segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

+ 2 resenhas

dois livros que saíram no final do ano passado acabaram se transformando nas minhas primeiras colaborações para o site da +soma. fazia um tempo que não escrevia resenhas grandes assim e foi divertido voltar a esse batente, ainda mais com dois livros da pesada: tóquio proibida, de jake adelstein, e quando meu pai se encontrou com o et fazia um dia quente, de lourenço mutarelli. saca só.


adelstein-san e sua obra

TÓQUIO PROIBIDA (Cia. das Letras) 


“Aqui é Kabukicho, não é Pokemon”. Mais que uma paródia, esse verso tungado dos Racionais serve como uma rápida descrição de uma das áreas mais criminalmente ativas da cidade de Tóquio. Principalmente durante a segunda metade da década de 1990 e começo dos anos 2000, época no qual o jornalista Jake Adelstein andou por lá como repórter policial para o Yomiuri Shimbun. Judeu e norte-americano, Adelstein foi o primeiro estrangeiro a trabalhar em um grande jornal japonês (e escrevendo na língua nativa) e sua experiência pelo submundo do país, entre 1993 e 2005, lhe deu a munição pesada para escrever Tóquio Proibida.


Lançado originalmente em 2009, o livro é uma revisão cronológica de tudo que o jornalista viu, ouviu e sentiu nesses muitos anos por algumas das quebradas mais estranhas do Japão. Escrito de forma direta, sem firulas, e com uma sinceridade suicida, Tóquio Proibida trata não apenas de casos como roubos de caixas eletrônicos, assassinatos seriais, pornografia, tráfico de pessoas, extorsão e lavagem de dinheiro, mas principalmente das complexas relações entre a imprensa e a polícia, a polícia e a Yakuza (a lendária máfia nipônica), e a Yakuza e o poder público. Tudo se mistura em um perigoso e subterrâneo caleidoscópio poucas vezes testemunhado por estrangeiros e até pelos próprios japoneses. Não existe certo ou errado, só existe o que é.


Porém, quando Adelstein começou a trabalhar em 1999 na área de Kabukicho, conhecida por suas boates e casas de prostituição, e soube de um intenso tráfico de mulheres, principalmente do Leste Europeu, sua objetividade jornalística foi para o beleléu (e ele mesmo assume que aí começou sua derrocada como profissional no país). Sim, ele se envolveu pessoalmente na pauta e acabou, sem querer, descobrindo o segredo de um famoso chefe yakuza (Tadamasa Goto) que pôs sua vida em risco e o obrigou a voltar aos Estados Unidos com sua mulher e dois filhos.


Ele logo viu que era preciso escrever o mais rapidamente possível toda a história que sabia. Jogar tudo no ventilador. Aí ele se tornaria um alvo importante demais para que sua morte não chamasse atenção. Sem entregar muito dessa parte crucial da trama é possível dizer que envolve um transplante de fígado nos Estados Unidos e um acordo com o FBI. Durante esse processo ainda conseguiu uma confissão de que o suicídio do cineasta Juzo Itami em 1997 pode ter sido forjado por capangas de Goto. Itami, de sucessos nos anos 1980 como Tampopo - Os Brutos Também Comem Spaghetti, já tinha sido espancado e tido o rosto retalhado por homens do chefão pouco antes da estreia, em 1992, de Yakuza - A Arte da Extorsão, uma comédia que satirizava os mafiosos.


Apaixonado e imerso na cultura japonesa desde a adolescência, Adelstein sabe que a culpa judaica impressa em seu DNA, entre outras coisas como a própria cara, sempre lhe colocam na posição de estrangeiro. Procura não esconder isso no texto e invariavelmente o faz com bastante humor. No entanto, ao final, moído pela falta de ressonância de suas denúncias acaba deixando transparecer certo travo amargo na boca. Nossos amores podem ser muito destrutivos, não é mesmo, Adelstein-san?


Mais informações sobre o trabalho de Jake Adelstein no site Japan Subculture Research Center.




QUANDO MEU PAI SE ENCONTROU COM O ET FAZIA UM DIA QUENTE (Quadrinhos na Cia.)


Foi com agradável surpresa que lá pelos meados dos anos 2000 descobrimos que Lourenço Mutarelli era mais que um dos melhores desenhistas da história brasileira. Vieram romances como Jesus Kid e Miguel e os Demônios, adaptações cinematográficas de seus livros O Cheiro do Ralo e O Natimorto, trabalhos como ator, peças para teatro, etc. Mas quem é fã mesmo gosta de vê-lo desenhar e, fora uma curta série feita para o Estadão (Ensaio Sobre a Bobeira), seu último trabalho na área tinha sido Caixa de Areia, de 2005. 


Agora, com o lançamento de Quando Meu Pai se Encontrou com o ET Fazia um Dia Quente, é possível acalmar a ansiedade. Pelo menos momentaneamente. É que Mutarelli já deixou claro que desenhar tem dado mais trabalho que nunca, ainda mais com o nível de rebuscamento que chegou a partir da trilogia-em-quatro-livros O Dobro de Cinco, e isso lhe causava uma angústia extrema.


Mas o atual livro não é bem uma história em quadrinhos no esquema clássico e está mais para uma sequência de ilustrações de página inteira. A outra diferença para a grande maioria de seus trabalhos é que este foi feito em cores e com tinta acrílica. O resultado é de encher os olhos. Mutarelli está desenhando melhor que nunca, é uma coisa assustadora de ver (no que isso tem de bom, claro), e seu uso de cores surpreende em cada textura de todas as 91 páginas ilustradas do livro.


E para compensar tudo o que escreveu, só escreveu, nesses 6 ou 7 anos, a história do livro é contada com uma invejável economia de palavras. Ou uma fartura reveladora de silêncios, o que preferir. O protagonista é o triste pai-com-cara-de-William-Burroughs do narrador. Homem que perdeu a mulher em um acidente sem sentido, mistura fotos antigas da família com de desconhecidos, desmonta máquinas de escrever, se perde, vê um ET e é colocado em um asilo. E existe o narrador que não entende o que está acontecendo e, no fundo, não quer saber de coisa alguma sobre esse pai triste. Seria humanizá-lo, e o negócio é ir em frente, sempre em frente (pra onde ele também não sabe, nem pensa nisso).


O clima, como era de se esperar, é melancólico, mas tem algo mais. Quer dizer, menos. O texto está enxuto no osso, bem diferente de seus livros de quadrinhos, deixando o sentimentalismo torturado & punk de Mutarelli abrir mais espaço para o leitor fazer suas próprias associações entre texto e imagem. Ainda mais com um sutil embaralhamento de idas e vindas no tempo.


Mas o paulistano não seria o autor que é sem um tanto de seu humor surreal. No livro isso acontece na participação decisiva de dois personagens, com as caras do dramaturgo Mário Bortolotto e do ator Paulo de Tharso (amigos e parceiros de Mutarelli no teatro), dentro de um barco atolado no leito seco de um rio. 


Diferente de seus quadrinhos anteriores e também dos livros, Quando Meu Pai se Encontrou com o ET... pode ser o começo de uma nova fase ou então uma ponte, ou um esboço, para outra mais nova ainda e igualmente diferente. Ou pode ser apenas mais um livro de Mutarelli, e tão belo e triste quanto tudo de melhor que já fez. É isso que importa. Ir em frente. 


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