Ele desce do carro e segue a pé rumo ao ateliê que conserva há 25 anos no bairro de Sumaré, São Paulo. Passos curtos, cautelosos e decididos. Logo abre o portão e desaparece sob as muitas plantas de uma casa moderna, feita em concreto armado, assinada pelo arquiteto Carlos Lemos. Um dos mais importantes e conhecidos pintores brasileiros está feliz da vida. Prestes a completar 83 anos, o cearense Aldemir Martins ganha sua primeira retrospectiva que o flagra desde a juventude em 1945 até o presente ano de 2005. Intitulada Sete décadas de sucessos artísticos, a exposição segue no MASP até 28 de agosto e resume tão longa e premiada carreira em 192 obras (136 pinturas e 56 gravuras em papel).
“É uma loucura ver o quanto já trabalhei”, diverte-se Aldemir ao relembrar de um passeio recente pelos corredores do MASP durante a montagem da exposição. Agora, para botar essa loucura de pé, nas paredes, foi preciso o jornalista, médico e colecionador Benemar Guimarães dar início, há três anos, a uma pesquisa profunda sobre toda sua obra. O trabalho contou com a ajuda dos filhos do artista, Mariana e Pedro Martins, e Umberto Mateus, arquiteto e assistente administrativo de Aldemir. Tal pesquisa também se transformou no luxuoso livro Aldemir Martins por Aldemir Martins (BestPoint Editora), lançado simultaneamente à exposição, que traz pouco mais de 400 ilustrações, reportagens e depoimentos do artista e de seus familiares, além de um prefácio assinado por Emanoel Araújo.
MAS ANTES – Filho de um funcionário público ligado a rede ferroviária com uma índia bugre, Aldemir Martins é do dia 8 de novembro de 1922, do distrito de Ingazeiras, município de Aurora. Ceará. Um Ceará quase Paraíba. Começou a pintar quando prestou o Colégio Militar, já em Fortaleza, e tornou-se ‘cabo-pintor’ para aumentar o soldo. Após voltar à vida civil, e largar de mão dos tanques e caminhões que criava/reproduzia, Aldemir aprendeu mais sobre técnica com mestres pintores acadêmicos como Raimundo Cela (1890-1954). Mas não demorou muito para sentir os primeiros sopros de liberdade artística com o amigo Mário Barata (1915-1983). Incentivado pelo crítico de arte paulistano Paulo Emílio Salles Gomes, que o conheceu em Fortaleza, o cearense decidiu sair de sua terra e tentou o Rio de Janeiro, mas mudou o rumo para São Paulo, aonde chegou em 1946. “Fui um dos primeiros paus-de-arara a chegar aqui, mas não senti medo, porque nem fazia idéia do que era São Paulo”, relembra e logo completa “que o que mais me interessou em São Paulo foi o respeito, porque aqui as pessoas sabiam que eu era artista plástico e eu também sabia. Sempre houve respeito. Fora o fato de que casei aqui, tive meus filhos e fiz toda minha vida nessa cidade”.
E no que o Ceará contribui para a obra de Aldemir Martins? “O Ceará me deu tudo. Tudo o que fiz até hoje é para pagar o que o Ceará me deu e que ainda dá. Minha terra continua me alimentando com vontade de trabalhar, capacidade de fazer coisas bonitas e muito carinho pelo povo”, e o peito octogenário enche ao dizer isso.
DURANTE – A conversa é interrompida por dois donos de galeria que chegam ao ateliê com uma tela falsificada comprada em um leilão de artes no Rio de Janeiro. É o retrato de uma mulher. Quando encontram telas sem certificado, os donos de galeria mais responsáveis as levam para um especialista; é a prova dos nove, digamos assim. Aldemir sorri quando a vê. “Acho divertido ver falsificações do meu trabalho. Você vê que a pessoa tenta imitar e não consegue, e muitas das vezes nem se deu ao trabalho de estudar minha obra. Olha, nunca usei esse tipo de pincel, muito menos esse cor-de-rosa, e a tela que uso é feita artesanalmente”, explica pausadamente enquanto mergulha em um curioso ritual para tirar a tela falsa do mercado.
Tudo começa com a tela sendo fotografada. Depois é danificada pelo próprio Aldemir com um X pintado na frente e atrás para depois o assistente escrever ‘tela falsa’. Aldemir assina. Nova foto. Só então é feito um documento atestando a falsidade da obra que será levado à delegacia para abrir um boletim de ocorrência. Pronto, entrevista segue.
E DEPOIS - Aldemir não demorou a se integrar ao mundo artístico da metrópole e ganhou prêmios importantes nas três primeiras Bienais no início da década de 1950. Tipos nordestinos como cangaceiros e rendeiras pulavam de suas telas, ágeis e modernos, e logo alcançaram fama mundial depois da premiação como Melhor Desenhista Internacional na Bienal de Veneza em 1956. Viajou muito a partir daí. Esteve, e morou, na França, Inglaterra, China, Japão e Estados Unidos, entre outros países. Mas nenhum desses países deu motivos para suas pinturas: “Não sei fazer outra coisa que não seja Brasil”.
Mas mesmo com tantos prêmios e reconhecimento mundial, Aldemir Martins acabou se tornando popular por causa de um felino. Até os mais leigos em artes plásticos conhecem os gatos de Aldemir. A história de como tudo começou é, mais ou menos, a seguinte: “Foi uma encomenda de uma amiga, uma senhora alemã que morava no Rio de Janeiro. Ela queria um companheiro e me pediu para desenhar um gato. Faço gatos até hoje por causa dela e também porque o gato é um ser feminino, tem aqueles movimentos de se torcer e enroscar. Gosto dessa feminilidade do gato. Mas nesses anos todos acho que eles não mudaram nada... quer dizer, só engordaram”, e dá uma risada.
Os gatos o fizeram popular, mas é outro tema, também cheio de movimento, que atrai o artista desde a infância: o futebol. Corintiano devoto, Aldemir retratou Pelé, Rivelino e muitas e diversas jogadas. “É estranho. Aqui no Brasil as pessoas acham que o futebol é coisa de pobre. As pessoas têm vergonha de ser índio. Eu nunca tive vergonha de nada na minha vida e continuo interessado em tudo”, afirma categoricamente. Pausa. Aldemir abre seu livro em uma página qualquer e se perde em pensamentos. Na página, dois galos brigam, espalhando sangue.
p.s.: aqui embaixo uma entrevista que achei no youtube. a entrevistadora... sei não... mas é bom ouvir o aldemir, de qualquer jeito.
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