sábado, 15 de agosto de 2009

habla hector

lá na época que trabalhei na som livre loja virtual estive no set de filmagens de carandiru (2003). fui com o mano jefferson peixoto e acompanhei algumas cenas. lembro de luis carlos vasconcelos e caio blat. lembro da tropa de choque em posição de ataque na frente de um dos pavilhões em revolta (o contraplano com os presos nas janelas tinha sido filmado no dia anterior). lembro que, muy ironicamente, surgiu uma pomba & branca minutos antes do "ação!" e que o cineasta hector babenco, vendo-a, disse: "uma pomba branca?! vamos comer com polenta!". dessa vez não houve entrevista.

tempo passou e agora no início do ano fui até o escritório de sua produtora, pertinho do parque do ibirapuera, para uma entrevista (reportagem pra
monet de agosto que tá rodando aí). a deixa foi uma retrospectiva quase total de sua carreira lá no canal brasil com a seguinte programação: pixote, a lei do mais fraco + pixote in memoriam (dia 18), o rei da noite (dia 19), o beijo da mulher aranha + making of (dia 20), lúcio flávio - passageiro da agonia (dia 21), brincando nos campos do senhor + making of (dia 25), coração iluminado (dia 26), carandiru + carandiru.doc (dia 27) e o passado (dia 28). uma pena que o belo e triste pra cacete ironweed, aquele com jack nicholson e meryl streep, ficou de fora. o resultado de quase 1h30 de conversa das mais francas segue abaixo. as fotos que ilustram o texto são do pessoal da cia. de foto (que durante a sessão fez aquela longa exposição que postei dias atrás).


FALA BABENCO

Rua estreita, arborizada, toda residencial. Nela, uma casa com clima de cidade interior, varandinha e jardim na frente. Mas não é aqui a residência de Hector Babenco. “Ele já está chegando, mora aqui pertinho”, tranquiliza Susana, assistente do cineasta, logo após abrir o portão. Nas paredes da sala de recepção de sua produtora, a HB Filmes, alguns cartazes de suas produções dividem espaço com uma estante repleta de caixas com documentos intituladas Coração Iluminado ou então Carandiru ou então qualquer outro de seus nove longas. Este mês, oito deles estarão numa inédita retrospectiva, acompanhados de quatro documentários de bastidores e um perfil, que o Canal Brasil dedica ao mais brasileiro dos cineastas argentinos (ou vice-versa). “Um café enquanto espera?”, é novamente Susana pelejando contra o tempo.

Mas não demora muito para o sotaque inconfundível de Babenco, imutável apesar de quatro décadas de São Paulo, surgir da rua. Após dois telefonemas, sendo um para o amigo Arnaldo Jabor com o objetivo de combinar um teatro mais tarde, a entrevista começa. Logo de cara, e muito francamente como é seu hábito, explica porque nunca antes tinha liberado seus filmes para exibição na TV. “Sempre achei que a televisão é um baita mercado para filmes, mas não existe no Brasil uma legislação que proteja os realizadores dos preços ofensivos que as TVs oferecem.”

Antes da proposta do Canal Brasil, Babenco só abriu exceção em 2005 para a TV Globo passar Carandiru, que chegou a dar surpreendentes 50 pontos de audiência, como uma porta de entrada para a minissérie Carandiru – Outras Histórias, no qual assinou como produtor. Agora, menos pelo preço e mais pela oportunidade de alcançar um novo público, o cineasta de 63 anos arregaçou as mangas e levou seus primeiros filmes (O Rei da Noite, Lúcio Flávio, Pixote e O Beijo da Mulher Aranha) para serem restaurados em Los Angeles. Ironweed, o único de fora da retrospectiva, não entrou porque a distribuidora que detém seus direitos de exibição, a Lions Gate, não aceitou o preço oferecido pelo Canal Brasil. “Quero também mostrar o que fiz para pessoas que não tiveram acesso e a TV pode cumprir esse papel. A minha missão como cineasta avança com isso. Quer dizer, é mostrar o que construí para ser consumido de uma forma mais democrática.”

E, Babenco, como foi rever seus filmes? A primeira reação veio em forma de uma estrondosa e enigmática gargalhada para depois ganhar forma de reflexão. “É sempre uma coisa muito forte porque remete a uma sensação de surpresa de ver quem eu era quando fiz esses filmes. Porque você vai crescendo e se esquece de quem foi; o que buscava quando os fez; e o que conseguiu lograr do que desejava. O momento da criação desses filmes sempre foi muito instintivo, irracional, gestual, de entrega total, como se fosse uma obsessão. Cada filme acaba virando um pedacinho da sua memória jogado ao mundo. Acredito que são os melhores pedaços de mim.”

O AMOR É FILME – Babenco é um sobrevivente. Primeiro, de si próprio, pois passou boa parte da década de 1990 lutando contra um câncer no sistema linfático. A cura veio tanto pelo cinema (Coração Iluminado) quanto pela medicina e durante este processo conheceu e se tornou amigo do médico Dráuzio Varela, que estava começando a escrever Estação Carandiru, que viria a se tornar seu próximo filme.

Mas o cineasta também é um sobrevivente de uma geração de cinéfilos que se formou na década de 1960, em tempos de Nouvelle Vague, Cinema Novo e outras revoluções culturais. “Uma vez o [Francis Ford] Coppola me disse: “Hector, não interessa um filme, o que interessa é se a gente foi capaz de lograr, em alguns filmes, imagens que fiquem no inconsciente dos espectadores”. Caralho! Tenho algumas imagens emblemáticas em meus filmes! A cena da Marilia Pêra amamentando o Pixote me levou, na época da filmagem e agora quando a revejo, a um momento sublime de criação, assim como senti quando assisti Ingmar Bergman, Michelangelo Antonioni, ou quando vi pela primeira vez Acossado do Jean-Luc Godard. São coisas que te revelam um universo em um momento que não se repetirá jamais. Hoje em dia, nesse universo poluído pela banalidade das imagens, os jovens precisam ter sensações assim, porque faz tempo que o cinema perdeu sua qualidade sagrada.”

Mas ele não é do tipo que se irrita e muito menos pragueja contra “esse mundo de hoje”. Após uma pausa encosta o charuto no cinzeiro. “Sou meio louquinho. Tento fazer filmes fáceis porque tenho um lado que adora ser comunicador, não gosto de coisas herméticas, mas é que existe uma relação entre as coisas que faço e o meu inconsciente. Por isso prefiro evitar esse compromisso de dizer que algo é a verdade. Vejo meus filmes como sonhos que posso ter à noite.” Quando estes sonhos recebem o sinal verde para se tornarem realidade reveladas em 24 quadros por segundo, Babenco entra em uma nova espiral de loucuras pessoais. Adora procurar locações, o processo de montagem e as primeiras horas de um dia de filmagem. “Descubro o filme a cada dia no set. Quer dizer, tenho meus planejamentos, dou o máximo de informações possíveis para meus colaboradores, deixo eles brincarem a vontade e na última hora escolho os ingredientes pra fazer o meu cardápio. Das 7 e meia às 9 da manhã sou uma fera e posso ter ataques de raiva ou momentos de alegria quase histérica que não hesito em comunicar pra todo mundo. O resto do dia é mecânico. Tento respeitar aquilo que inventei nas primeiras duas horas.”

ALTER-EGOS - Foi em 1969 que Babenco pisou pela primeira vez no país e apenas oito anos depois se naturalizou. Nesse meio tempo, e em plena ditadura, o cineasta mergulhou nas belezas e horrores de um país em intensa transformação e conseguiu produzir dois clássicos muito brasileiros (Lúcio Flávio e Pixote), sempre acompanhado dos melhores atores e atrizes nacionais. Mas o sucesso internacional de Pixote o levou a Hollywood que lhe deu atores e dinheiro para o oscarizado O Beijo da Mulher Aranha. Seu filme seguinte, Ironweed, o fez trabalhar com Jack Nicholson e Meryl Streep, e poucos anos depois, em Brincando nos Campos do Senhor, reuniu-se com outros grandes atores e atrizes americanos. Já nos mais recentes Coração Iluminado e O Passado contou, pela primeira vez, com profissionais que falavam sua língua natal.

Entre atores e atrizes de tantas nacionalidades, Babenco não vê superioridades. “Não há a menor diferença em trabalhar com Jack Nicholson ou Paulo José, com Meryl Streep ou Marilia Pêra. É o que sinto. O grau de responsabilidade tem que ser o mesmo. É que me afino mais com atores brasileiros porque eles tem, por exemplo, menos carga cultural que os argentinos, que são mais acadêmicos. O Brasil é mais radical, espontâneo, natural, e é a naturalidade que mais me interessa em um ator.”

Mil lembranças devem passar por sua cabeça e como não é sujeito de fazer média assume um erro que lhe tirou muitas noites de sono: a escalação de Tom Berenger como um índio americano em Brincando nos Campos do Senhor. “Ele é uma merda, uma estátua, uma pessoa sem emoção, careta e impermeável.” Mas esse assunto é coisa do passado e Babenco agora pensa, com tranquilidade, no que vai fazer com o seu futuro. Tem duas histórias na ponta da agulha, uma épica e bem brasileira e outra mais autobiográfica. “Tô vendo qual delas me inspira mais.” Um ponto em comum com toda sua filmografia: a certeza de que cinema pode ser mais, pode ser outra coisa.

Nenhum comentário: