mas vez ou outra os assuntos “empoeirados” de burns falam muito próximo do presente de todos e, talvez, do nosso futuro. em unforgivable blackness: the rise and fall of jack johnson (2007) questões raciais ainda não curadas voltam a assombrar na intensa e dolorosa trajetória do primeiro campeão de boxe negro dos estados unidos (entre 1908 e 1915). já nas entrelinhas de the national parks: america’s best idea (2009) louvam-se os esforços de indivíduos e alguns governos na defesa da natureza. é também o caso do recente, denso e eletrizante prohibition, série em três partes co-dirigida por lynn novick que trata da gênese moralista que culminou na famigerada lei seca dos anos 1920-30.
como sempre a pesquisa de textos e imagens é avassaladora e a câmera de burns passeia nas minúcias de fotos cheias de histórias ao som da trilha jazzística de wynton marsalis. a narração firme é do ator peter coyote e alguns dos muitos personagens dessa saga ganharam as vozes de gente como tom hanks, john lightgow, patricia clarkson, campbell scott, jeremy irons, sam waterston, samuel l. jackson e paul giamatti. mas tudo isso é perfumaria perto das discussões levantadas por burns e de uma frase que resume muito bem a hipocrisia de leis que tentam “resolver” questões morais numa canetada: segundo burns, a lei seca “fez com que cidadãos comuns virassem criminosos e criminosos se transformassem em reis”. essa é uma história que os morros cariocas (e não só) conhecem muito bem.
era uma vez...
um país livre e em crescimento que no começo do século 19 passou a beber como nunca. é que bebidas destiladas e fermentadas começaram a ser produzidas em maior escala, ficando mais baratas, e transportadas com mais rapidez (ah, o trem). não demorou muito para que essa permissividade alcoólica gerasse uma reação por abstinência, a princípio civil (the washingtonian society) e depois religiosa (o movimento temperance tinha ligações íntimas com a igreja protestante). só que a abstinência pregada no começo dessa história deveria ser voluntária e não obrigatória (daí não seria sincera). enquanto isso, alguns mais afoitos já clamavam por proibição.
afoitos ou não, os “secos” (drys), brancos e protestantes tinham acesso ao poder e na metade do século 19 alguns estados americanos haviam banido, ou dificultado, o acesso ao álcool. e uma das forças mais importantes a estimular essa onda moralizadora veio dos cada vez mais coesos grupos de mulheres, que se reuniam tanto por motivos religiosos quanto pelo antiescravagismo e o direito de voto (sufragistas). também não era nada por acaso que elas estavam nessa linha de frente, pois eram as primeiras vítimas dos excessos da bebida.
quando tudo parecia perdido para os “molhados” (wets) em 1861 estourou a guerra civil, norte x sul, ianques x confederados, e o governo federal interveio liberando todas as bebidas, e taxando-as pesadamente, para cobrir os gastos da matança. quatro anos depois, quando a guerra acabou, o país sobrevivente entrou em estado de euforia, principalmente com a chegada de uma nova grande leva de imigrantes (ah, os alemães e suas cervejarias). só bebendo para aguentar esse rojão.
daí veio a ressaca... é sempre assim, após a guerra vem a euforia, e após a euforia vem a repressão... podem checar na história da humanidade. em 1873, o movimento temperance voltou com tudo e rapidamente se espalhou pelo país, ainda que enfrentando muita resistência nas cidades grandes. se era moralista e conservador no assunto proibição também era progressista quanto a liberação e empoderamento da mulher.
nada disso adiantou e os americanos e novos americanos seguiam bebendo como se não houvesse amanhã. era a incontornável cultura do saloon, espaço de intensa sociabilidade masculina, legal e ilegal. o local era tão importante que estava no nome de seu maior inimigo: a anti-saloon league. fundada em 1893 numa união de batistas e metodistas, a organização tinha como objetivo acabar com o álcool e ponto final. era muito organizada e possuía uma ação política moderna, pois logo percebeu que os resultados apareciam amparados numa união entre lobby no congresso e nos jornais e uma intensa mala direta para simpatizantes do movimento (sem falar em “campanhas educativas” para crianças, eleitores futuros). “votos são balas”, era uma das máximas de seus líderes.
o cerco foi se fechando e no início do século 20 boa parte dos estados norte-americanos possuíam sua filial da anti-saloon league que, além das já conhecidas dicotomias entre campo X cidade, protestantes X católicos e sul X norte, estabeleceu uma nova: “americanos nativos” X imigrantes. com muita sagacidade uniu as faces mais diversas do conservadorismo americano e ainda conseguiram apoio propagandístico de um arte que começava a engatinhar (em 1909 foi lançado ten nights in a bar room, um curta doutrinador sobre a derrocada de um beberrão).
no início da década de 1910, seis estados já proibiam o álcool, mas a liga queria um política nacional que institucionalizasse para todos a conduta (e crenças) de uma minoria. só que pra isso precisaria haver uma mudança na constituição. uma emenda (seria a décima oitava). a entrada dos estados unidos na primeira guerra mundial acabou acelerando o processo, afinal os alemães (inimigos do momento) eram donos das maiores cervejarias do país e ativos integrantes dos “wets”. era o que a liga precisava para conseguir, junto ao congresso, ratificar o proibicionismo, o que acabou virando realidade em 1920. do dia pra noite, a quinta maior indústria do país foi considerada ilegal e uma quantidade considerável da população passou a ser vista como criminosa.
fala baixinho pra não ouvirem
apesar do caos no sistema judiciário - imaginem a quantidade de pessoas sendo presas por beber ou vender álcool -, principalmente em cidades grandes como nova york, os primeiros anos da década de 1920 viram diminuir drasticamente a violência doméstica, prisões por bebedeira e arruaça, acidentes de trânsito e outras questões relacionadas. mas por volta de 1924 o consumo voltou a subir e, consequentemente, casos de cirrose, intoxicação por bebida batizada, prisões e assim por diante.
em “assim por diante” leia-se violência, assassinatos e corrupção, tudo ligado a brigas dentro crime organizado para ver quem ganhava mais dinheiro dentro do altamente lucrativo mercado paralelo da bebida. a proibição foi o que de melhor aconteceu na vida de um grande número de bandidos, particularmente nas cidades de nova york e chicago.
o que os vitoriosos “drys” não esperavam era que sua lei seca, autoritária e burra, desse origem também a primeira revolução sexual em larga escala na história da humanidade. porque foram nos bares e botecos clandestinos – conhecidos como ‘speakeasy’ (os ‘fala baixinho’ em bom português) – que homens e mulheres beberam juntos pela primeira vez em um mesmo ambiente público. descobertas assim são nitroglicerina pura e acabam comendo por dentro a própria lei repressora que as gerou.
em 1928 começaram a aparecer as primeiras tentativas de derrubar a emenda da lei seca, mas nenhuma foi para frente, afinal o governo federal continuava nas mãos dos republicanos, publicamente “drys”, intimamente “wets”. por outro lado, foi uma rica e bem nascida republicana, pauline sabin, que na época começou a discursar, com bastante repercussão, contra a hipocrisia de uma lei que nem resolvia um problema (alcoolismo) e ainda criava muitos outros (violência, corrupção, etc.). pois é, mulheres foram protagonistas-chave tanto do surgimento quanto do fim da lei seca.
um ano depois, o crash da bolsa de valores de nova york tirou o chão dos estados unidos e a extrema necessidade de trabalhos & impostos por causa da grande depressão que se seguiu ajudou muito no processo de derrubada da proibição. só que ainda levaria mais alguns anos. seria preciso que, em 1932, o impopular presidente herbert hoover levasse uma surra nas urnas do democrata franklin d. roosevelt (a republicana sabin, mais realista que o rei, o apoiou). um mês após sua posse, o presidente liberou a cerveja e a dobradinha congresso/senado assinou embaixo sem pestanejar. simples assim. quando foi interessante para uns, a bebida foi proibida. quando deixou de ser interessante para outros, foi liberada. interesses, minha nega.
não levou nem um ano para a proibição cair por completo e no final de 1933 os americanos já conseguiram se aquecer no inverno com sua bebidinha sem se preocupar com prisão ou envenenamento. foi o fim, após 13 anos, de uma das leis mais intransigentes e ineficazes da história do, digamos assim, mundo ocidental democrático. e essa história de erros, injustiças e interesses escusos vem se repetindo com mais violência e hipocrisia nas falidas políticas de combate ao tráfico de drogas. ao fim de prohibition, uma reflexão tão absurdamente óbvia quanto esquecida, ressoa com ferocidade: como pode a moralidade de uns virar lei para todos?
mulheres e homens curtindo uma cervejinha em raceland, louisiana, 1938
p.s. 1: assisti às três partes de prohibition em um curto espaço de tempo há uns dois meses atrás e fiquei logo com muita vontade de escrever algo, mas por um motivo ou outro não conseguia começar (já imaginava que seria grande). após minha demissão da editora globo consegui esse tempo e nas últimas semanas fiquei em cima do texto levando em conta apenas as muitas anotações que fiz enquanto assistia. e na trilha, felipe cordeiro (kitsch pop cult), eccentric soul - the nickel & penny labels [numero 039], ghostpoet (peanut butter blues and melancholy jam), asphalt orchestra, the cool kids (when fish ride bicycles), savave (versão extendida) e rodrigo leão (a montanha mágica).
2 comentários:
digitalmente, a melhor coisa que li em dias.
parabéns.
porra, l. augusto.
muito agradecido
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