terça-feira, 21 de setembro de 2010

revista tem alma? e futuro?

fui chamado pelo pessoal da editora spring para fazer uma reportagem especial sobre a importância da arte e os desafios da área no atual mercado editorial brasileiro. algo assim. era pruma edição especial da em revista, uma publicação da aner (associação nacional de editores de revistas), lançada recentemente no fórum aner de revistas/world magazine marketplace. a matéria acabou caindo na última hora, o que foi uma pena, pois deu um trabalho danado. fiquei pensando se colocava aqui... afinal, tem um perfil mais institucional, menos autoral e tal... mas relendo, acho que ficou boa e desde já agradeço publicamente aos entrevistados que cederam momentos preciosos em suas agendas movimentadas. aquele abraço para o fotógrafo jorge bispo, o ilustrador daniel bueno, o designer marcelo calenda e o diretor de arte josé pequeno dos anjos neto.

ilustração de daniel bueno para a revista da cultura (setembro, 2009)

SOBRE A ALMA DAS REVISTAS

Sangrar ou não sangrar uma foto em página dupla. Tem espaço aqui para um box, mas também podemos substituí-lo por um infográfico. De repente, o título da matéria pode ser em uma fonte ilustrada e o texto pode começar com uma capitular. Ou não. Certo mesmo é que existem infinitas maneiras de se colocar o texto em uma página e de fazê-lo dialogar com fotos e/ou ilustrações. Ainda mais hoje com a profusão de ferramentas disponíveis em um computador. Para editoras, jornalistas e artistas gráficos, o desafio continua sendo como criar produtos (revistas) relevantes e interessantes para o leitor. Aqui falaremos com uma série de profissionais de uma área específica e muito importante dentro da engrenagem do mercado editorial brasileiro, o “pessoal da arte”, para saber mais sobre processos, relações e perspectivas. Esse pessoal não costuma falar sobre o próprio trabalho, um tanto por causa de suas muitas facetas intuitivas, mas quando falam...

“Não gosto de discutir técnica, portanto a minha resposta é que a câmera, o filme, o chip, tudo isso não tem significado nenhum, porque as câmeras são todas iguais. Elas simplesmente registram o teu sentimento. E você não fotografa com a câmera e sim com tua mente e o coração”, disse em 2007 a este repórter, o fotógrafo Otto Stupakoff (1935-2009). Ainda bem jovem, o paulistano fez parte da primeira geração de profissionais que modernizaram visualmente o mercado de revistas nacional a partir da década de 1950 (seus retratos e editoriais de moda tiveram papel fundamental na histórica revista Cláudia, da Abril, do início dos anos 1960). Foi contemporâneo de figuras como Attílio Baschera, Barreto, Grasseti e Aníbal Monteiro.

O ideário humanista dessa turma – que privilegiava tanto a parte técnica quanto uma ampla formação intelectual - não vale apenas para a fotografia, e parece cada vez mais atual e necessário. É que por trás de cada página impressa existe um tanto grande de profissionais envolvidos, e somente uma reunião de talentos e sentimentos singulares, aliados pelo propósito de comunicar, diferenciam um trabalho do outro. “Aprendi que as revistas têm alma e são únicas. As que são assim sobrevivem, enquanto as cópias morrem”, afirmou José Pequeno, diretor de arte da revista Época Negócios. Formado em Artes Gráficas com especialização em Desenho Gráfico, Pequeno teve uma formação multiplataforma, para usar um termo em voga (“Fazíamos de tudo: artes gráficas, fotografia, cinema e TV”), mas logo enveredou pelas páginas de títulos da Carta Editorial, tais como Vogue e Casa Vogue, na década de 1970.

Depois de uma passagem pela Abril, onde esteve em revistas como Quatro Rodas e Cláudia, até sua chegada a Editora Globo em 2001, o diretor de arte viu seu trabalho mudar radicalmente a partir da chegada da paginação eletrônica nos anos 1980 (tecnologia que começou nos jornais). Mas o benefício da agilidade trouxe à reboque uma perda de identidade e originalidade, segundo ele. Só que não demorou muito e também esse mundo foi sacudido, em meados da década de 1990, pela chegada da internet, um concorrente ainda mais ágil para revistas e jornais. Tal competitividade gerou um esperado e compreensível declínio de vendas, mas Pequeno acredita que “o mercado [brasileiro] amadureceu muito nos últimos 30 anos. Agora, talvez o grande desafio seja mostrar para as pessoas o quanto a leitura de um jornal ou revista pode ser uma experiência única, útil, importante e prazerosa. Temos que inovar e inventar uma nova maneira de contar histórias para ganhar o leitor. Nesse cenário o que sobra para as revistas? Voltar a ter alma, com uma pauta diferenciada, criativa, bom design e boa apresentação”.

Uma das maneiras de se alcançar essa “experiência única” é o trabalho em cima de boas referências, tanto nacionais quanto estrangeiras. O ilustrador Daniel Bueno acredita que “referências de qualidade são importantes e acho bobagem menosprezar o que é feito lá fora. É sempre bom acompanhar a boa produção estrangeira, sem cair obviamente na idolatria superficial, sabendo também refletir sobre o que é adequado à realidade nacional”. Formado em Arquitetura pela FAU-USP, o paulistano já colocou seu traço e suas colagens em publicações de editoras como a Abril e a Globo, além do jornal Folha de São Paulo e livros infantis.

O fotógrafo Jorge Bispo concorda. Formado em Belas Artes, o carioca, que já teve seus retratos estampados nas revistas Quem, Playboy, Vip, Monet, Bizz, Boa Forma e Rolling Stone, acha que “tudo que envolve imagem se constrói com referências de qualidade que acumulamos ao longo do trabalho. Quanto mais ferramentas temos mais fácil fica para criarmos algo nosso”. E hoje em dia são muitas as ferramentas disponíveis, invariavelmente digitais, unindo diretores/editores de arte, ilustradores e fotógrafos ao redor de um mesmo instrumento.

Por outro lado, esses profissionais também podem habitar um corpo só, o do designer gráfico. É o caso de Marcelo Calenda: “Sou formado em Comunicação, com ênfase em Publicidade e Propaganda, mas sempre fui autodidata. Comecei a trabalhar como ilustrador, mas com a popularização do computador houve uma demanda por editoração, assunto que gosto porque sou revisteiro. Depois veio o tratamento de imagens e a programação na internet. Tudo muito natural. Fui aprendendo a fazer porque sabia o que queria. Nunca consegui parar de fazer nenhuma dessas coisas, felizmente”. E seus trabalhos já foram impressos nas revistas Vip, Gloss, Rolling Stone, Pequenas Empresas Grandes Negócios, Exame e Superinteressante.

Entre passado, presente e futuro, os quatro entrevistados concordam que a maré está boa. “Uma coisa é certa, o poder aquisitivo brasileiro aumentou, estamos em outro país. Só precisamos de mais investimentos em tecnologia”, afirmou Calenda. E novos títulos continuam sendo lançados, novas parcerias são firmadas, a roda continua girando. “Apesar de alguns problemas, acho que o país tem um número considerável de publicações, muitas de qualidade, e vejo os profissionais fazendo planos e projetos, o que é muito positivo”, avalia Bueno, e entre alguns dos problemas está o medo de se arriscar. Mas não tem jeito, não tem escapatória, porque é a ousadia que faz história e vira referência. É ela que bagunça o coreto (porque alguém precisa fazê-lo). “Temos que aprender a ser mais livres, críticos, inquietos e curiosos com o que fazemos e produzimos porque os ventos parecem promissores”, é Pequeno que coloca um ponto final. Talvez reticências seja melhor...

já agradeci a todos os entrevistados, correto? mas aí vai um agradecimento especial a josé pequeno, o diretor de arte da época negócios, que deu uma entrevista cheia de informações e com uma perspectiva histórica tão bacana que acabou me ajudando e muito a costurar o depoimento dos outros. sem suas respostas teria tido muito mais trabalho para fechar esse texto. por isso, coloco aqui a sua entrevista na íntegra. valeu, pequeno!

DAFNE SAMPAIO - Qual sua formação? Quando e como começou sua vida profissional?
JOSÉ PEQUENO DOS ANJOS NETO - Sou formado em Artes Gráficas, com especialização em Desenho Gráfico. Comecei muito cedo, aos 17 anos, no CENAFOR. Tive a felicidade de trabalhar com bons profissionais e gente de muito talento naquela época. Fazíamos de tudo: artes gráficas, fotografia, audiovisual, cinema e TV. Desenvolvemos o projeto piloto da TV Educativa com a Fundação Padre Anchieta e a TV Globo. Isso foi até os 22 anos, quando comecei a trabalhar com revistas na recém-fundada Carta Editorial, já como editor e depois diretor de arte. Também tive muita sorte porque peguei bons veículos. Comecei na Arte Vogue com o Prof. Pietro Maria Bardi, depois fui para a Casa Vogue junto com o Luís Carta e nos anos 80 na Vogue com o Daniel Más e a Regina Guerreiro. Conheci bons jornalistas, fotógrafos, ilustradores, artistas plásticos e criativos. Tive uma passagem também pela Editora Abril. Na 4Rodas fiz o primeiro Guia de Praias e depois fui convidado pela Célia Pardi a participar da mudança editorial e gráfica de Claudia, uma revista que faz parte das minhas melhores recordações de infância junto com a Realidade, a Setenta, O Bondinho, O Pasquim, JB e o JT, aí já na adolescência. Na Abril conheci dois ídolos: o Barreto que tinha desenhado a Realidade e o Grasseti que arrasava na Playboy dos anos 70. Na Carta Editorial, tive o prazer de conhecer e trabalhar com o Aníbal Monteiro, João Baptista da Costa Aguiar, Murilo Felisberto, Tomas Lorente, Ehr Ray e o querido Attílo Baschera, que foi um dos primeiros diretores de arte de Claudia. Tive bons parceiros fotógrafos e devo muito aos fotógrafos Otto Stupakoff, David Zingg e Lew Parrela. Assim como ao genial e gentil José Zaragoza. Vim para a Editora Globo em 2001 para o projeto de uma semanal na revista Quem Acontece e em 2008 começei um novo projeto mensal, o da Época Negócios onde estou até hoje.

Do manual na raça até o digital, o que mais mudou no mercado de quando você entrou até agora? E quais as maiores diferenças que você sentiu no seu trabalho diário?
Primeiro a formação do profissional. Nos anos 60 e 70 existia só o Desenho Industrial ou Artes Plásticas. Tinha que ser mesmo com a cara e a coragem. Éramos paginadores ou diagramadores. Até hoje há essa briga com o sindicato dos jornalistas. Diferente dos EUA, que instituiu a função ainda nos anos 20 (!) e da Europa que têm escolas e institutos especializadas em Design Gráfico, como a Parsons e o Royal College, por exemplo. Hoje o ensino melhorou e os profissionais chegam mais preparados. Avalio sempre pela formação pessoal, mais do que a experiência profissional que às vezes pode mascarar o potencial do profissional. Depois, a velocidade. Havia um tempo maior nas agendas da turma do texto e da arte para a elaboração de uma matéria, de como ela seria editada e publicada na revista. Procurava-se a excelência. Revistas bem sucedidas e sempre reverenciadas foram criadas por pessoas assim como o M. F. Aga, Alexey Brodovitch e Alexande Liberman, Milton Glaser, George Lois. Hoje este diretor de arte autor quase não existe mais, porque com o advento dos programas de paginação eletrônica - e que vieram dos jornais - as revistas ficaram iguais. O mundo ficou igual. O template criado pelo Roger Black é um produto destes tempos. É bom porque dá base e métodos para a produção para o trabalho, mas não pode ser visto e aplicado como verdade absoluta. Claro que ganhamos muito com a tecnologia, mas com a massificação instantânea da internet e da TV a cabo perdemos a identidade e a originalidade. Isso ficou para os ainda poucos e bons como o editor da Esquire americana, David Granger, que estimula e provoca o seu diretor de arte para criar mensalmente novas maneiras de se ver e ler uma matéria. Ou do jovem diretor de arte da Wired, Scott Dadich, que abusou do design experimental na revista - todo jovem designer sonha em um dia trabalhar lá - e pensou, criou e desenvolveu junto com Adobe o formato para Pads. Ou ainda do ex-editor da Wallpaper, Tyler Brûlé, que criou na contramão a Monocle e acabou de lançar uma versão em formato de jornal que circulou em todo o Mediterrâneo no verão europeu. No dia-a-dia, vejo as redações cada vez mais jovens mas não menos talentosas. Porém com falhas de formação e bagagem. Aprendi muito olhando e estudando as revistas internacionais. Compro mensalmente às minhas custas (rs) uns 15/20 títulos. Repasso para o departamento de arte e também para os repórteres editores. Também repasso via e-mail notas de blogs de design e até de pautas que acho interessante. Pode ser útil. Faço o que fizeram comigo.

Qual a importância de referências visuais de revistas estrangeiras para a construção de uma identidade visual nossa/própria? Essa busca por referências (os tais benchmarks) se acirrou nos últimos tempos?
Um dia escutei a seguinte frase de um famoso editor já falecido: "O importante é ter a referência certa na hora certa". Anos depois, ouvi de outro diretor em um auditório cheio de designers e jornalistas: "Não chamaria isso de cópia, mas de atalho". Acho fundamental comprar, ver e 'ler" a matéria também. Traduza-se ler por 'entender' como e porque a matéria foi feita daquela forma. Este é o bom benchmark. Qual é o perfil do leitor, a cultura do país, etc, etc. Aprender, entender e não copiar. É como nas artes, na música e até no esporte: não dá prá copiar ou fazer uma versão parecida do Picasso, o Miles Davis ou o Zidane. Aprendi que as revistas têm alma e são únicas. As que são assim sobrevivem, as cópias morrem. O que funciona na Quinta Avenida não necessariamente dará certo na Av. Paulista. O mal benchmark é quando ele vira, por alguma razão inexplicável para mim, verdade absoluta. Já escutei e debati ou rebati várias nestes anos de carreira... É um insulto à inteligência e um desestímulo para os mais jovens. É como pensar: “Por que vou criar algo novo (layout), se tudo já foi inventado?”

A competição da midia impressa com a virtual tem se acirrado nos últimos cinco anos. Qual o grande desafio para a área visual das revistas e jornais para se diferenciar do conteúdo virtual?
Observamos um declínio nas vendas de revistas nas bancas nos últimos anos e já dizem que o leitor de mídia impressa vai acabar. Isso não é verdade. O que ocorre é que as mídias virtuais bombardeiam todo o tipo e qualidade de conteúdo 24 horas na cabeça das pessoas. Vivemos a overdose da informação desinteressante. Descontando matérias e sites de serviço, quase nada é relevante ou importante que você dedique um pouco do escasso tempo que lhe resta. As pessoas hoje preferem muito mais a gratificação material do que a intelectual. Intelectual só se for para plano de carreira. A recente crise econômica apontou e puniu os excessos e mostrou para o mundo que a nossa vida não pode ser só isso. Acredito que só o trabalho cosmético das publicações, o redesign que é tão comum, não resolverá o desafio de recuperar os leitores. Algumas revistas americanas fecharam logo após terem feito esta bobagem. É necessário repensar o projeto editorial mas sem querer competir com o site, o blog e a TV a cabo. Com a invenção do iPad comemorou-se o renascimento da leitura. Uma nova mídia proporcionada pela tecnologia, assim como foram o rádio, o cinema e a TV. Talvez o grande desafio seja mostrar para as pessoas o quanto a leitura de um jornal ou revista pode ser uma experiência única, útil, importante e prazerosa. Não acredito que haverá uma ruptura e sim uma sinergia de várias plataformas. E o papel de edição deste conteúdo (texto e imagens) continuará sendo feito pelos mesmos profissionais. Temos que inovar e inventar uma nova maneira de contar histórias para ganhar o leitor. Nesse cenário o que sobra para as revistas? Voltar a ter alma, com uma pauta diferenciada, criativa, bom design e boa apresentação. E para os jornais um pouco mais de inteligência editorial, análise e opinião clara. É só isso que as pessoas querem saber: qual é a turma delas.

Como você o mercado editorial brasileiro nos dias de hoje? O que já dominamos e o que ainda temos que aprender?
Vejo um mercado que amadureceu nos últimos 30 anos. Os anos 80 foram devastadores e quase acabaram com a nossa profissão de jornalista e com as editoras aqui no Brasil. A estabilidade econômica proporcionou um planejamento e estratégia melhor para o mercado. A ascensão de classes também. Abriu um novo flanco a ser explorado pelas editoras e já vejo novos títulos sendo lançados. Estamos exportando títulos: depois da Abril, agora é a Trip que está desembarcando na Alemanha, e conversa com a Inglaterra e Estados Unidos. Ou mesmo a Editora Globo, cuja preocupação com a qualidade editorial atraiu o olhar da Condé Nast. Mesmo assim, sei que estamos longe da excelência de uma edição americana ou européia. Temos que aprender a ser mais livres, críticos, inquietos e curiosos com o que fazemos e produzimos porque os ventos parecem promissores.

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