segunda-feira, 22 de março de 2010

besouro X mirageman

ação não é pra gente e quando digo "a gente" me refiro a nós aqui abaixo da linha do equador, latinos e sulamericanos de sangue ou adoção. não temos maturidade técnica, industrial e de linguagem suficientes para fazer filmes populares de ação. taí um pensamento recorrente, uma daquelas "verdades incontornáveis", e filmar ação sempre foi nosso calcanhar de aquiles. pelo menos até os anos 2000. aqui no brasil, os longas cidade de deus (2002) e tropa de elite (2008), mesmo não sendo de ação propriamente ditos, trouxeram sequências poderosas e muito bem coreografadas, fotografadas, filmadas e editadas. mas nem sombra de um trabalho pensado exclusivamente para o gênero e que fosse tão bem produzido quanto cidade e tropa. então veio besouro (2009), uma aventura sobre a força da cultura negra, a mítica da capoeira e as lendas sobre um de seus fundadores, o muito real manuel henrique pereira (1895-1924). combinação explosiva de ação e brasilidade. olha aí o trailer do longa que acabou de chegar ao dvd.




após assistir à estreia de joão daniel tikhomiroff (experiente diretor de publicidade) é impossível não ficar com a sensação de que ainda não foi dessa vez, mas que um caminho próprio está sendo construído. cheio de boas soluções visuais, besouro é filme de sequências bonitas e bem construídas dentro de um todo capenga: buracos no roteiro, final que se anuncia algumas vezes antes de chegar anticlimático e protagonistas que não ajudam muito. o clima geral de fantasia acaba prejudicando um filme que seria melhor se fosse um pouco mais realista (pelo menos nas partes que não são de luta). voltando aos protagonistas, ailton carmo (besouro) e jéssica barbosa (dinorá) se esforçam, mas não conseguem conferir naturalidade aos personagens e nem a um texto que soa por vezes pomposo demais. o grande momento dos dois, e um dos melhores do filme, é a descoberta do amor que começa em forma de jogo lento de capoeira e que, aos poucos, transforma-se em carinho e tesão. mas fora isso não dá, não é o bastante.

as sequências de ação são muito bem filmadas, com coreografia do chinês hiuen chiu ku (kill bill e matrix), ágil trabalho de câmera do equatoriano enrique chediak e edição do brasileiro gustavo giani. o trabalho azeitado entre coreografia, câmera e edição são o segredo de uma eficiente sequência de ação e besouro se dá bem no trabalho (o que não lhe garante solidez, infelizmente). destaque para uma intensa luta entre besouro e o amigo-antagonista quero-quero que sai do chão e pula de galho em galho sob uma luz azulada de final de madrugada, começo de manhã. aliás, ainda é tempo de apresentar quero-quero, amigo de infância de besouro, eterno apaixonado por dinorá e eventual traidor de sua gente. é feito pelo bom anderson santos de jesus e é um dos poucos personagens melhor construídos na trama. não coincidentemente, os outros que se salvam também são os vilões interpretados por flávio rocha (coronel venâncio) e irandhir santos (noca de antônia, o capanga).

um ensinamento de besouro é que a capoeira fica muito bonita no cinema. tem balanço, flexibilidade, plasticidade e surpresas. claro que pra fazer um bom filme de ação brasileiro não é obrigatório que a luta seja capoeira, mas que é um belo jeito de se diferenciar isso é. pra finalizar, tikhomiroff fez uma ótima escolha ao chamar o trio rica amabis, tejo damasceno e pupillo pra assinar a trilha sonora. dão o toque exato de modernidade e tradição, numa roupagem contemporânea, e trazem ainda participações de nação zumbi, gilberto gil e naná vasconcelos (no canal do filme no youtube existem bons videos de making of). não consegui entender porque a trilha não foi lançada em cd. por isso coloco aqui "besouro", canção que o emicida lançou no começo desse ano, é parte do ep sua mina ouve meu rap também, e que também poderia facilmente fazer parte da trilha.

Emicida - Besouro by dafnesampaio


pouco depois de assistir besouro me deparei com um filme chileno chamado mirageman (2007) via indicação de @danielferraz. não sabia de sua existência e muito menos do diretor ernesto diáz espinosa (entrevista boa com o sujeito aqui). este é seu segundo longa. o primeiro foi kiltro (2006) e o terceiro é mandrill (2009). juntos formam uma espécie de trilogia chilena de ação urbana, contemporânea e realista. a história gira em torno de um sujeito solitário e orfão (maco gutierrez, interpretado por marko zaror). ele tem um irmão mais novo, adolescente, que enlouqueceu após presenciar o assassinato dos pais por bandidos. maco vai levando a vida morando em um subsolo, treinando artes marciais e trabalhando como segurança de uma boate mequetrefe. em um dia, meio que por acaso, vê um assalto a uma casa e decide agir. pega a máscara do primeiro meliante que derruba, sai porrando o resto e depois foge na escuridão. detalhe: a mocinha que salva é uma jornalista de tv que no jornal do dia seguinte emplaca uma matéria sobre o tal "justiceiro mascarado". ele se sente envaidecido por essa história de herói, um tanto curioso, meio com tesão pela jornalista e ainda vê seu irmão catatônico se interessar por algo após anos dentro de um quarto. então surge mirageman que enfrentará algumas missões durante o filme, com direito a algumas vitórias, derrotas humilhantes e doloridas e até a companhia de um desastrado pseudo-robin. saca só o trailer.



uma das coisas mais interessantes no roteiro muito bem costurado de mirageman é a seriedade com que trata o assunto, a ação, a trama, os personagens. não existe espaço para deboche ou histrionia. existe humor sim, ironia também, afinal é impossível não rir de uma pessoa que, no mundo real, usa uma fantasia extravagante e sai pela rua lutando contra criminosos. por exemplo, em sua primeira missão, o sujeito demora um bocado para tirar sua roupa de civil (a calça prende no sapato, etc.) e quando, após derrubar quatro marginais, volta para retomá-la a roupa foi roubada. então ele sai pelas ruas, mascarado, e tenta pegar um táxi. não consegue. acaba pegando carona com um caminhão de lixo e até ajuda a recolher uns sacos. no noticiário noturno - a tv/mídia sensacionalista e parcial tem papel importante no filme - uma matéria entrevista testemunhas dessa atabalhoada corrida do herói e dizem que seu uniforme é um tanto ridículo e efeminado. então a apresentadora manda um recado: "sr. justiceiro, se for continuar com o trabalho faça o uso de um uniforme que não faça os criminosos rirem". não tem comédia nenhuma nisso, mas tem humor, o que faz com que o longa não tenha aquela afetação militarista de hollywood. essa diferença no tom é um dos grandes achados do filme.




durante sua trajetória no filme, mirageman bate muito - é o próprio marko zaror, protagonista de todos os filmes de ernesto diáz espinosa, que faz as poderosas coreografias das lutas -, apanha bastante, é inúmeras vezes enganado (por exemplo, pela ardilosa jornalista & interesse amoroso). é o puro de princípios em meio a uma sujeira moral. assim são os heróis. e mirageman mostra mais uma vez que a vida de um herói não é nada fácil, ainda mais na vida real. com tudo isso junto, o filme chileno consegue ser entretenimento com subtexto da pesada, combinação rara no cinema popular brasileiro. fora a ótima trilha blaxploitation assinado por um tal de rocco.

de uma forma ou de outra, besouro e mirageman são prova que heróismo e ação não são exclusividade do "primeiro mundo". a gente é pobre, passa uns perrengues, precisa lidar com escroques de toda sorte e, talvez exatamente por isso, também quer sair por aí distribuindo sopapos, fazendo justiça, ou pelo menos se defendendo das injustiças. de um jeito nosso.

p.s.: mirageman não chegará por aqui em circuito comercial, ou em dvd, mas é fácil de achar nos torrents da vida, mas invariavelmente com legenda em inglês. também é possível assistir o filme todo no youtube, em 9 partes, cortesia do usuário nightmare674.

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