reflexões e dúvidas”, afirmou Scorsese em entrevista para a revista Film Comment na época do lançamento de A Última Tentação de Cristo.
 

“EU SEMPRE QUIS SER UM GANGSTER”
 
Vieram os anos 1990 e o cineasta começou a década com mais um clássico instantâneo, Os Bons Companheiros (1990), um violento e pulsante filme de mafiosos estrelado por De Niro, Joe Pesci e Ray Liotta. Com essa mesma energia dirigiu o eletrizante Cabo do Medo (1991), o suntuoso drama de época A Idade da Inocência (1993) e mais um filme de mafiosos, Cassino (1995). A década do cineasta encerrou com dois filmes muito espirituais, e muito diferentes entre si, o budista Kundun (1997) e o urbano Vivendo no Limite (1999).
 
Mas mesmo um diretor estabelecido como Scorsese, com alguns clássicos nas costas, sentiu novos baques nos anos 2000 para conseguir fazer seus filmes. O estupendo Gangues de Nova York (2002), o primeiro filme seu com Leonardo DiCaprio e o segundo com Daniel Day Lewis, foi palco de muitas brigas com o produtor Harvey Weinstein, o que acabou prejudicando sua divulgação. Em O Aviador (2004), o estúdio Warner cortou o orçamento na fase de edição e Scorsese precisou tirar dinheiro do próprio bolso para finalizá-lo. A mesma Warner pressionou o diretor para que pelo menos um dos protagonistas de Os Infiltrados (2006) não morresse para que pudessem dar início a uma franquia, e os executivos ficaram visivelmente tristes quando as primeiras exibições-teste aprovaram a visão do diretor (que, finalmente, ganhou seu primeiro e único Oscar de Melhor Direção).
 
Calejado por décadas de brigas com Hollywood, Scorsese seguiu os anos 2010 sem se abalar. Novamente chamou DiCaprio para protagonizar o thriller A Ilha do Medo (2010), depois fez uma bela homenagem aos primórdios do cinema em A Invenção de Hugo Cabret (2011) e mostrou mais uma vez sua eterna energia em O Lobo de Wall Street (2013). Então, aos 70 anos, meteu o pé no acelerador e na última década produziu sem parar como se pode ver no início do texto.
 
Em conversa com o historiador Richard Schickel, Scorsese confessou que “as pessoas dizem: você se leva muito a sério. Mas essa é a realidade. Estou empacado comigo, então é melhor dar ouvidos a mim mesmo e lidar com isso”. Afinal de contas, o tempo não para e nem Scorsese.

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